Florestan e o debate intelectual como festa popular: momentos de uma revolução democrática, por Paulo Fernandes Silveira

Nessa semana em que comemoramos os 100 anos do nascimento desse grande sociólogo socialista, queria lembrar da alegria que Florestan teve de participar dessas experiências que ele chamou de revolução democrática.

(Os amigos Abdias do Nascimento e Florestan Fernandes).

Florestan e o debate intelectual como festa popular: momentos de uma revolução democrática

por Paulo Fernandes Silveira

Estudando os trabalhos teóricos e a militância de Florestan Fernandes junto ao movimento negro, percebi o encantamento do sociólogo socialista por três experiências semelhantes de debate intelectual: aquele ocorrido no I Congresso do Negro Brasileiro, em 1950, organizado pelo TEN (Teatro Experimental do Negro), aquele que o próprio Florestan organiza com Roger Bastide para contribuir na Pesquisa Unesco sobre o preconceito em São Paulo, em 1951, e aqueles que ele participa como deputado e intelectual nas subcomissões da Constituinte, em 1987.

Uma parte das transcrições das falas e debates que ocorrerem no I Congresso do Negro Brasileiro foi publicada por Abdias do Nascimento, no livro O negro revoltado. Trechos dos debates promovidos por ocasião da Pesquisa Unesco foram incorporados nos textos de Roger Bastide e de Florestan para o livro Brancos e negros em São Paulo. Posteriormente, essas falas foram reincorporadas por Florestan no livro A integração do negro na sociedade de classes. A transcrição integral desses debates não foi publicada, mas encontra-se acessível no “Acervo Florestan Fernandes” da Biblioteca Comunitária da Universidade Federal de São Carlos. Uma das reuniões promovidas pela pesquisa me foi presenteada pelo amigo e pesquisador Diogo Valença de Azevedo Costa, um grande estudioso dos arquivos e da obra do Florestan. Os debates ocorridos nas subcomissões da Constituinte são acessíveis no site do Congresso Nacional.

Aqui apresento as três pesquisadoras cujos trabalhos me ajudaram nesse texto. Sobre os debates no I Congresso do Negro Brasileiro, acompanharei a excelente pesquisa de Maybel Sulamita de Oliveira, realizada na UNIRIO: O teatro experimental do negro em meio à militância e à intelectualidade: eventos programáticos realizados entre 1945 e 1950. Sobre os debates promovidos pela Pesquisa Unesco, acompanharei          a cuidadosa pesquisa de Antonia Junqueira Malta Campos, realizada na UNICAMP: Interfaces entre sociologia e processo social: a Integração do negro na sociedade de classes e a pesquisa Unesco em São Paulo. Sobre os debates ocorridos na subcomissão “Negros, populações indígenas, pessoas deficientes e minorias” da Constituinte, acompanharei a ótima pesquisa de Natália Neris da Silva Santos, realizada na FGV de São Paulo: A voz e a palavra do movimento negro na Assembleia Nacional Constituinte (1987/1988): um estudo das demandas por direitos.

Em sua pesquisa, Natália Neris cita um trecho de um artigo de Florestan que inspirou essa reflexão:

“Nesta fase, na qual se realiza uma espécie de auditoria do Brasil real, a pressão política desenrola-se no nível das subcomissões, com lances por vezes emocionantes, pungentes e memoráveis. Por várias vias, gente de diversas categorias sociais, profissionais, étnicas e raciais surge no centro do palco e assume o papel de agente, de senhor da fala. Um indígena, um negro, um portador de defeito físico, um professor modesto, saem da obscuridade e se ombreiam com os notáveis, que são convidados por seu saber ou lá comparecem para advogar as causas de entidades mais ou menos empenhadas na autêntica revolução democrática.” (FERNANDES. Florestan Fernandes na Constituinte, p. 82-83).

De certo modo, essa revolução democrática, que passa pelo debate aberto entre alguns notáveis, pessoas convidadas por seu saber ou por representarem demandas de grupos ou movimentos sociais e pessoas das mais diversas profissões e das mais variadas categorias sociais, também aparecem nas outras duas experiências que destaquei e que marcaram o trabalho teórico e a militância de Florestan.

