Estaríamos todos cansados?, por Rômulo de Andrade Moreira

“Sociedade do Cansaço”, de Byung-Chul Han, trata de uma questão absolutamente atual e contemporânea: a grande tragédia de se viver no mundo de hoje.

Hieronymus Bosch

Estaríamos todos cansados?

por Rômulo de Andrade Moreira

Byung-Chul Han é um homem notável. Nascido na Coreia, mudou-se para a Alemanha e estudou Filosofia na Universidade de Friburgo. Mais tarde, já em Munique, estudou e aprendeu literatura alemã e teologia. Profundo conhecedor da obra de Heidegger, doutorou-se, em 1994, em Friburgo, com uma tese sobre o filósofo alemão. Hoje é Professor de Filosofia e Estudos Culturais na Universidade de Berlim.

Tem várias obras sobre a sociedade e o ser humano. Uma delas, a “Sociedade do Cansaço”, trata de uma questão absolutamente atual e contemporânea: a grande tragédia de se viver no mundo de hoje. Desde uma visão patológica, como prefere o filósofo, este século, ao contrário de outros anteriores, “não é definido como bacteriológico nem viral, mas neuronal.” A doença do século é outra, talvez mais difícil de diagnóstico e, sobretudo, de tratamento. A cura, quase impossível.

Como ele escreve, as doenças, hoje, são de natureza “neuronal”, tais como “a depressão, o transtorno de déficit de atenção com síndrome de hiperatividade (Tdah), transtorno de personalidade limítrofe (TPL) ou a síndrome de Burnout (SB).” E, por não serem fruto de uma “negatividade”, mas causadas pelo “excesso de positividade”, escapam de “qualquer técnica imunológica.” Não são infecções, como outrora, mas “enfartos.”

Estes “adoecimentos neuronais do século XXI” são “estados patológicos devidos a um exagero de positividade.” Assim, “o esgotamento, a exaustão e o sufocamento frente à demasia são reações imunológicas”, verdadeiramente “manifestações de uma violência neuronal, que não é viral.”

Han, lembrando o genial Foucault, afirma que a “sociedade disciplinar” do filósofo francês, “feita de asilos, presídios, quartéis e fábricas”, transformou-se em uma outra sociedade, “a saber, uma sociedade de academias de fitness, prédios de escritórios, bancos, aeroportos, shopping centers e laboratórios de genética.” Uma “sociedade de desempenho”, cujos habitantes não são os outrora obedientes, “mas sujeitos de desempenho e produção, empresários de si mesmos.

Enquanto a sociedade disciplinar gerava “loucos e delinquentes”, esta, ao contrário, “produz depressivos e fracassados”, onde o que prevalece é “o desejo de maximizar a produção”, substituindo-se o “paradigma da disciplina” pelo “paradigma do desempenho.” Assim, ele identifica “o imperativo do desempenho como um novo mandato da sociedade pós-moderna do trabalho.

Na sociedade disciplinar (Foucault), cujo inconsciente social baseava-se no dever, o homem é “o sujeito da obediência.” Hoje, na sociedade de desempenho, cujo inconsciente social é “o desejo de maximizar a produção”, o homem passou a ser “o sujeito de desempenho, mais rápido e mais produtivo.” O homem passa a ser um “animal laborans”, preso a uma verdadeira “auto exploração” agudizada pelo “excesso de trabalho e desempenho.” É “hiperativo e hiperneurótico.” A mulher, obviamente, também.

E essa auto exploração é mais cruel que a de outrem, “pois caminha de mãos dadas com o sentimento de liberdade”, onde o “explorador é ao mesmo tempo o explorado.” Eis, então, o paradoxo: o que é aparentemente uma manifestação da liberdade humana, torna-se causa de manifestações patológicas as mais diversas.

