Enquanto “esquerda” faz coro com a CIA, historiador de Israel destrói o mito do Peron nazifascista, por Raphael Helid

Quando repetimos seus mantras canalhas chamando esses líderes de “caudilhos, populistas, autoritários, fascistas, nazistas"... estamos de que lado?

Enquanto “esquerda” faz coro com a CIA, historiador de Israel destrói o mito do Peron nazifascista

por Raphael Helid

Seria tratar do óbvio dizer que para entender os problemas do Brasil temos que voltar, no mínimo, ao processo de Independência. Não é o caso aqui. Mas é quase impossível se falar da atual situação sem tocar no processo que desaguou no impedimento de Collor, mesmo que aqui ainda não seja o espaço para aprofundamento. Mas é necessário lembrar que a vitória eleitoral do “caçador de marajás” foi construída como uma reação ao acúmulo obtido na luta pela democracia e refletido na Constituinte.  Como já foi anunciado, não é pretensão aprofundar e, muito menos esgotar, o debate neste espaço, mas uma questão necessariamente deve ser destacada: toda a campanha foi focada na corrupção. Apresentou-se ao país a ilusão de que a derrubada de Collor significaria a derrota da corrupção e que esse era o único problema. Na amplíssima aliança então formada, não houve crítica ao neoliberalismo que estava por trás da vitória eleitoral de Collor. Esta omissão abriu caminho para o período tucano. O mesmo discurso “neoudenista” possibilitou a posterior ascensão petista. Ou seja: o combate à corrupção como solução pariu o período “petucano” no governo.

Agora, quando a truculência e as ligações do clã Bolsonaro com o submundo tornam-se por demais evidentes (como se não fossem antes) os mesmos que o elegeram começam a bater em retirada, como fizeram com Collor. Isso é bom. O país não pode ser governado por bandidos. Mas a questão que deve ser colocada é a seguinte: O problema de Bolsonaro não é apenas a boçalidade. O problema principal é a política de destruição do Estado Nacional. Não podemos correr o risco de dizer para o povo que o problema é só Bolsonaro. Guedes é pior. Mourão é do mesmo time.

Mas isso é apenas uma reflexão. O motivo dessas poucas linhas é um texto publicado no portal GGN. Esse notório espaço de articulistas do campo democrático publicou um artigo de André Motta de Araújo sustentando que Peron seria simpatizante do nazifascismo.  Rápida digressão. O golpe de 1964 foi contra quem e o quê? No processo de rearrumação partidária que precedeu a “Nova República”, que legenda foi sabotada? Como foi o comportamento eleitoral das forças que apoiaram a ditadura no processo eleitoral de 1989?  Depois de Collor veio o quê? O período “petucano”. Não pode ser esquecido que tanto o projeto do PSDB quanto o do PT era o aniquilamento do Estado Nacional Getulista.

Mas o que tem um ataque extemporâneo a Peron num portal progressista com isso? E por que isso deve incomodar? Uma das formas mais eficazes que o imperialismo utiliza para a dominação é a colonização intelectual e o sucesso desse recurso entre nós pode se verificar, por exemplo, quando indivíduos situados no espectro político identificado como esquerda ou campo progressista repetem mistificações criadas a partir dos laboratórios de Washington. É mais que sabido dos esforços (muito bem sucedidos por sinal) das agências ligadas ao Departamento de Estado dos EUA para derrubar e desmoralizar as principais lideranças políticas anti-imperialistas surgidas entre nós. Falo de Getúlio Vargas, Jango, Peron, Brizola… Para os publicistas, consciente ou inconscientemente à serviço da dominação de nossos países e povos, esses líderes representam “caudilhismo, populismo, autoritarismo” e toda uma série de adjetivações, cujo objetivo foi durante suas vidas barrar a realização da obra de libertação e após suas mortes a de macular sua memória e impedir a continuidade dos programas pelos quais lutaram.

O ódio sem tréguas dos agentes estadunidenses atinge particularmente Peron e Getúlio que tiveram a ousadia de décadas antes do Mercosul (outro alvo permanente) tentar construir o chamado “Novo ABC” – um acordo entre Brasil, Argentina e Chile que desafiava a sentença de Spkiman.(1) Getúlio, que comandou o Brasil na aliança antifascista na II Guerra Mundial enviando a FEB para os campos da Itália, permitindo a base aeronaval de Natal e o fornecimento de matérias primas decisivas, é pintado como “simpatizante do nazifascismo”. Contra Peron (que se recusou a colocar a Argentina no conflito, adotando neutralidade assim como diversos países em que podem ser incluídas as “civilizadas” Suíça e Suécia(2), a campanha é mais intensa. O ex-presidente argentino grande defensor da unidade continental é tratado como um absoluto filonazista. Mesmo não sendo admirador do Estado de Israel, pois simpatizante da causa palestina, usarei a régua que o ocidente convencionou para avaliar o nazifascismo, que é o ser ou não antissemita.  Por isso, em defesa da verdade e da luta contra o imperialismo e pela liberdade e unidade da Pátria Ibero-americana e pela memória e honra de seus líderes, trarei alguns tópicos retirados de uma entrevista concedida ao diário argentino Clarin em 2015 pelo historiador israelense Raain Rein, doutor em história pela Universidade de Tel Aviv e autor de “Los Muchachos Peronistas Judios”.

