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Financês, por Fernando Nogueira da Costa

Financês

por Fernando Nogueira da Costa

Charlatões agem como se tivessem algum conhecimento. Aprenderam a se apresentar, aparentemente, como os sábios.

Conta-se uma estória para ilustrar. Um motorista de um ganhador do Prêmio Nobel da Química o acompanhava em uma turnê de palestras. Depois de assistir uma série delas, ele lhe disse já ser capaz de o substituir no palco, pois ele dizia sempre a mesma coisa. O acadêmico aceitou a proposta, pegou o boné de seu motorista e sentou na plateia.

Foi tudo bem até abrir o debate. Na primeira pergunta capciosa, o motorista respondeu: – Eu me admiro de você se dirigir a mim com uma pergunta cuja resposta até meu motorista sabe! Responda aí, fulano!

O charlatanismo no mercado financeiro exige apenas o conhecimento de algumas palavrinhas-mágicas do “financês”. Pronunciando-as, você não será entendido pelos leigos, mas será visto como sério candidato ao cargo de economista-chefe de um banco de negócios, quanto mais se tiver circulado pela porta-giratória do Banco Central do Brasil.

Nesse caso, em lugar do velho “viés de alta ou de baixa” você caprichará no sotaque caipira, tipo de Americana ou Piracicaba, e dirá: “forward guidance”. Os entendidos entenderão essa orientação do COPOM, isto é, Comitê de Política Monetária, lida como prescrição futura, “torna a função-resposta da politica monetária por parte do Banco Central mais transparente”. Bunitu, né?

Em outras palavras, nada mais é senão um revival [renascimento] do debate secular, encontrado na literatura, dos financistas demandarem regra em vez de arbítrio. Com a imposição de regras, os Zé Regrinhas acham serem capazes de evitar sua ação discricionária e impor submissão da Autoridade Monetária a O Mercado.

Este é visto com sobrenatural, porque é onipresente – e os mercadodores não se importam com a contradição lógica o torna impossível ser onipotente e onisciente ao mesmo tempo. Batalham justamente para ele ter o poder de prever o futuro e não ser necessário mudar seu anúncio desse futuro até o fim de um tempo imprevisível…

Os sábios-charlatões cobram esse anúncio imutável do futuro aos seus representantes nomeados para a diretoria do Banco Central. Consequentemente, dizem, “melhoraria a coordenação das expectativas” sobre risco de MtM.

MtM? Ora, O MtM (Mark-to-Market) é um processo no qual uma bolsa de valores ou qualquer mercado secundário define o preço de liquidação de um ativo no presente.

Simples, não? A “marcação a mercado” resolveria o problema dos preços de mercado secundário de ativos – formas de manutenção de riqueza –, tanto de renda fixa, quanto de renda variável, flutuarem diariamente.

Marcação a mercado (MtM) é o processo de refletir o valor de mercado dos ativos no acompanhamento diário das carteiras de fundos e bancos. Esse processo, quando aplicado em fundo de investimento, implica os valores das cotas refletirem os preços vigentes de todos os ativos componentes da carteira do fundo.

Por exemplo, no caso de Fundos de Renda Fixa, cuja composição da carteira esteja concentrada em títulos prefixados, a MtM permite, em momentos de variações nas taxas de juros, todos os cotistas resgatarem do fundo com o mesmo valor de cota. Se a MtM não fosse praticada em um movimento de alta nas taxas de juros, cotistas ao resgatarem antes poderiam se beneficiar, pois receberiam seu resgate com base em valores já não mais refletindo a realidade de preços de mercado secundário.

Sem a MtM, os cotistas ao permanecerem no fundo arcariam com o prejuízo da diferença entre o valor previsto inicialmente e o valor de mercado da carteira. Em princípio, se permanecerem com os ativos financeiros até o vencimento do prazo de validade, não haveria necessidade de MtM.

Se título tem rendimentos de 10% aa, mas o investidor queira vender antes do seu vencimento, quanto vai receber por ele? Depende das condições de mercado. Se a taxa estiver 5% aa, o título vai estar rendendo acima e terá maior valor de mercado.

Mas se os títulos estiverem sendo negociados a 20% aa, o título se desvalorizou, porque existem títulos mais atrativos com o dobro da rentabilidade. Nesse caso, aquele título, por marcação a mercado, vai estar oferecendo um custo de oportunidade. Vale mais comprar os negociados no momento. Ao vendê-lo, antes, o investidor se descapitaliza.

