Ion de Andrade
Médico epidemiologista e professor universitário
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Fim da História ou transição ao socialismo?, por Ion de Andrade

Por Ion de Andrade

Tempos de perplexidade, a ideia de transição para algo que vá além dos marcos do capitalismo parece, desde a queda do muro de Berlim, caminhar para os livros de mitologia. Parte da esquerda abandonou a ideia do socialismo o que exprime, após um século de revoluções precedido de outro de “luzes” teóricas, a ideia de que estaríamos rendidos a um “fim da história”, à vitória total de um capitalismo que teríamos apenas que humanizar.

Entretanto, a explosão de interesses por obras como “O Jovem Karl Marx” ou a popularidade de Zizek, mostram que as brasas não estão frias e que o socialismo continua atraindo o interesse de muitos. Esses interessados intuem que o declínio contemporâneo das ideias do socialismo é passageiro, continuam socialistas e aguardam fatos novos ou novas concepções que possam repor a engrenagem em marcha.

Embora atual, inclusive devido à crise político-institucional que vivemos, a questão permanece relegada a um segundo plano mesmo nas discussões dessa esquerda de alma socialista. Tetanizados por uma conjuntura política que urge por ser enfrentada e pelas questões levantadas pelas disputas no Poder Legislativo e no Judiciário os seus melhores cérebros estão hoje ocupados com as lutas e não têm efetivamente tempo livre para conceber caminhos de longo prazo.

Com tantos incêndios a apagar, poucos podem se interessar, e é justo que seja assim, pela discussão de sabor bizantino quanto aos caminhos da revolução brasileira, quanto à sua natureza ou às conexões que possa estabelecer com as lutas do nosso povo pela democracia e pelo Estado Social. Por isso, claro, não há muito espaço para a discussão sobre as interfaces entre o “melhorismo” economicista que fomos consolidando ao longo de todo o século XX (e que o moldou) e o salto (se entendermos que há um) para a sociedade futura.

Entretanto, como dizia Rosa Luxemburgo, não se pode fazer das necessidades virtudes e se as lutas conjunturais se impõem não é porque sejam libertárias, mas porque são necessárias, pois, afinal há um inimigo que nos ataca.

Por isso, sem menosprezar a conjuntura, que é onde vivemos e morremos, nem as lutas legislativas e judiciárias, que nos ferem e exigem de nós energias e inteligência, me concentrarei na hipótese de que há tensionamentos em curso que sugerem uma transição ao socialismo, o que nos ajuda a orientar e a dar significado às duras lutas do presente, fato que, convenhamos, não é pouco.

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Ernest Mandel foi um economista marxista polonês relativamente pouco conhecido. É o autor da conceito do “Capitalismo Tardio” que caracteriza a fase atual desse modo de produção. Interessado pela ideia de uma transição que pudesse estar em curso no interstício do mundo capitalista, Mandel se fez a seguinte pergunta: “Se estivesse havendo uma transição ao socialismo, o que estaria acontecendo? ”

Longe de ser uma pergunta acadêmica, esse questionamento, que responderei à minha maneira, abre a possibilidade de um entendimento diagnóstico importante para a aferição da existência ou não de megatendências no interior da sociedade capitalista que possam ser difíceis de discernir observando apenas o cotidiano.

Se tomarmos a história da Europa como parâmetro veremos que, antes da Revolução Francesa, a sociedade europeia foi se tornando cada vez mais burguesa, os feudos foram sendo convertidos em países, consolidou-se com as grandes navegações um capitalismo mercantil, a ciência ganhou vida própria em relação à Igreja, os bancos foram ganhando um poder excepcional e, um belo dia, o feudalismo foi oficialmente sepultado.

Todo esse movimento foi o reflexo na economia e na superestrutura de um fortalecimento real da burguesia e de suas ideias ao longo daquela transição.

Diz Marx no Manifesto do Partido Comunista:

“Cada etapa da evolução percorrida pela burguesia era acompanhada de um progresso político corresponden­te. Classe oprimida pelo despotismo feudal, associação armada administrando-se a si própria na comuna; aqui, República urbana independente, ali, terceiro Estado, tri­butário da monarquia; depois, durante o período manu­fatureiro, contrapeso da nobreza na monarquia feudal ou absoluta, pedra angular das grandes monarquias, a bur­guesia, desde o estabelecimento da grande indústria e do mercado mundial, conquistou, finalmente, a soberania política exclusiva no Estado representativo moderno….

