
Falso Dilema entre Capitalismo Industrial ou Capitalismo Financeiro
por Fernando Nogueira da Costa
Analiso o capitalismo como um sistema complexo emergente das interações entre seus subsistemas. São compostos pelas diversas atividades econômico-financeiras. O sistema capitalista, antes da Revolução Industrial, exploradora da força de trabalho na linha de produção, já era financeiro e comercial.
O subsistema bancário não é uma coisa inútil ou desnecessária ao capitalismo. É um componente-chave, dada sua importância social em atender a todos cidadãos com suas funções básicas: pagamentos, gestão das reservas financeiras e financiamentos.
É uma mitificação falar em uma recente “fase do capitalismo financeiro” ou “financeirização”. Rudolf Hilferding, em seu livro clássico, “O Capital Financeiro”, publicado em 1911, já salienta ambos os processos de concentração, o dos bancos e o das indústrias, não só se desenvolvem simultaneamente, como também há entre eles interação positiva capaz de fazê-los acumular mais com fusões e aquisições.
Hilferding estudou o caso alemão: a fusão ou a associação do capital industrial e do capital bancário no denominado “capital financeiro”. Sua definição pode confundir o leitor. Há possibilidade, por um lado, de haver o domínio do capital bancário sobre o industrial. Por outro, a unificação de ambos no capital financeiro apaga toda a distinção entre as diferentes origens de capital. Há passagens do livro em um ou outro sentido.
Pode-se, assim, fazer leitura restrita do conceito, no espaço e no tempo, pensando a análise de Hiferding refletir somente particularidades dos bancos universais alemães na virada para o século XX. Mas é viável também fazer-se leitura criativa do capital financeiro, enxergando-o como característico da fase do capitalismo monopolista, quando se amplia o circuito de realização de lucro com capital pela acumulação financeira. Muitos marxistas veem essa circulação se dar através de “órbita autônoma”, relativamente, fora do circuito próprio do excedente gerado na órbita produtiva.
A acumulação financeira se daria, então, mediante a criação de capital “fictício”, ou seja, a emissão de títulos de propriedade (ações) com direito à renda (lucros e dividendos), cuja valorização depende de operações especulativas no lançamento ou na circulação dos títulos em mercados secundários de bolsa de valores. Separaria as funções de gestores das empresas e de capitalistas, ampliando essa categoria para todos os acionistas, inclusive do varejo de alta renda (“classe média”).
A polêmica da “financeirização” seria se a associação do capital industrial, mercantil e bancário se daria sob a hegemonia do capital financeiro. Este, ao promover maior centralização do capital em direitos de propriedade, teria o controle do processo global da acumulação. Sustento: o sistema capitalista depende de interações dos subsistemas.
No caso norte-americano, o papel do sistema bancário foi menor no processo de concentração. Mais relevante foi o processo de emissão primária de ações e suas cotações em mercado secundário. Isso explicaria o baixo grau de endividamento das empresas americanas, a importância do mercado de ações e a não grande dependência do capital industrial de alavancagem financeira, concedida pelo capital bancário, levando ao endividamento e posterior venda/compra de ações para fusões e aquisições.
O economista Michael Hudson, marxista norte-americano, ex-analista de Wall Street, professor e consultor inclusive do PCCh, expõe didaticamente sua ótica da “financeirização” em entrevista ao jornalista Pepe Escobar sobre aspectos econômicos do conflito China X EUA: https://consortiumnews.com/2021/01/07/the-consequences-of-moving-from-industrial-to-financial-capitalism/
O Ocidente chegou ao fim de uma longa a expansão de 75 anos, ocorrida desde 1945. Há uma ilusão de a América estar se desindustrializando em função da China.
Hudson não acha possível a América se reindustrializar, recuperar seus mercados de exportação, se sua economia se mantiver na forma como está organizada hoje, financeirizada e privatizada. Para ele, a estrutura de custos é muito alta nos EUA.
A riqueza não seria mais construída, nos Estados Unidos, pela indústria. Seria acumulada, financeiramente, por meio de ganhos de capital. Ocorreriam por aumento dos preços de imóveis e ações, além da capitalização dos títulos com juros compostos.
O atual afrouxamento monetário com a taxa de juro real negativa teria sido uma sorte inesperada para o 1% mais rico da população. Todos os mercados secundários de estoques de ativos (ações, títulos de dívida pública e direta, imobiliário) estão em alta, enquanto o fluxo de renda do restante da economia está em queda.
Hudson não reconhece o fenômeno ser conjuntural: com a taxa de juro “zerada” e o consequente afrouxamento monetário o excesso de liquidez se dirige para mercados de ativos diversos. Provoca a chamada “inflação de ativos” com a alta de suas cotações sem fundamentos na antiga produção industrial – automobilística, petróleo, etc. – , mas sim nas big-techs e no comércio eletrônico, ambos ligados à tecnologia de informações.
