Fetichizar o pobre para esconder a própria pobreza, por Dalmoro

Imagem: TecMundo

Fetichizar o pobre para esconder a própria pobreza

por Dalmoro

Em artigo na Carta Capital, a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, comenta as repercussões da pesquisa da Fundação Perseu Abramo, ligada ao PT, sobre a “periferia liberal”. Não retomo o texto, recomendo sua leitura integral [http://bit.ly/2oFsIvg].

Contudo, uma frase dela me pareceu lapidar e emblemática: “nosso fetiche mesmo são os pobres”.

Do porquê desse fetiche, ela levanta algumas possibilidades, como o desejo de poder: delimitar o que o pobre é (seria), o que ele gosta e precisa, e conseguir convencê-lo dessa narrativa – ao menos em parte – ajuda a garanti-lo como massa de manobra para interesses outros – à esquerda e à direita. Foi a tática de dominação colonialista denunciada por Franz Fanon, e ainda hoje a pleno vapor – apenas em versões um pouco menos explícitas. Eu arrisco outra: afim à mentalidade da casa-grande e da academia tupiniquim (seu braço intelectual), faltam aos pesquisadores de boa índole o interesse (e talvez a capacidade) de realizar auto-reflexão e auto-crítica: daí a escassez de pesquisas quando o objeto é a classe média ou alta: presa a um eu ideal, nossa elite intelectual tem medo de se deparar com o vazio que a habita e a mediocridade que produz – viver na ilusão é mais gostoso. Pinço dois exemplos que presenciei em meus longos (e ainda incompletos) anos nos bancos acadêmicos.

O primeiro foi em uma atividade de greve, se não me engano em 2004. Uma professora de história da Unicamp solta que ela é uma proletária como todos os trabalhadores do Brasil, a exploração que ela sofre é a mesma que o terceirizado da limpeza. Soa absurda, mas a comparação foi exatamente essa: um professor universitário concursado, com estabilidade e autonomia, salário inicial de dez mil reais (hoje), que faz parte do 2% mais rico do país, estaria em situação igual à de alguém nos 40% mais pobre, um trabalhador terceirizado, precarizado, instável, com direito a uma folga semanal, e olhe lá, usando uniforme quase igual aos dos presidiários que trabalhavam na universidade, com rendimentos que ao fim de um ano serão equivalentes a um mês dos da professora. Alguns alunos esboçaram indignação, mas a autoridade de seus títulos e o respeito de seus pares (ainda que boa parte marxista que adora falar da classe proletária) calaram esses incautos (dentre os quais este escriba). Talvez por acharem que estão em pé de igualdade com os faxineiros que professores universitários possam afirmar qualquer aura superior aos dos reles trabalhadores, explícito na recusa de participar do sindicato dos trabalhadores. Só falta afirmar – talvez o segure pudores esquerdistas – que sua posição seria fruto exclusivo de seu esforço, de seu mérito.

O segundo exemplo é de um antropólogo com quem morei. Seu objeto de estudo do mestrado era narrativa de moradores de rua. Foi em 2012. A rua Augusta ainda começava seu processo de “gourmetização”: predominava ainda botecos baratos, inferninhos mambembes, casas de show descoladas e diversificada fauna social. Esse colega de casa certa feita me perguntou como eu suportava freqüentar a Augusta, ao invés de ir para os bares da Vila Madalena ou Pinheiros. Imaginei que sua preferência fosse pelo fato do público freqüentador da zona oeste ser mais homogêneo: universitários classe média-alta e jovens adultos bem-sucedidos, geralmente brancos, meio intelectuais, meio de esquerda, como nós dois. Nada disso, antes da minha resposta, emendou sua incompreensão: a Augusta era cheia de mendigos enchendo o saco pedindo dinheiro. Então era assim: ele encher o saco dos pobres e ganhar dinheiro com isso, tudo bem, é ciência, é para o bem da nação e dos pobres, por mais que eles não saibam – mas nem por isso não devem deixar de atender o pesquisador branco com diligência e prestatividade. Ele ser incomodado por esses mesmos pobres, pedindo dinheiro, um cigarro ou atenção, aí é encheção de saco (reconheço que boa parte das vezes incomoda, mas já tive ótimas conversas com essas pessoas). Entendi ali sua objetividade cientifica: não apenas distanciamento com seu objeto de pesquisa, mas desdém, mesmo – um meio para alcançar um fim particular, e que se joga fora depois de usado, como um objeto descartável qualquer, copo plástico, hashi de madeira ou pessoa pobre. Achei apenas incompleto seu raciocínio: faltou defender áreas de confinamento para mendigos e moradores de rua não incomodarem os cidadãos de bem.