A burguesia desempenhou na História um papel eminentemente revolucionário.”

Se essa transição pôde ser acompanhada e registrada pela história no mundo feudal onde a burguesia ascendeu, o que estaria ocorrendo com o proletariado no mundo contemporâneo?

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O século XX foi atravessado por energias de magnitude tectônica, inúmeras revoluções socialistas ocorreram em países imensos como a China ou a Rússia e em países emblemáticos como Cuba ou o Vietnã. Ao mesmo tempo, a descolonização da África, (mas também as da China e do Sudeste asiático), a democratização da Europa no pós-guerra e depois a da América do Sul pós ditaduras, se deram sob forte influência das ideias do proletariado, como ilustram não somente as Repúblicas Populares fundadas na África pós colonial, como também as Democracias sociais da Europa e depois da América do Sul.

Internamente aos países do campo capitalista os sindicatos, no usufruto de um direito de greve que a duras penas conquistaram, tiveram êxito em lutas que resultaram em significativos aumentos da renda dos trabalhadores, consolidando, na Europa do século XX, um padrão de vida nunca antes experimentado por classes exploradas.

Esse ganho de renda permitiu ao proletariado emergir da esfera da sobrevivência e concentrar-se na melhoria da sua qualidade de vida o que trouxe importantes repercussões para o aprofundamento do seu processo emancipatório dado o seu maior acesso à cultura, à ciência ou ao exercício de uma cidadania mais robusta que veio a irrigar variados movimentos sociais. A burguesia, evidentemente, passou a disputar esse ganho de consciência com os seus valores tentando evitar que o processo emancipatório se completasse, razão porque ganharam tanto relevo nos dias de hoje os meios de comunicação de massas.

Apesar dessa disputa que limitou o alcance político do processo, o fenômeno foi maciço, principalmente nos países centrais e produziu mudanças profundas no próprio capitalismo que teve que adaptar-se a ele através do que ficou conhecido como consumo de massas, que se acompanhou de uma verdadeira explosão do setor de serviços.

Essa aparente “democratização” do capitalismo, não sejamos ingênuos, não poderia ocorrer espontaneamente. Ocorreu sob a pressão econômica e política de um proletariado que, por seu próprio esforço e lutas, havia assegurado renda além da sobrevivência capaz de produzir novos mercados alinhados aos seus interesses.

Mais recentemente, na América do Sul, a experiência brasileira, comandada por um partido que emergiu do mundo sindical, da cidade mais industrializada do país, conseguiu não somente tirar da miséria 40 milhões de seres humanos, como irradiar no subcontinente um ambiente político onde outros povos também lograram avanços.

O recuo secular da burguesia vem produzindo, entretanto, o ressurgimento reacionário da extrema direita que voltou ao parlamento alemão e vem crescendo em alguns países aparentemente com poder suficiente para produzir o caos por algum tempo.

Na América Latina governos golpistas e reacionários vêm capitaneando um retrocesso brutal nas áreas sociais, trabalhistas e previdenciárias. Tais governos estão, entretanto, desmoralizados e não se pode antever quanto tempo durarão.

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Acredito que é justo validar, tendo em conta a magnitude e a universalidade das mudanças políticas ocorridas no século XX, a hipótese de que há uma transição em curso cujo viés, nos mais diversos cenários, vem sendo a ação política do proletariado e a reação da burguesia. Com avanços e recuos essa ação produziu, em apenas um século, a democratização e a ampliação de Estados burgueses autoritários (acostumados a resolver as questões sociais à baionetas e sabres), a eclosão de inúmeras revoluções socialistas e a ocorrência de mudanças profundas na conformação do próprio capitalismo que incorporou uma economia de massas e viu explodir o setor de serviços para atender a um consumo decorrente de uma renda proletária duramente conquistada.

Aprofundarei essas ideias nos próximos artigos focalizando 1. O Protagonista desse processo, 2. O socialismo pós capitalista, 3. A concorrência entre o Estado de direito e as Repúblicas populares, em detrimento dessas últimas e em que isso foi estratégico para o proletariado e 4. A via brasileira ao socialismo.

Ion de Andrade

Médico epidemiologista e professor universitário

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