A matéria do Clarim destaca que Rein publicou mais de uma dezena de livros sobre a Argentina e sua explicação para isso é que os temas referentes à historiografia da América Latina que mais despertam a atenção dos estudiosos de fora do continente “são a Revolução Mexicana, a Revolução Cubana e o Peronismo.” Logo na abertura  afirma que “derrubar mitos é uma das tarefas mais importantes para um historiador” e que foi por esse tipo de desafio que decidiu provar que a ideia de que Peron “tinha simpatias pelo nazismo e antipatizava com os judeus” é historicamente insustentável. O livro, como o nome deixa claro, é fruto de uma pesquisa sobre judeus argentinos e sua participação no justicialismo. Para explicar essa relação primeiramente analisou as razões da construção do mito do antisemitismo de Peron.

A neutralidade da Argentina na II Guerra Mundial e a posterior fuga de Eichmann e outros acusados de crimes de guerra contribuíram para essa imagem.  Mas, segundo o historiador israelense “todas essas questões podem ser explicadas em seu devido contexto histórico. Lembrando que no governo de Peron os vínculos diplomáticos entre Argentina e Israel viveram seus melhores momentos, afirma ainda que “em nenhum momento Peron viu contradição entre a condição de ser judeu e argentino” tratando os integrantes da comunidade com absoluta igualdade. Já na introdução destaca que a relação da comunidade judaica com o peronismo era muito boa, mas que depois as lideranças das instituições ligadas à comunidade se esforçaram para ocultar este dado. Segundo ele, isso aconteceu para evitar problemas após a derrubada de Peron. “Foi um reflexo das medidas tomadas para ‘desperonizar’ a sociedade. Tiveram mais êxito que as autoridades, pois hoje a maior parte da comunidade judaica (e não só ela) crê que havia hostilidade entre ela e peronismo. “Essa imagem é falsa e distorcida. Criaram um mito. E para desafiar esse mito eu pesquisei nas fontes pois esse é o dever do historiador.”

Explicando a questão da neutralidade à II Guerra como uma das origens do mito do antissemitismo de Peron e de como essa ideia foi implantada na sociedade argentina, Rein afirmou que é necessário entender que não era uma política de Peron, mas “uma política argentina”. Isso porque essa posição foi adotada em quatro governos diferentes sendo dois presidentes civis e dois militares e tinha amplo apoio na sociedade. Para ele, além da neutralidade, o apoio de uma organização de direita (Aliança Libertadora Nacionalista) e da Igreja Católica ao governo de Peron também contribuíram para a desconfiança da comunidade judaica. Isso somado à imigração alemã no pós-45, “e em particular a entrada de alguns criminosos de guerra”.  Sobre isso afirma que a versão de cumplicidade de Peron é desconstruída por seu livro e “parece ótima para um roteiro de Hollywood mas não tem nada a ver com a realidade.”

Nesse ponto os entrevistadores lembraram que foram diversos os casos de fuga de criminosos nazistas para a Argentina incluindo Eichman. Mesmo concordando, ele lembrou que isso não foi uma exclusividade. “Foram para muitos outros países. Se adotarmos uma perspectiva comparativa, cai esse mito da Argentina como refúgio preferencial. A maioria dos que entraram o fizeram com documentos falsos e muitos conseguiram por causa de pressão exercida pelo Vaticano. Em alguns casos, como o de Eichmann, podemos ver que os governos posteriores rechaçaram os pedidos de extradição. Não foi uma decisão de Peron”. O que de fato existiu, registrou Rein, foi a atração de cientistas e técnicos alemães, a exemplo do que fizeram tantos outros países, principalmente EUA e URSS.

Os entrevistadores também questionaram sobre a caracterização de Juan Domingo Peron como fascista. Ele respondeu primeiramente criticando a simplificação na utilização do termo. “Não creio que o fato de, como parte de sua formação militar, ter ido a Itália adquirir experiência em alpinismo, possa caracteriza-lo como fascista.  Peron era um líder carismático. O fato de Mussolini também ser carismático não significa que tivessem outras semelhanças políticas. Não se pode falar de fascismo sem entender a questão da base social. A base social do justicialismo era muito diferente da base social do fascismo. Não havia violência política no peronismo.”