No I Congresso do Negro Brasileiro, de 1950, organizado pelo TEN e por Abdias do Nascimento, que logo se tornaria amigo de Florestan, uma comitiva de notáveis representou a USP e a Escola de Sociologia e Política. Como destaca Maybel Oliveira em sua pesquisa, Florestan fez parte dessa comitiva, que também contava com Roger Bastide, Oracy Nogueira e Gilda de Mello e Sousa. Entre os notáveis convidados do Rio de Janeiro estava o antropólogo Darcy Ribeiro, bem como diversas lideranças do movimento negro brasileiro.

Como está registrado no livro O negro revoltado, cujo título foi inspirado no Homem revoltado, de Albert Camus, filósofo e dramaturgo com quem Abdias do Nascimento trabalhou em 1949, os debates do Congresso do Negro Brasileiro mesclaram longas explanações sobre um determinado tema, como fez Roger Bastide, criticando a associação preconceituosa dos negros com a criminalidade, e o debate direto de algumas teses ou premissas, tais como a necessidade de garantir os direitos das mulheres que atuam em trabalhos domésticos.

Num debate ágil e democrático, todos os participantes opinam, argumentam, tomam posições e votam, aprovando ou desaprovando as teses defendidas ou criticadas. Nesses encontros, uma série de teorias antropológicas, etnológicas, médicas, jurídicas e políticas são apresentadas e discutidas por todos, esmiuçando seus possíveis desenlaces práticos na vida cotidiana do negro brasileiro. Além disso, negros e brancos pensam e decidem juntos os encaminhamentos a serem tomados nas pesquisas acadêmicas e na atuação política do movimento negro.

Um ano depois desse congresso, Roger Bastide e Florestan Fernandes preparam a pesquisa encomendada pela Unesco sobre o preconceito em São Paulo. Não vou aqui analisar todos os detalhes históricos e políticos dessa pesquisa, o que Antonia Campos investigou com maestria. Para desenvolverem esse trabalho, Bastide, Florestan e outros pesquisadores assistentes utilizaram várias metodologias: analisaram muitos livros, documentos governamentais e materiais da imprensa; preparam questionários, realizaram entrevistas com representantes da classe patronal e promoveram uma série de encontros com lideranças do movimento negro. Do material empírico da pesquisa, Bastide e Florestan colheram dados e hipóteses.

Infelizmente, não temos a publicação da transcrição integral dos debates ocorridos nessas reuniões com o movimento negro. Antonia Campos, que trabalhou com o acervo do Florestan, anexa em seu trabalho a monografia “Movimentos sociais no meio negro”, realizada pelo sociólogo Renato Jardim Moreira, assistente de Florestan na Pesquisa Unesco.

Por gentileza do pesquisador Diogo Valença de Azevedo Costa, tenho uma cópia da transcrição completa de um desses encontros organizados por Bastide e Florestan, denominado de 4ª Mesa Redonda: sobre o preconceito racial no Brasil, realizada no salão nobre da Faculdade de Filosofia da USP, no dia 24 de julho de 1951. Esse foi um encontro muito importante, ali foram defendidas hipóteses que Florestan incorporaria em seus textos.

Entre as participantes desse encontro estava a jornalista, professora e militante Sofia Campos de Teixeira que, como analisa Maybel Oliveira, também havia participado da Convenção Nacional do Negro, em 1945. Sofia Campos escreveu em vários jornais importantes para o movimento e foi a primeira mulher negra a concorrer numa eleição para deputada federal. Por causa da sua marcante participação na Convenção Nacional do Negro, um jornal a descreveu como: “uma mulher inteligente, culta, decidida e de caráter inatacável, incansável na luta pela elevação do nível econômico e cultural dos negros brasileiros.” (OLIVEIRA, 2018, p. 96).

