‘Fake news’, narrativas ‘fake’ e a ordem neoliberal, por Franklin Frederick

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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‘Fake news’, narrativas ‘fake’ e a ordem neoliberal         

por Franklin Frederick

                       “O súdito ideal do regime totalitário não é o Nazista ou o Comunista convicto, mas sim uma pessoa para quem a distinção entre o fato e a ficção, entre o verdadeiro e o falso, não mais existe”

 Hannah Arendt, As Origens do Totalitarismo

As “fake news” são um fenômeno bastante importante e, com razão, tem sido amplamente discutidas e denunciadas.Igualmente importante, porém, são as narrativas “fake” e estas não tem recebido a devida atenção crítica.  O que distingue as “fake news” das narrativas “fake” é a duração no tempo: enquanto as “fake news” são episódicas, as narrativas “fake” se impõem como “verdades” durante longos períodos de tempo, muitas vezes se incorporando à própria cultura. As “fake news” podem, claro, ter efeitos destrutivos a longo prazo mas, em si mesmas, são passageiras. Já as narrativas “fake” funcionam como uma referência permanente quase inconsciente, aquilo que tomamos como “evidente” e que não precisa ser questionado.

A “inferioridade” da mulher, por exemplo, é uma narrativa “fake” que nos acompanha há alguns milhares de anos e sobre a qual se assenta toda a estrutura patriarcal. Historicamente, apenas recentemente esta narrativa “fake”  vem sendo questionada e superada. A “superioridade” da “raça branca” é outra narrativa “fake” que nos acompanha há algumas centenas de anos, tendo justificado por um lado a escravidão e a exploração economica de negros e indígenas, gerando, por outro lado, o racismo. O mais importante é compreender que a ordem capitalista neoliberal e as hierarquias socias dela decorrentes dependem fundamentalmente, para a sua manutenção, destas narrativas “fake”. 

O movimento profundo de nosso tempo porém é de questionamento e superação destas narrativas “fake” , colocando em risco todo o “establishment” atual e o próprio sistema capitalista. A reação desesperada da ordem neoliberal a este desafio colocado pela sociedade é de tentar reafirmar e  impôr, por todos os meios possíveis, as narrativas “fake” como “verdades” inquestionáveis. Nos EUA, por exemplo, a eleição de Donald Trump revela claramente o desespero da narrativa “fake” da “supremacia branca”- e de tudo dela decorrente- de se manter no poder.

No Brasil, as igrejas pentecostais e as forças em torno do candidato Jair Bolsonaro são os principais instrumentos de imposição de narrativas “fake” que já deveriam ter sido abandonadas há muito tempo, como, por exemplo, nas questões de gênero e de sexualidade. A luta que se trava no Brasil, hoje, é entre estas diversas narrativas “fake” que tentam frear e impedir o progresso social e as novas narrativas que estão se construindo em todo o mundo. Neste contexto, o assassinato de Marille Franco talvez seja o símbolo maior desta luta, pois Marielle era a expressão pública mais completa deste movimento profundo de nosso tempo, de  desafio e questionamento de narrativas “fake” ainda enormemente difundidas no Brasil – narrativas “fake” sobre um “tradicional papel da mulher”, sobre gênero, sobre política. O assassinato de Marielle é também a tentativa de assassinar o novo, de impedir o movimento de libertação da sociedade e da cultura do peso das narrativas “fake” e de suas consequências. Marielle Franco é um desafio permanente ao sistema das narrativas “fake”, daí a hostilidade das forças reacionárias à sua memória.

O antipetismo histérico que tomou conta de grande parte do país ultimamente foi construído em cima de uma prévia narrativa “fake”  sobre o comunismo – e a esquerda em geral – presente em nossa cultura há mais de cem anos. Como escreveu a ativista americana Angela Davis em sua autobiografia:

“O impacto psicológico do anti-comunismo sobre as pessoas comuns neste país (EUA) é muito profundo. Há alguma coisa na palavra “comunismo” que, para as pessoas não esclarecidas, invoca não apenas o inimigo, mas também algo imoral, algo sujo.”

É exatamente assim que muita gente hoje no Brasil reage ao PT – como algo imoral e sujo.  Este antipetismo não poderia ter sido contruído tão facilmente no imaginário social brasileiro se esta narrativa “fake”  sobre o comunismo já não estivesse há décadas presente em nossa cultura, com os mesmos efeitos descritos por Angela Davis.

Várias “fake news”  tem o objetivo de reforçar narrativas “fake” e, por outro lado, muitas “fake news”  dependem, para a sua credibilidade, de narrativas “fake” como referência ou como pano de fundo. Deste modo, o combate às “fake news”  passa necessariamente pelo combate às narrativas “fake” , porém, salvo algumas exceções, estas tem permanecido virtualmente intocadas.