Portanto, “os adoecimentos psíquicos da sociedade de desempenho são precisamente as manifestações patológicas dessa liberdade paradoxal”, pois “a sociedade do trabalho e a sociedade do desempenho não são uma sociedade livre”, já que “o próprio senhor se transformou num escravo do trabalho”, “cada um carregando consigo seu campo de trabalho.

Somos todos, e a um só tempo, “prisioneiro e vigia, vítima e agressor, explorando-nos a nós mesmos.” Vive-se hoje “num mundo muito pobre de interrupções, pobre de entremeios e tempos intermédios.”

É exatamente nesta passagem de uma sociedade para outra que Alain Ehrenberg – sociólogo francês citado no livro[1] – localiza a depressão, exatamente no fato de que agora o homem depressivo “não está cheio, no limite, mas está esgotado pelo esforço de ter de ser ele mesmo.” A depressão seria, então, “a expressão patológica do fracasso do homem pós-moderno em ser ele mesmo.”

Neste aspecto, Han vai mais além do que Ehrenberg, para caracterizar a depressão como um reflexo da “carência de vínculos”, própria da “violência sistêmica inerente à sociedade de desempenho que produz ´infartos psíquicos`.” Para ele, o que passa desapercebido no pensamento do sociólogo francês é entender o fenômeno da depressão apenas como uma resultante da “pressão do desempenho”, razão pela qual doenças como a Síndrome de Burnout “não expressa o si-mesmo esgotado, mas antes a alma consumida.

A depressão surge, precisamente, “no momento em que o sujeito de desempenho não pode mais poder. A lamúria do indivíduo depressivo de que nada é possível só se torna possível numa sociedade que crê que nada é impossível.”

Segundo Han, “a depressão é o adoecimento de uma sociedade que sofre sob o excesso de positividade. Reflete aquela humanidade que está em guerra consigo mesma.” Assim, o homem depressivo “explora a si mesmo”, transformando-se em “agressor e vítima ao mesmo tempo.” Ele encontra-se “em guerra consigo mesmo”, tornando-se “o inválido dessa guerra internalizada.

No capítulo terceiro, que ele intitula “O Tédio Profundo”, Han refere-se ao que ele chama de “multitarefa”, como a “crescente sobrecarga de trabalho”, aliada a um “excesso de estímulos, informações e impulsos”, responsáveis pela fragmentação e destruição da atenção.

A multitarefa, muito ao contrário do que poderia parecer, não é uma evolução da natureza e da sociedade humanas, mas se trata “de um retrocesso”, pois “está amplamente disseminada entre os animais em estado selvagem”, sendo “uma técnica de atenção, indispensável para sobreviver na vida selvagem.

Para comprovar a sua tese de que, em verdade, a multitarefa representa uma involução, um retrocesso, que aproxima “cada vez mais a sociedade humana da vida selvagem”, exemplifica:

Um animal ocupado no exercício da mastigação de sua comida tem de ocupar-se ao mesmo tempo também com outras atividades. Deve cuidar para que, ao comer, ele próprio não acabe comido. Ao mesmo tempo tem de vigiar sua prole e manter o olho em seu (sua) parceiro (a). Na vida selvagem, o animal está obrigado a dividir sua atenção em diversas atividades. Por isso, não é capaz de aprofundamento contemplativo – nem no comer nem no copular. O animal não pode mergulhar contemplativamente no que tem diante de si, pois tem de elaborar ao mesmo tempo o que tem atrás de si.

É justamente esta falta de oportunidade para o existir contemplativo que carece a humanidade. A atenção profunda, “contemplativa” é indispensável para “os desempenhos culturais da humanidade, dos quais faz parte também a filosofia.

Ao contrário dessa atenção profunda, o que se tem hoje é uma “hiperatenção”, “dispersa”, caracterizada “por uma rápida mudança de foco entre diversas atividades, fontes informativas e processos”, não dando espaço para “aquele tédio profundo que não deixa de ser importante para um processo criativo.”