Afirma, categoricamente, “os Estados Unidos não estão produzindo mais bens materiais”. Ainda padece do uso equivocado da Teoria do Valor-Trabalho marxista. Acha o trabalho produtivo ser apenas o envolvido na produção de bens materiais. Não reconhece os trabalhadores assalariados em serviços também produzirem mais-valia.
Isso fora o trabalho não mais assalariado, ou seja, autônomo ou por conta própria (“pejotizado” no Brasil) resultar também em valor agregado. O trabalho empregado na troca de propriedades privadas, em mercado secundário, seria o único não classificado por Marx como produtivo. No entanto, ele reconhecia o trabalho no processo de circulação não ser inútil, muito antes pelo contrário, seria indispensável, porque permitiria a realização do lucro pela circulação monetária, financeira e de mercadorias.
Para Hudson, a América não fabricaria mais coisas industriais. Se é para ganhar dinheiro com uma empresa industrial, a opção norte-americana seria por comprar e vender a empresa por meio de ações. Não haveria mais empreendedores para tomar empréstimos e aumentar a rentabilidade patrimonial com produção em maior escala da empresa. Ele reduz tudo, nos Estados Unidos, à economia de mercado de capitais.
Não reconhece a especificidade do elevado índice de custo-de-vida em Nova York, inflado pelo excesso de demanda por imóveis – e consequente alto custo e alugueis –, aliás, como outras metrópoles cosmopolitas: Londres, Paris, Tóquio, etc. É possível morar em cidades do interior com custo de vida inferior…
Ele generaliza o aluguel alto de Nova York, para todo o país, por conta de ver todos edifícios transformados em imóveis de alto valor. Além de todos os custos a pagar por moradias, os americanos ainda têm de pagar muito em educação, cuidados médicos, transporte. Assim, o custo da mão de obra norte-americana supera muito o estrangeiro.
A moradia nos Estados Unidos agora absorve cerca de 40% do salário do trabalhador médio. Com mais gasto com seguridade social, previdência complementar, plano / seguro de saúde, crédito educativo consignado e imposto de renda, o trabalhador americano, no caso, o nova-iorquino de “colarinho branco”, pode gastar apenas cerca de um terço de sua renda na compra de bens e serviços produzidos. Todo o restante vai para o setor FIRE [The Finance, Insurance and Real Estate Sector], isto é, o setor financeiro, de seguros e imobiliário, além dos outros monopólios.
Essencialmente, os norte-americanos vivem a chamada economia de busca de renda [a rent-seeking economy], e não em uma economia produtiva. Para Hudson, a América costumava ter capitalismo industrial, no século XIX, quando o país ficou mais rico, mas depois mudou para o capitalismo financeiro. Antes, o governo oferecia serviços públicos a custos baixos para os empregadores não terem de pagar mais à mão de obra – e arcar com custos salariais elevados. Tudo isso foi privatizado nos últimos cem anos.
Hudson chega a sugerir o absurdo de “o governo norte-americano ter sido socialista no século XIX”! Não mensura o dito e nem se pergunta: o crédito estudantil sob a forma de crédito consignado não propiciou uma enorme elevação do número de formados em Ensino Superior, moradores nas duas costas dos EUA e eleitores do Partido Democrata?
Snif, snif, choram as “viúvas” por supostamente ter morrido o capitalismo industrial, existente no século XIX, quando explorava o proletariado à vontade em longas jornadas de trabalho. O saudosismo industrialista de pressupostos “progressistas” é tão comovedor como o ludismo! Clamam pela reversão do tempo, isto é, da história!
O marxista à outrance confunde o equívoco futurista de Marx – a classe operária industrial como sujeito revolucionário por conta de determinismo histórico – com o fato de o capitalismo ter sido revolucionário frente aos modos de produção anteriores, seja o feudal na Europa até o século XIV, seja o escravista nas colônias até o século XIX.
Era para o operariado se livrar da classe bancária, de proprietários, rentista. “Todas elas levam apenas à classe industrial arcar com custos desnecessários para a produção”.
Como é lugar-comum nos adeptos do “cheneísmo” (seguidores de François Chenais), Hudson demoniza os banqueiros e os rentistas com a hipótese absurda de se livrar deles dispensaria o mercado financeiro e o mercado de capitais. Pergunto: como se associariam os capitais, para propiciar a alavancagem financeira com empréstimos de recursos de terceiros, elevando a escala dos negócios empregadores de mão-de-obra?!
Fernando Nogueira da Costa – Professor Titular do IE-UNICAMP. Autor de “Golpe Econômico: Locaute ou Nocaute da Economia Brasileira” (2020). Baixe em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/
E-mail: [email protected].

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