Era um Exército muito engraçado…, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Os brasileiros que apoiam o mito almejam a totalização do mundo ao seu redor mesmo sendo livres para consumir mensagens distintas daquelas que são divulgadas pelo gabinete do ódio.

Banksy

Era um Exército muito engraçado…

por Fábio de Oliveira Ribeiro

O filósofo Edgard Morin afirmou recentemente que a ignorância surge do pseudo-conhecimento. O que ele não disse é que esse pseudo-conhecimento pode ser tanto adquirido de maneira voluntária ou involuntária.

No Brasil, quem consome Fake News espalhada por Bolsonaro está pronto a tomar cloroquina e provavelmente se recusará a tomar a vacina russa. O fato do remédio que enriquece Donald Trump ser ineficaz e a vacina desenvolvida na Rússia imunizar contra a pandemia é um detalhe irrelevante. A convicção derivada da fé na Fake News é mais importante.

É preciso, portanto, problematizar as noções de aquisição voluntária e involuntária de pseudo-conhecimento. Afinal, assim como as pessoas ficam viciadas em drogas e em religião elas também podem ficar viciadas em Fake News. Quando isso ocorre o círculo fechado de informação distorcida que reforça distorções cognitivas já adquiridas dificilmente será rompido.

A irracionalidade do nazismo não foi derrotada porque os alemães foram convencidos de que as teses de Adolf Hitler estavam equivocadas e sim porque a Alemanha foi soterrada por bombas. Pouco antes da derrota, vários nazistas decidiram seguir seu líder até depois da morte. Convencida de que a morte era melhor do que viver num mundo sem o nazismo, Magda Goebbels provocou a morte dos filhos dela.

Os suicídios e homicídios que ocorreram no Bunker sob a chancelaria pouco antes do distrito governamental em Berlim ser conquistado pelo Exército Vermelho são uma prova inequívoca do poder mórbido do pseudo-conhecimento. Vários seguidores de Bolsonaro morreram em virtude de se expor à pandemia. Outros faleceram consumindo cloroquina. Impossível dizer quantos mais morrerão ao recusar uma vacina porque ela é russa.

É possível traçar um paralelo ideológico ligando os bolsonarismo ao nazismo. O problema é que entre esses dois fenômenos existe um abismo criado pela popularização dos computadores e smartphones ligados à rede mundial de computadores. O pseudo-conhecimento está na raiz destes dois movimentos. Todavia, o bolsonarismo consegue ser mais insidioso do que o nazismo.

Os alemães consumiam propaganda política produzida com exclusividade por um regime totalitário. Eles não tinham acesso a qualquer outro tipo de informação que não fosse aquela manufaturada com um viés ideológico. Os brasileiros que apoiam o mito almejam a totalização do mundo ao seu redor mesmo sendo livres para consumir mensagens distintas daquelas que são divulgadas pelo gabinete do ódio. Eles não são e não poderiam ser obrigados a consumir Fake News. Eles são livres para odiar e odeiam justamente porque não são coagidos a fazer isso.

Nos anos 1930 vários alemães que aderiram ao regime se tornaram o que podemos hoje chamar de “nazistas posers”. Assim que o poder de Hitler foi destruído eles simplesmente abandonaram a ideologia totalitária. Alguns deles, fizeram o que podiam e morreram tentando se opor ao regime nazista. Esse é o caso do coronel Claus von Stauffenberg e, ao que parece, do tenente SS Kurt Gertein.

Stauffenberg foi fuzilado por protagonizar um atentado contra a vida de Adolf Hitler. Menos famoso, Kurt Gertein morreu numa prisão francesa. As circunstâncias da morte do tenente SS levantam tantas dúvidas quanto o fato dele ter ou não sido um nazista convicto. Saul Friedländer afirma que ele foi obrigado a esconder suas verdadeiras convicções religiosas:

O jogo duplo de Gerstein, o medo de ser descoberto, os conflitos suscitados pela sua função oficial, seriam o suficiente para explicar as suas expressões e o seu esgotamento nervoso. Por outro lado, o que tinha presenciado em Belzec perseguia-o constantemente: ‘De meia em meia hora ocorria-lhe a imagem dos comboios com as vítimas condenadas à exterminação’.

A sua angústia era ainda motivada por outras razões. Muitos dos seus antigos amigos consideravam Gerstein um renegado; só um pequeno grupo sabia porque razão tinha ele entrado para as S.S. Persistem as tensões familiares, cujas razões exactas são desconhecidas. Uma declaração de Armin Peters revela o descontrolo que todos estes conflitos suscitavam em Gertein:

…Possuo uma carta escrita em 1942, diz Peters. Mandou-ma (para o que desse e viesse). Tinha escrito num período em que se julgava perseguido por todos, inclusivamente pela própria mulher e pela família. Quando tive confirmação da morte de Gertein, abri-a. Era dirigida ao irmão, o advogado Fritz Gertein, de Hagen. Referia-se ao caso de Niemöller e a todas as tentativas que tinha efectuado nesse sentido. Falava das ameaças e tentativas de chantagem de pessoas a quem estava muito ligado e das possíveis consequências disso mesmo. Essa carta é por si só mesma bastante eloquente. Revela todo o peso do drama de Gertein e a trágica luta que teve de levar a cabo. No fim da guerra, todas as suas forças físicas e psíquicas estavam esgotadas. Escolheu a morte voluntária num acto de liberdade de decisão última.’