Como afirmei anteriormente, as narrativas “fake” são fundamentais para a manutenção do sistema capitalista e da ordem neoliberal. Exatamente por isso, as “fake news”  são o instrumento utilizado pelas forças políticas comprometidas com a manutenção ou com a expansão da ordem neoliberal para alcançar e se perpetuar no poder. A verdade sobre a ordem neoliberal – seu profundo desprezo pela democracia, pelo meio ambiente e pela própria sociedade – não tem nenhum apelo popular, muito pelo contrário. Sendo assim, partidos ou movimentos políticos comprometidos com o neoliberalismo não podem, por definição, falar a verdade sobre si mesmos e seus objetivos.O uso de “fake news”  – ou da violência – são suas únicas alternativas. A ordem neoliberal só pode se manter através da mentira – narrativas “fake” e “fake news” – ou da violência.

Dentre as diversas narrativas “fake”  que se impôs à sociedade para impedir a sua evolução e submete-la à ordem neoliberal,   três me parecem ser as principais:

1- Que o capitalismo – via mercado – é o único modo “racional” de organização da economia e o único caminho para o desenvolvimento econômico e social.

2- Que países como a Inglaterra e os Estados Unidos se desenvolveram justamente por serem uma economia de livre mercado.

3- Que os Estados Unidos defendem a democracia e os direitos humanos.

Destas narrativas “fake” decorrem várias outras, como, por exemplo, a de que capitalismo e  democracia são compatíveis.

Sobre o ponto 1 deve-se reconhecer que uma das grandes conquistas do capitalismo foi a de construir para si mesmo uma imagem de “racionalidade”, quando o que é mais óbvio em qualquer análise sobre o funcionamento REAL do sistema capitalista é justamente a sua profunda irracionalidade, seu desperdício intrínseco de recursos naturais e humanos, sua profunda hostilidade a qualquer forma de organização racional da economia que não coloque o lucro acima de qualquer consideração. É justamente a irracionalidade do sistema capitalista, levada ao seu extremo pela ordem neoliberal,  que atualmente põe em risco a própria sobrevivência do planeta. Poluição química de solos e água pelo uso de pesticidas; aquecimento global; extinção em massa de diversas espécies de animas, plantas e insetos; erosão de direitos sociais duramente conquistados; risco de guerras com o uso de artefatos nucleares; aumento da pobreza e concentração de renda sem precedentes na história humana: estas são apenas algumas das consequências atuais da “racionalidade” do sistema capitalista. Que haja outros modos de organizar a economia e promover o desenvolvimento social e econômico é um fato que, por definição, não pode ser aceito dentro desta narrativa “fake”  que tem o único propósito de continuar a manter o poder – e os benefícios – dos defensores da ordem neoliberal, os Estados Unidos à frente.

Sobre o ponto 2, qualquer história séria da economia mostra que, ao contrário de se entregarem ao livre mercado e à “sabedoria”  do setor privado, a Inglaterra e os Estados Unidos se desenvolveram graças a um protecionismo exarcebado da indústria nacional e de forte investimento do Estado em setores fundamentais como a metalurgia e a rede ferroviária. Tanto a Inglaterra quanto os Estados Unidos só se entregaram ao “livre mercado” quando suas economias estavam desenvolvidas a ponto de praticamente não haver competição para os seus produtos – mas voltaram a adotar medidas protecionistas assim que se viram ameaçados pelo desenvolvimento de outros países. É flagrante que NENHUM país se desenvolveu seguindo os preceitos do livre mercado, mas apenas dentro da visão imposta por esta narrativa “fake”. Como com todas as narrativas “fake”, o objetivo é, mais uma vez, IMPEDIR o desenvolvimento e manter a dominação econômica dos EUA e de sua ordem neoliberal. O eminente historiador americado Gabriel Kolko assim descreveu esta narrativa “fake”  do livre mercado no livro “After Socialism” (Depois do Socialismo):

“Nenhuma teoria leva em consideração como e por quê os mecanismos de mercado que os ideólogos descrevem e , principalmente, prescrevem para outros, simplesmente não existem nos países desenvolvidos.(…) Ideologicamente, Washigton favorece o “livre mercado”  e é contra outras nações darem subsídios ou manterem a propriedade de setores de suas economias. Os EUA farão esforços quixotescos para conseguir que outros países ou regiões adotem o “livre mercado” e privatizem setores vitais como o do petróleo. Washington tem uma fé essencialmente religiosa nas alegadas virtudes da doutrina do “livre mercado” mas na prática (…) O Governo Federal vai subsidiar grandes setores econômicos politicamente bem colocados – desde produtores de equipamentos militares até grandes produtores agrícolas e menos impostos para os ricos (…) Os Estados Unidos são os principais violadores dos princípios do livre mercado.”

