Fake news e discriminação potencializam danos do coronavirus, por Arnaldo Cardoso

Itália tem dado mostras de que os danos do vírus são potencializados em ambiente social previamente contaminado pela sistemática disseminação de fake news.

Fake news e discriminação potencializam danos do coronavirus

por Arnaldo Cardoso

A evolução da epidemia de coronavirus (Covid-19) na Itália, país que depois da China se tornou o principal foco da doença, tem dado mostras de que os danos do vírus são potencializados em ambiente social previamente contaminado pela sistemática disseminação de fake news e pelo discurso de ódio que acompanhou nos últimos anos o avanço da extrema direita no país. 

No último dia 25 o tradicional jornal italiano Corriere Della Sera, fundado em 1876, publicou o editorial “Mais certezas e respostas sérias. O vírus está nos mudando” no qual ao mesmo tempo em que critica a onda de  mistificações na web em torno do surto de coronavius cita boas medidas adotadas pelas autoridades públicas e por instituições de saúde no enfrentamento da doença e conclama a volta da racionalidade na sociedade italiana.

O editorial faz menção a tese do livro Nervous States – Democracy and the Decline of Reason (2019) do sociólogo inglês William Davies em que é discutida a perda de autoridade dos números, indicadores e fatos reais nas sociedades contemporâneas, resultando num vazio que corre o risco de ser ocupado por vozes, fantasias e conjecturas produzidas nas redes sociais digitais que “se tornam uma arma de combate à disposição de todos”. 

Apesar da contundente crítica social que o editorial faz, há um tom otimista ao afirmar a confiança de que a experiência concreta de dor que a doença tem trazido pode  desmantelar as emoções fabricadas pela web, ao colocar os cidadãos diante da necessidade de informações médicas consistentes e de ações de profissionais competentes para o enfrentamento da situação. 

Além de uma ligeira provocação ao afirmar o desejo de descoberta de uma vacina (lembrando episódio não distante em que personalidades da política insurgiram-se contra as vacinas (No-Vax)) o editorial emenda com a frase “rezamos para que a ciência nos salve”.

A crítica é também reforçada com a menção ao livro La démocratie des crédules (2013), do sociólogo francês  Gérald Bronner, que lança oportunas indagações como “Por que os mitos da conspiração parecem invadir a mente de nossos contemporâneos?” e “Por que desconfiamos cada vez mais de homens da ciência?

A Itália que foi um laboratório do que vem sendo chamado de populismo digital uma vez que viu nascer em seu seio o primeiro partido político digital, o Movimento Cinco  Estrelas, pelas mãos do empresário Gianroberto Casalecchio e do comediante (avatar) Beppe Grillo e que, em pouco tempo, se tornou o partido mais votado do país, pode nesse dramático contexto de uma epidemia, reencontrar o caminho perdido – como aposta o Corriere – da razão e da moderação.

O físico e professor ítalo-brasileiro Hélio Cosentino, que mantém residência em São Paulo e nos arredores de Roma, em conversa mantida nesta data manifestou preocupação com fluxos de informações distorcidas na web e algumas medidas mal concebidas e/ou implementadas para a contenção do avanço da doença, das quais aponta como exemplo a proibição de funcionamento de bares em cidades italianas que, por vezes, tropeça numa confusa distinção entre bar e restaurante (atendimento em balcão ou mesas) causando mais transtorno que benefício. Citou também um episódio de dias atrás ocorrido num grande teatro de Milão que, depois de se encontrar com a casa cheia anunciou a decisão após quarenta minutos de indefinição, de cancelar o espetáculo. Cosentino, que tem relações de amizade com empresários e profissionais liberais brasileiros e italianos, se declara confiante nas medidas que vem sendo adotadas pelo governo e, torcendo pelo encontro da razão com o bom senso, aposta na superação da crise.

Mais grave, no entanto são episódios como o da jovem italiana de 19 anos, Valentina Wang, nascida no Veneto e de ascendência oriental que foi agredida e insultada um mês atrás num trem, em função de suas feições orientais. Ocorrências como esta já prenunciavam o que hoje é registrado como a mais feroz campanha de ódio étnico contra chineses. 

Essa é uma doença cujo combate demandará esforços ainda maiores que os empreendidos diante do coronavírus e que já se propagou para além das fronteiras italianas.

Arnaldo Cardoso, cientista político. 

Redação

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  1. “Já passou a época dos heróis, demiurgos e reis para a história, das catástrofes para a geologia – hoje é o átomo aqui, ali o infusório, acolá a vil plebe e a multidão dos pequeninos que definem, explicam e governam o mundo.” (João Ribeiro, Páginas de Estética, p. 56.)

    O Mito não vai encarar o coronavirus?

  2. As frustrações, o pânico e as divergências intolerantes são os principais ingredientes para a cultura do ódio. Já estão entranhadas na mentalidade de muitos. As situações desconfortáveis que vem e ainda vão surgir, formam o solo fértil que é arado através da falsidade, da ocultação e fragmentação da verdade. Os algoritmos apenas ajudam a propagar mais rápido o que as pessoas (agora perturbadas) estão vivenciando.

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