Feminicídio e o novo Protocolo Nacional de Investigação, por Cristiane Brandão Augusto

Além da flagrante opacidade, a Portaria fere mandamentos constitucionais ao descumprir compromissos internacionalmente assumidos e ratificados por nosso País.

Foto Carta Capital

Feminicídio e o novo Protocolo Nacional de Investigação

por Cristiane Brandão Augusto

Publicada ontem, 23/06/2020, no Diário Oficial da União, a Portaria 340 do Ministério da Justiça e Segurança Pública cria o novo “Protocolo Nacional de Investigação e Perícias nos Crimes de Feminicídio”.

Sem informar o conteúdo deste Protocolo, a Portaria estabelece que o mesmo visa a “subsidiar e contribuir para a padronização e uniformização dos procedimentos aplicados pelas polícias civis e pelos órgãos de perícia oficial de natureza criminal dos Estados e do Distrito Federal na elucidação dos crimes de feminicídio”. O restante é confidencial e seu conhecimento caberá apenas às Polícia Civis e aos órgãos de perícia criminal.

Além da flagrante opacidade, a Portaria fere mandamentos constitucionais ao descumprir compromissos internacionalmente assumidos e ratificados por nosso País. Como signatário de um conjunto de Diplomas regionais – o que inclui a Convenção de Belém do Pará –, o Brasil deveria especialmente atentar para a recomendação da Conferência dos Estados Partes desta Convenção e da Associação Ibero-Americana de Ministérios Públicos (AIAMP) pela adesão ao “Modelo de Protocolo latino-americano de investigação de mortes violentas de mulheres por razões de gênero (femicídio/feminicídio)”.

Documento de grande relevância, este Protocolo do Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) e da Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres (ONU Mulheres) foi significativamente ansiado por sua competência nas instruções aos sistemas de justiça criminal, nas orientações aos profissionais das perícias técnicas e da segurança pública em geral.

Propõe ajustar, de forma eficaz, o olhar investigativo às questões generificadas. Minimiza a violência institucional ao evitar a revitimização das vítimas diretas de tentativas de feminicídio e das vítimas indiretas deste mesmo crime (consumado ou não) e ao garantir-lhes uma reparação integral.

Assim, dentre os objetivos está o de promover “correto enquadramento penal e decisão judicial isenta de estereótipos e preconceitos de gênero que sustentam a impunidade, criam obstáculos ao acesso à justiça e limitam as ações preventivas nos casos de violência contra as mulheres”.

Talvez o Ministério da Justiça desconheça, mas o Brasil de fato aderiu a este Protocolo desde abril de 2016, concretizando-o nas “Diretrizes Nacionais para investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres”.

Ingenuidade pensar em desconhecimento? Ou devemos supor que a Portaria tem justamente a finalidade velada de revogar indiretamente tais Diretrizes? Ademais, novas orientações “sigilosas” não estariam violando a transparência e o processo democrático de participação, debate e escuta dos movimentos feministas e sociais?

Com a adoção de mais uma medida autoritária, soturna e turva, o Governo Bolsonaro mira no fim das políticas públicas voltadas para o exercício da plena cidadania feminina e para a garantia dos Direitos Humanos das mulheres. Genocídio em tempos de COVID-19 e feminicídio de Estado são faces da mesma moeda: pandemias que têm raça, classe e gênero.

Cristiane Brandão Augusto – Prof. da UFRJ (NEPP-DH e FND), Pós-doutora em Estudos de Gênero (UNAM), Coordenadora do Observatório Latino-americano de Justiça em Feminicídio – Seção Brasil, Membro da ABJD.

Redação

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