Me empolgo e dou um terceiro exemplo, esse mais breve. Muitos dos colegas de IFCH idolatravam Criolo, quase choravam ao cantar Não existe amor em SP, mas ficavam indignados, diziam que ele tinha pisado na bola em Sucrilhos, quando diz “Cientista social, Casas Bahia e tragédia/ Gosta de favelado mais que Nutella”. Desde sempre me perguntava dessa decepção que a música acarretava: pisado na bola ou no calo? Sempre calei, para não perder a amizade – ego de acadêmico é algo grande e frágil.

Sem negar relativa importância dessas pesquisas acadêmicas sobre pobre e pobreza em geral, raros são os intelectuais egressos da academia que conseguem chegar perto das análises de Mano Brown. Ele não tem instrumental teórico fundamentado, não tem pressupostos epistemológicos claros, falha fragorosamente no distanciamento científico; tem apenas vivência, empatia, conhecimento prático e sem se achar melhor que seus manos das quebradas, apesar de sua percepção arguta e da sua inteligência afiada, ele não fetichiza o pobre. E mais que isso: Mano Brown sabe como se comunicar com parte dessa população. Daí a necessidade de estigmatizar o rap e tudo a ele relacionado, a excluí-lo da grande imprensa, salvo em versões pasteurizadas classe média – como Gabriel O Pensador, na década de 90, contraponto branco e elitista aos versos que se fazia nos guetos. É nessa lógica que se insere a cruzada de Doria Jr. contra o graffiti e o pixo, dito explicitamente em seu preconceito e ódio ao pobre pelo seu secretário de cultura (sic), André Sturm: “Quero que o artista do Capão Redondo possa viver do que ele faz, mas não limitá-lo ao Capão Redondo. Por que eu não posso levá-lo para São Miguel, Santana ou Pirituba? E até para o Teatro Municipal? Claro, se ele for um rapper, não, mas de repente ele é um músico, um artista que posso levar ao CCSP”. Sem maiores comentários.

À elite intelectual branca, de esquerda, classe média, média-alta, talvez junto com a coragem de se olhar no espelho sem idealismos narcísicos venha a necessidade de rever os princípios que seu garantem relativo capital simbólico: o conhecimento produzido pela universidade e pelas regras científicas é mais um, importante, porém longe, muito longe de prescindir de uma fala de Brown, Ferréz ou outros, anônimos, mas dotados de uma capacidade de observação aguçada – pobres ou ricos. Reconhecer que seu objeto de estudo possa ser sujeito – sem ninguém a tutelá-lo ou a legitimar sua “autonomia” -, assim como compreender a si próprio – pretenso sujeito produtor de conhecimento imparcial e universalmente válido – como tão objeto quanto aqueles que fetichizam. Até lá, pelo visto, seguiremos discutindo esses exóticos seres chamados pobres, enquanto tomamos nosso bom vinho apreciando o abismo para o qual nossas elites econômicas empurram o país.

29 de abril de 2017

Redação

6 Comentários

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  1. Bolsa Família

    Essa discussão me lembra um post lido aqui no GGN, há alguns anos, sobre as críticas de certa “esquerda” ao referido programa social: “Onde já se viu dar dinheiro a pobre?”, “Tem de educá-los primeiro!”, “Vão gastar tudo em cachaça!”. A genialidade (que, a meu ver, só poderia ter vindo de Lula, quem de fato viveu a pobreza) do BF está justamente em dar dignidade ao pobre, ao possibilitar autonomia.

    Tem gente que definitivamente não atentou para o significado de defender direitos iguais para todos…

  2. Concordo em gênero, número e

    Concordo em gênero, número e grau.

    Também trabalho em contato com minorias e é flagrante o cinismo de colegas que cultuam o “pobre” como objetivo transitório e impessoal de pesquisa. O discurso não casa com a prática.

    As universidades transbordam de esquerdistas repetidores de bordões acadêmicos, de citações de clássicos e de erudição européia. Mesmo os advindos das profundezas proletárias se transformam ao chegar na classe abastada dos professores universitários.

    Tenho a convicação que não é mais possível manter a academia e os institutos de pesquisa nessa postura apática, acrítica e completamente destoante da realidade em que vivem.

    Quase todo o dinheiro gasto com pesquisa social no Brasil tem um único propósito: encher o CV Lattes dos ilustres doutores com inúmeras folhas, sem frutos.