Possivelmente, Gertein nunca se terá libertado do sentimento de culpabilidade que dominou a sua adolescência e os primeiros anos da vida adulta.” (Kurt Gerstein: entre o homem e a Gestapo, Saul Friedländer, Moraes Editores, Lisboa – Rio de Janeiro, 1968, p. 135/136)

De maneira geral, podemos dizer que o Exército brasileiro está comprometido com a preservação da desordem governamental criada por Jair Bolsonaro. Entre os oficiais militares existes bolsonaristas fervorosos. Outros se recusam a admitir qualquer vinculação explícita com a ideologia do presidente brasileiro. Alguns provavelmente são anti-bolsonaristas convictos. Até a presente data nenhum militar brasileiro ousou fazer qualquer coisa para tentar interromper o genocídio de índios, quilombolas, brasileiros pobres e sem terras em curso.

Em seu livro, James Bridle fornece vários exemplos de preconceitos políticos, ideológicos e raciais reificados de maneira sutil e opaca por algoritmos criados por programadores. Citarei aqui apenas aquele que considero o mais eloquente:

Em 2009, uma consultora de estratégias taiwanesa-americana chamada Joz Wang comprou uma câmera Nikon Coolpix S360 para o Dia das Mães, mas quando tentou tirar uma foto da família, a câmera repetidamente se recusou a captar a imagem. ‘Alguém piscou?’, dizia a mensagem de erro. A câmera, pré-programada com um software que aguarda até todos estarem de olhos abertos, na direção certa, não conseguia dar conta da fisionomia diferenciada de não caucasianos. No mesmo ano, o funcionário negro de uma vendedora de motorhomes no Texas postou um vídeo no YouTube, que teve milhares de views, em que sua nova webcam Hewlett-Packard Pavilion não conseguia reconhecer seu rosto, enquanto fazia zoom no colega branco. ‘Que fique registrado’, ele declarava, ‘e eu vou dizer: o computador da Hewlett-Packard é racista.” (A tecnologia e o fim do futuro, James Bridle, Todavia, São Paulo, 2019, p. 164/165)

O problema do Exército não é resultante de um algoritmo maliciosamente projetado para controlar os corações e mentes dos soldados brasileiros. O mais provável é que ele seja decorrente da ignorância que surge de um pseudo-conhecimento adquirido na caserna.

Ao que parece, no Brasil os militares são adestrados para defender um país que odeia seu próprio povo. Durante a Guerra Fria e até mesmo depois dela, os oficiais foram educados para odiar comunistas (o que quer que isso possa significar para alguns deles), para desdenhar a liberdade de imprensa e, em muitos casos, para sabotar o regime democrático. Todavia, nesse momento o que realmente causa estranhamento é a pouca importância que os comandantes das Forças Armadas estão dando ao seu próprio futuro.

Desde que a pandemia começou, Jair Bolsonaro fez tudo para transformá-la num problema de saúde pública insolúvel. Primeiro, ele minimizou o risco de contrair a doença mortal. Depois ele dificultou a importação de insumos médicos indispensáveis. Os recursos destinados ao combate ao COVID-19 não estão sendo gastos.

O Estado brasileiro está se recusando a cuidar de contingentes populacionais em situação de risco. Índios, quilombolas, sem terras e ribeirinhos em locais remotos estão sendo abandonados à própria sorte. Um general foi nomeado Ministro da Saúde. O medicamento produzido e distribuído a mando do presidente brasileiro (cloroquina) é ineficiente e potencialmente mortal. Nos últimos dias, Bolsonaro começou a sabotar a vacinação da população.

Agentes governamentais em postos importantes vieram a público dizer que a redução do número de mortos na pandemia pode prejudicar a economia e/ou a previdência social. Portanto, é fundada a suspeita de que o governo usa a pandemia para provocar uma redução populacional. Quase 130 mil brasileiros já morreram. Impossível quantas pessoas irão morrer em decorrência da pandemia até o final de 2020.

Já que não temos Stauffenbergs e Gerteins nos quartéis brasileiros, convêm transcrever aqui uma regra importante:

Article III The following acts shall be punishable:

(a) Genocide;

(b) Conspiracy to commit genocide;

(c) Direct and public incitement to commit genocide;

(d) Attempt to commit genocide;

(e) Complicity in genocide.

https://www.un.org/en/genocideprevention/documents/atrocity-crimes/Doc.1_Convention%20on%20the%20Prevention%20and%20Punishment%20of%20the%20Crime%20of%20Genocide.pdf

A Lei internacional é absolutamente clara. Bolsonaro já foi formalmente acusado de genocídio no Tribunal Penal Internacional. Portanto, os comandantes militares brasileiros devem começar a se preocupar. Em breve eles também poderão ser, no mínimo, acusados de cumplicidade com um genocídio.

Era um exército
muito engraçado
não tinha pátria
não tinha nada

Fábio de Oliveira Ribeiro

1 Comentário

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  1. O que está ficando claro é que não são um exército nacional, pois se comportam muito mais como um exército de ocupação inimigo em território conquistado ou como um exército de mercenários.

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