Para ativos líquidos, “o processo de marcar a mercado é rápido e assertivo”. Baseia-se nos preços de negociação publicados. Já para ativos ilíquidos, ou seja, aqueles cuja a venda não é tão simples ou frequente, “a marcação a mercado é feita pela estimativa do preço justo pelo qual o ativo seria negociado no mercado”.

Qual é o preço justo ou ideal? São Tomás de Aquino pregou: “o preço justo é determinado pela utilidade e por uma estimativa comum do preço de mercado”. Para o Santo, o pagamento de juros seria para pagar um preço pela passagem do tempo e, como o tempo é um bem possuído por todos, não se pode cobrar por ele.

A usura foi condenada no Concílio de Latrão, em 1179, condenando com excomunhão a quem a praticar. A pressão pelo desejo de não remunerar o custo de oportunidade, imposto pelo uso de recursos de terceiros, para reter todo o lucro de sua empreitada para si, foi tão grande a ponto de a Igreja Católica ter reafirmado a proibição da prática de empréstimo com juros do século XII até o início do século XIX.

Não confunda MtM com o MTM [Methods-Time Measurement] é um sistema de tempos pré-determinados, desenvolvido por H. B. Maynard, G. J. Stegemerten e J. L. Schwab em 1948. Tem como base o estudo de tempos e movimentos para melhorar as operações em uma linha de produção. E financistas, essa gente ociosa segundo a literatura crítica à “financeirização”, teriam horror à produção, porque só ela significaria trabalhar!

MTM é um instrumento para descrever, estruturar e configurar sistemas de trabalho por meio de módulos definidos de processo, sendo, portanto, um padrão eficiente de sistemas de produção. Pode ser utilizado em qualquer lugar onde for preciso planejar, organizar e realizar uma tarefa humana, visando seu cumprimento.

Por isso, podemos encontrar aplicações do método MTM não só nas áreas de produção, logística e manutenção, mas também na administração ou no setor de prestação de serviços. Não teria, porém, alcançado os serviços financeiros…

Pois é, todo o debate sobre política monetária se reduziu, no jornalismo econômico brasileiro, à polêmica entre transparência ou dubiedade a ser adotada pela Autoridade Monetária. Os previsores (videntes ou porta-vozes oficiosos do futuro) desejam por todos os meios conhecer “O Modelo” no qual, científica e aritmeticamente, o COPOM inseriria inputs para obter, após o processamento, como output a Selic-meta.

Não aceitam a realidade: o julgamento dessa mutante ser uma mera experimentação de seguidas tentativas-e-erros. É tão certa e verdadeira a ponto dessa “questão técnica” ser decidida por votação dos sábios: a maioria dos votos determina qual é a Selic certa!

Evidentemente, existe pensamento de grupo no COPOM. Um grupo de pessoas inteligentes toma
decisões absurdas, pautadas pela pressão dos economistas-chefes, porque cada um ajusta
sua própria opinião ao suposto consenso deles.

A “preguiça social” pode surgir, naturalmente, quando o desempenho de um membro não é visível diretamente, mas se dilui em um grupo. Por qual razão investir toda sua força se também ele não é notado quando faz menos esforço?

Quando tanto uma omissão quanto uma ação podem levar a uma perda de reputação, claramente, sempre se opta pela omissão. Os prejuízos por ela causados parecem subjetivamente mais inofensivos. Isso ocorrerá exceto se a inação, ao se aguardar os acontecimentos, não valer nenhum reconhecimento de ter havido prudência na espera.

Os infelizes diretores do Banco Central, praticantes do dificílimo (sic) “jogo da gangorra” – quando a taxa de inflação estiver no “céu” eleva-se a taxa de juro para a colocar no “inferno” –, são sacrificados em todos os recalls psicológicos. Nesses ritos, realoca-se a própria culpa por decisões financeiras equivocadas no nomeado “bode expiatório”.

Antes da autonomia do Banco Central do Brasil, os diretores foram pressionados para evoluir do segredo das suas operações para uma transparência crescente. Agora, eles são criticados por tentativa de enganar O Mercado ao sinalizar um cenário sem uma alta de juros “robusta”.

Isso leva à “desancoragem das expectativas de inflação”, não “fecha o hiato do produto” e “inclina a curva”. Entendeu?

Ancoragem é quando pegamos algo conhecido – uma regularidade do passado, por exemplo – e, a partir dele, nos arriscamos a projetar algo desconhecido. Basta haver âncoras numéricas anunciadas para nossas mentes inseguras se agarrarem a elas.

Hiato do Produto é a diferença entre o PIB potencial e o crescimento efetivo do produto da economia. É mero exercício de imaginação para projeção da inflação e determinação da política monetária.