Aqui o autor lembra o escritor e filósofo alemão Walter Benjamin, para quem aquele “tédio profundo” seria como “um pássaro onírico, que choca o ovo da experiência”, cada vez mais desaparecido da modernidade.

O tédio profundo estaria para o descanso espiritual assim como o sono está para o descanso físico. Ambos, o sono e o tédio profundo, perfazem, respectivamente, o ponto alto do descanso do corpo e do espírito. A inquietação, além de não gerar “nada de novo”, apenas “reproduz e acelera o já existente.”

Lembra, então, Paul Cézanne, famoso pintor francês e “um mestre da atenção profunda, contemplativa”, que dizia poder “ver inclusive o perfume das coisas. Essa visualização do perfume exige uma atenção profunda.”

Citando textualmente Nietzsche, Han lembra que “por falta de repouso, nossa civilização caminha para uma nova barbárie. Em nenhuma outra época os ativos, isto é, os inquietos, valeram tanto”, motivo pelo qual é preciso que “a humanidade fortaleça em grande medida o elemento contemplativo”, pois “só a vida contemplativa é que torna o homem naquilo que ele deve ser.”

Ademais, esta “vida contemplativa pressupõe uma pedagogia específica do ver”, ou seja, “capacitar o olho a uma atenção profunda e contemplativa, a um olhar demorado e lento”, pois “é uma ilusão acreditar que quanto mais ativos nos tornamos tanto mais livres seríamos.” Neste sentido, o filósofo afirma a burrice do computador, “apesar de todo o seu desempenho computacional, na medida em que lhe falta a capacidade para hesitar.”

O autor aproveita para fazer uma distinção entre a mera irritação – própria da sociedade de hoje – e a ira, “que não se coaduna com a aceleração geral e com a hiperatividade”, pressupondo, ao contrário da irritação, “uma pausa interruptora no presente.” A hiperatividade “não admite nenhuma folga temporal”, gerando “a dispersão geral que marca a sociedade de hoje”, não permitindo, por conseguinte, “que surja a ênfase e a energia da ira.” A ira, ao contrário da irritação ou da enervação, “é uma capacidade que está em condições de interromper um estado, e fazer com que se inicie um novo estado.” Ali – na irritação ou na enervação -, contrariamente, não há possibilidade de “produzir nenhuma mudança decisiva.”

No último capítulo, alerta o autor que “a sociedade do cansaço, enquanto uma sociedade ativa, desdobra-se lentamente numa sociedade do doping” que “possibilita de certo modo um desempenho sem desempenho”, transformando o homem e a mulher “em máquinas de desempenho, que podem funcionar livres de perturbação e maximizar seus desempenhos”, gerando “um cansaço e esgotamento excessivos” e levando “a um enfarto da alma.”

Trata-se, por fim, de um cansaço “solitário, que atua individualizando e isolando.” Vale a reflexão…

[1] Autor, dentre várias outras obras, de “O Culto da Performance: da Aventura Empreendedora à Depressão Nervosa”, publicado no Brasil pela Editora Ideias & Letras.

Rômulo de Andrade Moreira – Procurador de Justiça no Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade Salvador – UNIFACS