  3. Alguns artistas foram autocríticos

    Uma das poucas vezes que gente da classe média se questionou a si mesma no Brasil (e com muita repercussão pública) foi o pessoal do Rock Brasil da década de 80: Legião, Engebheiros, Paralamas, Titãs etc. Eram garotos cujo destino seria se tornar o macho-adulto-branco típico, mas que questionaram este destino social. Antes, Belchior e Raul Seixas faziam os mesmos questionamentos angustiados.

    Mesmo assim, alguns roqueiros que pareciam libertários se tornaram, hoje, reacionários de carteirinha, como Lobão e Roger (do Ultraje a Rigor). E conheço uma penca de fãs do Rock Brasil, hoje na casa dos 40/50 anos, que se tornaram fanáticos de direita e anti-(Lula-PT-comunista).. O que confirma a regra de que a maioria da classe média dita de esquerda ou libertária, só o é da boca para fora, pra fazer bonito e posar de bom moço. Pois na hora em que as coisas “de esquerda” começam a se tornar realidade, os brancos bem nascidos e bem educados (as “pessoas de bem”) se refugiam em seus preconceitos facistóides.

    1. alguns…..

      Antes de tudo: Gestapo Ideológica. Esquerdopatia Tupiniquim de mais 1 século. Elite que não é elite. Não aceita que seja o que é. São os mesmos a bradar contra a Agropecuária Nacional, rotulada preconceituosamente de Agronegócio, sem nunca ter pisado no barro. Ambientalistas de shopping center que vão de carro de São Paulo até Curitiba e nem param no caminho. E se quer sabem que trafegaram por 500 Kms da Floresta mais importante e diversificada do planeta. Estrutura mumificada a repetir os mesmos jargões por um século inteiro. Dito isto, queria dizer que tudo isto nós sabiamos. E eles também. Mas antes de chegar ao Poder, de encher bolsos e posições financeiras, se encostarem em empregos e pensões públicas nababescas e vantajosas, morreriam sen admitir tal prática. Mas tudo isto, é claro, sempre velando pelo pobre, como o articulista exemplificou. Para que lutar por permitir que o povo se defenda, se podemos fazer isto pelo povo. E sermos muito bem remunerados por tamanha batalha, não é mesmo? O Brasil é de muito fácil explicação. abs. 

  4. A Professora da Unicamp é, sim, uma proletária

    “…um Professor é um trabalhador produtivo se ele não apenas trabalha as cabeças das crianças, mas extenua a si mesmo para enriquecer o empresário. O fato de que este último tenha investido seu capital numa fábrica de ensinar, em vez de numa fábrica de salsichas, não altera nada na relação” – Karl Marx

    Em regra, Professores Universitários fazem parte da classe média e a classe média pertence à classe baixa “A classe média faz parte da classe trabalhadoraRodrigo Choinski 19/08/2007 16:21 A diferença entre os pobres e a classe média é tão pequena, e a diferença entre a classe média e os ricos é tão gigantesca, que do ponto de vista meramente econômico é impossível traçar uma linha entre entre pobres e classe média.

    A frase abaixo é falsa:
    “A classe média, classe intermediária entre a burguesia e o proletariado”

    Não está nem perto de poder ser classificada como ‘classe intermediária’.

    A classe média diferencia-se apenas do ponto de vista ideológico, pois fazem parte da classe trabalhadora.

    Vejam dados do IBGE.” brasil.indymedia.org/pt/red/2007/08/391088.shtml

  5. “elite intelectual branca,de esquerda, classe média, média-alta”

    Exatamente assim. Todos os meus colegas de AGU que foram entusiastas do impeachment dizem “ter formação de esquerda”. Nenhum admite ser conservador ou ser de direita. Chegam ao cúmulo de declarar voto apaixonado em Aécio, ser contra as cotas (com direito a discursinho copiado do facebook), defender o Moro e continuar afirmando que são de esquerda.

    Outra grande verdade: ego de acadêmico é grande (eu diria infinito) e frágil, fragilíssimo. Discorde de um e perderá um amigo, colega ou qualquer que seja a relação dele com você. Todos falam das próprias opiniçoes e argumentos (ainda que sejam pessoais e não incluam a área de pesquisa/expertise dos mesmos) como argumento de autoridade, respaldado por seus mestrados e doutorados. Até cheguei a ter amizade com alguns acadêmicos mas não consegui manter a amizade. Justamente porque chegou o dia em que critiquei suas ideias/posições/opiniões. E olha que, quando relacionado à área acadêmica, minha crítica foi respaldada em artigos, dissertações e teses!

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