Por fim, a narrativa “fake” de que os Estados Unidos defendem e promovem a democracia e os direitos humanos se encontra de tal maneira arraigada na nossa cultura e é tão fundamental para a manutenção da ordem neoliberal internacional que questiona-la equivale a cometer o maior de todos os pecados, a maior de todas as blasfêmias! Mas neste caso o contraste entre a narrativa “fake” e a realidade histórica é tão flagrante que é mesmo supreendente que, apesar de todas as evidências em contrário, a narrativa “fake” ainda prevaleça, sendo  por isso mesmo a maior prova da eficácia das narrativas “fake” em distorcerem a percepção da realidade. O fato é que em inúmeros casos os EUA intervieram para derrubar governos democraticamente eleitos e se aliaram com alguns dos piores regimes autoritários e genocidas com o objetivo de defender os interesses de suas corporações e a “estabilidade” da ordem capitalista.

Uma pequena lista, longe de ser exaustiva, destas intervenções, será suficiente para  mostrar a realidade por trás desta narrativa “fake”. Comecemos, pelo seu simbolismo na América Latina, pelo golpe que derrubou o Presidente eleito da Guatelama, Jacobo Arbenz, em 1954. Passo a citar aqui passagens do livro “Killing Hope” ( Matando a Esperança – um título bem apropriado!) de William Blum que renunciou ao seu cargo no Departamento de Estado dos EUA em 1967 devido á sua oposição à guerra do Vietnam.

“A quem pode recorrer uma pobre república de bananas quando um exército da CIA  invade o seu território e aviões da CIA estão bombardeando o país?” – pergunta William Blum.

“Os líderes da Guatemala tentaram tudo – as Nações Unidas, a OEA, outros países, a imprensa internacional e até mesmo os próprios EUA, na desesperada esperança de que tudo não fosse mais do que um mal entendido e que, no final, a razão prevaleceria. Nada ajudou. Dwight Eisenhower, John Foster Dulles e Allen Dulles haviam decidido que o Governo legalmente eleito de Jacobo Arbenz era “comunista” e portanto tinha que ser deposto. (…) Em meio às preparações (dos EUA) para derrubar o governo, o Ministro de Relações Exteriores da Guatemala, Guillermo Toriello, lamentou que os Estados Unidos considerassem como “comunista” toda manifestação de nacionalismo ou independência econômica, qualquer desejo de progresso social, qualquer curiosidade intelectual e qualquer interesse em reformas liberais progressistas.”

Desde então este quadro não mudou e as sucessivas intervenções dos EUA seguirão o mesmo padrão: impedir o desenvolvimento nacional e a independência econômica dos países sob a sua esfera de influência, até o golpe no Brasil e a prisão do Presidente Lula, condenado juistamente por tem ousado levar adiante uma política de desenvolvimento nacional e independência econômica.

Ao golpe na Guatemala seguiram-se, entre outros, o  golpe e o assassinato de Patrice Lumumba no Congo em 1964, o golpe no Brasil também em 1964, Ghana em 1966 – derrubando o governo de Kwame Nkrumah – o golpe no Chile contra o governo eleito de Salvador Allende em 1973, sem mencionar o apoio à sangrenta ditadura militar na Argentina, o apoio à ditadura do General Pinochet ainda no Chile, à ditadura de Ferdinand Marcus nas Filipinas… a lista é longa. O objetivo é sempre o mesmo: proteger os interesses das corporações norte americanas e evitar o desenvolvimento nacional,  com violações de direitos humanos , torturas e assassinatos em larga escala.

Não podemos nos enganar. Nas próximas eleições no Brasil a escolha será entre a submissão a estas narrativas “fake” e a consequente consolidação do Brasil como uma nova colônia ou um projeto de nação soberana e independente. Como o candidato Jair Bolsonaro e as forças que o apóiam não podem reconhecer publicamente que o seu projeto é entregar as riquezas naturais e bem públicos do país à rapina do capital internacional e transformar o país definitivamente numa nova colônia, pode-se contar com uma enxurrada de “fake news” de proporções bíblicas para continuar convencendo seus eleitores, distanciamdo-se de qualquer discurso racional e apoiando-se cada vez mais na mentira, no ódio e na violência intrínsicas ao seu projeto político de submissão completa à ordem neoliberal.

Em um outro artigo  tentei mostrar as relações entre os EUA e o fascismo na América Latina . Só será possível derrotar o fascismo que se alastra no Brasil e combater eficazmente suas “fake news”  desafiando as narrativas “fake” que o alimentam e legitimam.

O projeto de um Brasil como uma nação livre, independente e soberana, com desenvolvimento econômico e social, só é possível libertando o país das amarras das narrativas “fake”  que o tem subjugado até agora. Cabe a nós construir com alegria, solidariedade e justiça nossa própria narrativa, tomar o controle de nosso destino e escrever nossa própria história.

Franklin Frederick

 
Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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