Redação

5 Comentários

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  1. Realmente, a realidade atual nos cobra cada vez mais desempenho, produtividade, e nos leva ao cansaço não apenas físico mas também “da alma”, deixando-nos como presente de grego a irritação que por sua vez nada gera de novo, de criativo, ao contrario da ira que, ela sim, nos mobiliza para mudanças. De minha parte, me vi nesse espelho…e tornei-me escravo do trabalho sem que ninguém, a não ser eu próprio, o cobre cada vez mais de mim. Há anos só tiro férias no papel para receber um terço a mais no ganho de servidor público, há anos que trabalho todos os dias do ano das 7 da manhã à meia noite, apenas com pouca interrupção para almoço, janta e para alguma ajuda em casa. Mas também noto que um fator extremamente burro nos cerca e nos impõe tanto trabalho: A BUROCRACIA IDIOTA de instâncias superiores que baixam protocolos excessivamente burocráticos ao invés de simplificarem as coisas nos nossos dia-a-dia de trabalho. E daí, como governantes e legisladores são mais idiotas, eles impõem-nos o austericídio como solução econômica imbecil e, para diminuirem cada vez mais o Estado, simplesmente não repõem funcionários que se aposentam ou falecem e as demandas só aumentam e aumentam para que as atendamos com as mesmas quantidades de funcionários. E, por outro lado, gestores com pouca coragem para enfrentarem as idiotices de quem organiza nossos trabalhos, simplesmente não enfrentam a idiotice de burocracias que tornam nossa produção individual de cada atendimento cada vez mais lento….idiotamente lento, apesar da agilidade dos computadores…….infelizmente sob comando de programadores computacionais que não desconfiam que a burocracia só estraga tudo………e assim vamos indo e produzindo atendimentos, produzindo atendimentos, produzindo atendimentos…que poderiam ser mais ageis se não fosse a burrice da burocracia. E, além de nós, máquinas de produzir atendimentos, quem também se ferra são os pacientes por nós atendidos que ficam em filas de espera. Mas nós, funcionários públicos, mesmo trabalhando muito mais que nossa obrigação contratual (sem que ninguém me peça isso, só minha própria consciência ante centenas e centenas de pacientes esperando) nós nem podemos nos irar contra a imbecilidade burocrática…….pois gestores intermediários são cagões e não têm coragem de questionarem a burocracia contida em protocolos do setor Saúde.

  2. Não conheço o autor, mas parece que sua descrição da modernidade tardia é muito boa. E, pelo visto, como Foucault, ele fica no nível da descrição fenomenológica, magistral, mas descritiva. Pela exposição de suas ideias (que não li o original), ele se recusa, como Foulcault, a explorar uma causalidade que, no entanto, está à mão.

    Afinal, basta se perguntar, para que se exige tanto desempenho. E a resposta é sempre o lucro, o valor, ou seja, a reprodução do capital. A causa da sociedade da disciplina, quando o capital estava se estabelecendo, e posteriormente, a do desempenho, quando ele já está introjetado na subjetividade e cada um tem que se sentir como um mini-burguês, ou seja um empreendedor, um capital individual que deve render/desempenhar o máximo.

    O desempenho nunca existe por si só. Ele tem uma causa e um fim, que é a reprdução do capital, introjetada nos sujeitos como se fosse uma lei da natureza. E o representante máximo deste sujeito do desempenho é o homem classe média, sempre investindo em si como em um capital humano à espera do retorno proporcionado pelo trabalho ou pelos négócios. O homem classe média é, desde a juventude, empresário e trabalhador de si mesmo, o indivíduo ideal do capital, o próprio desempenho encarnado.

  3. Corrigindo: onde eu disse que demandas só aumentam para serem atendidas com as mesmas quantidades de funcionários, leia-se “COM CADA VEZ MENOS FUNCIONÁRIOS”.
    e explicando: nosso trabalho é dispensação de medicamentos de alto custo para pacientes SUS, à frente de computadores onde há um programa de dispensação burocrático demais para meu gosto e onde seguimos protocolos ministeriais ou estaduais onde há muita burocracia. Claro que se entende a necessidade de haver regras mais rígidas quanto à dispensação de medicamentos que exponham pacientes a riscos…….mas a grande maioria deles, os pacientes, terão que tomar certos medicamentos para o resto da vida mas apenas se cumprirem certas regras burocráticas, mal aceitas por médicos os quais sequer se dispõem a ajudar fornecendo uma simples receita ou pedindo um simples exame E isso acontece justamente por causa da burocracia de exageros de renovações e de exames, dificultando o recebimento dos medicamentos e tornando morosos nossos atendimentos, com cada vez menos funcionários para atendermos. Daí a minha doença de trabalhar e trabalhar feito besta…

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