Outro ponto analisado foi a posição das elites argentinas, a famosa oligarquia portenha, em relação à comunidade judaica. Segundo suas palavras, era uma atitude muito ambígua e contraditória em relação aos imigrantes, especialmente os não europeus e não católicos.  Isso tornava difícil para os imigrantes judeus, árabes, japoneses, integrar-se. A postura do que ele chamou de “primeiro peronismo” diante dessa situação foi a defesa do “crisol” com os imigrantes renunciando a sua herança étnica e convertendo-se todos em argentinos. Peron, destacou, rechaçava muitas das ideias liberais e enfatizava os direitos coletivos e não os individuais. Em função disso legitimou esforços de grupos de imigrantes na manutenção de componentes identitários. “ Peron, nunca viu contradição entre ser argentino e árabe, japonês ou judeu. Pelo contrário, buscou instrumentalizar e aproveitar os laços desses imigrantes com seus países de origem. O livro demonstra que Peron abriu as portas da Argentina multicultural de hoje, diferentemente do que defende a extrema-direita.”

Outro argumento usado para contrastar o mito da simpatia nazifascista de Peron é a ligação entre o líder argentino e o rabino Amram Blum. O rabino formado em Jerusalém era oriundo da comunidade sírio-judaica, e tornou-se respeitado na comunidade pelo brilhantismo. Foi conselheiro de Peron e passou a ser considerado o nexo entre o general e a comunidade judaica. Esta relação causava problemas e chegou a criar uma “imagem judaica” para o peronismo, sendo utilizada pela direita católica em sua campanha contra Peron. Ao mesmo tempo quando Peron é derrubado, as lideranças da comunidade judaica passam a se esforçar para se distanciar de sua imagem.

A Argentina se absteve na votação da criação do Estado de Israel, mas assim que o novo país foi criado, as relações foram amigáveis. A Fundação Eva Peron enviava roupas e medicamentos para os acampamentos.  Rein afirmou que, diante de reações que chegaram até ele, o livro (que desmente documentalmente o antisemitismo e simpatias de Peron pelo nazifascismo) causou algum mal estar na comunidade judaica.  Mas, reafirmou, tornou-se uma obra necessária e conclui com a demonstração de que foi Peron que abriu para os judeus argentinos o acesso à vida pública.  Um exemplo disto, afirmou, é a presença de importantes intelectuais de origem judaica nas fileiras peronistas. Um deles foi Cesar Tiempo. Quando Peron encampa o diário La Prensa, Tiempo assume a editoria de cultura e em três anos publica mais obras de autores judeus que La Nácion em 50 anos.  “Quer dizer, com o peronismo se abrem novas oportunidades para os judeus argentinos. Essa é uma prova incontestável de que Peron não era nazista, sendo que catapultou os judeus para a vida pública do país.”

Concluo com as perguntas clássicas que devem ser feitas e que parecem nem passar pela cabeça de muitos dos nossos “ex-querdistas”: Quais são os principais inimigos de nossos povos? Quem articula e patrocina golpes e instala governos fantoches nos nossos países? Quais foram os governantes e líderes que mais incômodos lhes causaram? Quando repetimos seus mantras canalhas chamando esses líderes de “caudilhos, populistas, autoritários, fascistas, nazistas”… estamos de que lado? Que essas perguntas estejam presentes no momento grave que estamos enfrentando. O Brasil e nosso povo não merecem que os erros que nos trouxeram a esta situação terrível continuem sendo repetidos.

Raphael Helid – Professor colaborador e Pesquisador associado do Inst. de Estudos Estratégicos  da Universidade Federal Fluminense(INEST/UFF) e
Laboratório de Política Internacional (LEPIN/UFF). Mestre em Política pela PUC/RJ. Doutor em Ciência Política pela UFF.

1 -Nicholas Spkyman considerado o pai da geopolítica estadunidense escreveu mais ou menos isso : o Caribe é o nosso Mediterrâneo e dele devemos ter o cadeado e a chave. A parte norte do América do Sul está sob nosso controle. O perigo pode vir do Sul. Se as três nações mais importantes (Brasil, Argentina e Chile) se unirem nossa hegemonia estará ameaçada. Nesse caso devemos recorrer até a guerra se necessário. 

2 – A neutra  Suécia forneceu equipamentos todo o tempo para a Alemanha e abriu seu território para a passagem das tropas que invadiram a URSS.

Redação

3 Comentários

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  1. Opa!! FiNalmente alguém falando a VERDADE!!!!
    aANÁLISE PERFEITA…A turma da USP deve estar nervosa ao ler o artigo,,Afinal são ANTIGETULISTAS

  2. Apoio aos palestinos não significa rifar o estado de Israel,pois expressivos setores da sociedade israelense pretendem conviver em paz com seus vizinhos.

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