O termo em si – hiato – refere-se a um nível de produto inferior ao possível do ponto de vista do uso da capacidade produtiva para o crescimento da renda e do emprego, partindo de um estoque de capital e força de trabalho. Entretanto, por ser uma variável não observada ou hipotética, existe bastante debate e incerteza em torno de seu nível.

Daí os videntes usam e abusam da pobre econometria para sugerir, através de seus acurados “cálculos científicos” (sic), todos chutarem em torno da mesma previsão na determinação de cenários para a política monetária. Não se importam com o fato de o Nível de Utilização da Capacidade Instalada (NUCI) do setor industrial, usualmente acompanhado pelos economistas-chefes, se referir apenas à indústria!

Além disso, eles não incorporam uma informação precisa acerca da capacidade produtiva destruída ao longo das duas Grandes Depressões (2015-2016 e 2020), entremeadas por estagdesigualdade: estagnação de renda e concentração de riqueza. Consideram até a capacidade instalada de empresas não sobreviventes, mas não medem com precisão o valor adicionado pelos serviços, ou seja, quase ¾ do PIB.

Cinicamente, ameaçam, se o Banco Central não se comportar como Seu Mestre manda, haverá “desancoragem das expectativas de inflação”, “inclinará a curva” e não “fechará o hiato do produto”. Mesmo sem entender nada dessa linguagem hermética e propositalmente obscura, os leitores leigos julgam: “tanta coisa ruim” deverá ser uma desgraceira só, cruz credo, Deus me abençoe…

Os economistas heterodoxos, excomungados do convívio com os colegas em um debate plural na imprensa brasileira, seriam “estraga-prazer” ao traduzirem o dito. Se a taxa de inflação continuar se elevando, um novo governo social-desenvolvimentista a combaterá, a partir de 2023, com a elevação da taxa de juro até ela cair e elevar o poder de compra dos salários-reais. Então, a enorme capacidade produtiva ociosa será preenchida com a retomada do crescimento da renda e do emprego. Só.


Fernando Nogueira da Costa – Professor Titular do IE-UNICAMP. Autor do livro digital “Conduzir para não ser Conduzido: Crítica à Ideia de Financeirização” (2021). Baixe em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: fernandonogueiracosta@gmail.com

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Fernando Nogueira da Costa

Fernando Nogueira da Costa possui graduação em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG (1974), mestrado (1975-76), doutorado (1986), livre-docência (1994) pelo Instituto de Economia da UNICAMP, onde é docente, desde 1985, e atingiu o topo da carreira como Professor Titular. Foi Analista Especializado no IBGE (1978-1985), coordenador da Área de Economia na Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP (1996-2002), Vice-presidente de Finanças e Mercado de Capitais da Caixa Econômica Federal e Diretor-executivo da FEBRABAN - Federação Brasileira de Bancos entre 2003 e 2007. Publicou seis livros impressos – Ensaios de Economia Monetária (1992), Economia Monetária e Financeira: Uma Abordagem Pluralista (1999), Economia em 10 Lições (2000), Brasil dos Bancos (2012), Bancos Públicos do Brasil (2017), Métodos de Análise Econômica (2018) –, mais de cem livros digitais, vários capítulos de livros e artigos em revistas especializadas. Escreve semanalmente artigos para GGN, Fórum 21, A Terra é Redonda, RED – Rede Estação Democracia. Seu blog Cidadania & Cultura, desde 22/01/10, recebeu mais de 10 milhões visitas: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/

Fernando Nogueira da Costa

Fernando Nogueira da Costa possui graduação em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG (1974), mestrado (1975-76), doutorado (1986), livre-docência (1994) pelo Instituto de Economia da UNICAMP, onde é docente, desde 1985, e atingiu o topo da carreira como Professor Titular. Foi Analista Especializado no IBGE (1978-1985), coordenador da Área de Economia na Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP (1996-2002), Vice-presidente de Finanças e Mercado de Capitais da Caixa Econômica Federal e Diretor-executivo da FEBRABAN - Federação Brasileira de Bancos entre 2003 e 2007. Publicou seis livros impressos – Ensaios de Economia Monetária (1992), Economia Monetária e Financeira: Uma Abordagem Pluralista (1999), Economia em 10 Lições (2000), Brasil dos Bancos (2012), Bancos Públicos do Brasil (2017), Métodos de Análise Econômica (2018) –, mais de cem livros digitais, vários capítulos de livros e artigos em revistas especializadas. Escreve semanalmente artigos para GGN, Fórum 21, A Terra é Redonda, RED – Rede Estação Democracia. Seu blog Cidadania & Cultura, desde 22/01/10, recebeu mais de 10 milhões visitas: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/

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