Numa fala densa e permeada de citações de poemas e de músicas populares que corroboram suas hipóteses, Sofia faz uma rica análise sobre a situação do negro brasileiro após a Abolição. Em certo momento de sua participação nesse debate, promovido pela Pesquisa Unesco, Sofia Campos afirma:

“Acredito que a nossa situação perante a sociedade depende muito mais de nós mesmos, porque vemos nas histórias passadas que os povos daquela época conseguiram o que queriam lutando com seus próprios elementos.” (ACERVO FLORESTAN FERNANDES, Biblioteca Comunitária da Universidade Federal de São Carlos).

Dando um salto no tempo, gostaria de recuperar um pouco da participação do próprio Florestan num dos debates na subcomissão “Negros, populações indígenas, pessoas deficientes e minorias” da Assembleia Nacional Constituinte. Florestan participou como notável convidado, a representante titular do Partido dos Trabalhadores era a deputada Benedita da Silva. Outra notável convidada da comissão, como analisa Natália Neris, foi a antropóloga e militante Lélia Gonzalez, que teve uma participação fundamental no debate.

Em sua fala, meio de improviso, mas nem tanto, Florestan faz uma cuidadosa explanação sobre a condição do negro no Brasil desde a escravidão, retoma sua famosa crítica ao mito da democracia racial, defendido por Gilberto Freire e por um grande grupo de intelectuais na época da Pesquisa Unesco, e indica a necessidade da criação de políticas públicas que minimizem a histórica e vergonhosa opressão aos negros.

Da pesquisa realizada com Bastide, no início dos anos 50, até aquele debate na subcomissão da Constituinte, tinham se passado quase quarenta anos. Florestan defendeu aquelas teses para notávies do concurso de Cátedra na USP, explicou as mesmas para seus discípulos e para alunos e pesquisadores de universidades brasileiras e estrangeiras. Todavia, retomá-las ali era diferente, ele não falava apenas para acadêmicos, falava para todos, visando construir soluções conjuntas.

No título desse meu texto, acrescentei, propositalmente, a palavra “momentos”                à revolução democrática apontada por Florestan. Num texto sobre a hipótese comunista, o filósofo Jacques Rancière também trabalha com a palavra “momento”. Eu cito uma passagem do autor:

“Um ‘momento’ não é simplesmente um ponto que se desvanece no curso do tempo. Também é um momentum, um deslocamento dos equilíbrios e a instauração de outro curso do tempo. Um ‘momento’ comunista é uma nova configuração do que significa ‘comum’: uma reconfiguração do universo dos possíveis” (RANCIÈRE, “Comunistas sin comunismo?”, p. 141).

Nessa semana em que comemoramos os 100 anos do nascimento desse grande sociólogo socialista, um tanto desconfiados que estamos com os rumos desse país, queria lembrar da alegria que Florestan teve de participar dessas experiências que ele chamou de revolução democrática. Momentos que, ao criarem uma nova configuração do comum, não se desvanecem no curso do tempo.

Paulo Fernandes Silveira (FE-USP e IEA-USP)

Referências bibliográficas

ACERVO FLORESTAN FERNANDES. 4ª MESA REDONDA da pesquisa sobre o preconceito racial no Brasil. Mimeo, 24 jul. 1951. Documento disponível no arquivo PDF 02.04.4531 (Observação em Massa – Situação Grupal), Fundo Florestan Fernandes. Biblioteca Comunitária da Universidade Federal de São Carlos.

ASSEMBLÉIA NACIONAL CONSTITUINTE (ATAS DE COMISSÕES).  Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias. Brasilia, 1987. Disponível em:  http://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/7c_Subcomissao_Dos_Negros,_Populacoes_Indigenas,.pdf

BASTIDE, Roger; FERNANDES, Florestan. Brancos e negros em São Paulo. São Paulo: Global Editora, 2008.

CAMPOS, Antonia. Interfaces entre sociologia e processo social: a Integração do negro na sociedade de classes e a pesquisa Unesco em São Paulo (Dissertação de Mestrado em Sociologia). UNICAMP. Campinas, 2016. Disponível em:  http://repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/279606

FERNANDES, Florestan. A Integração do Negro na Sociedade de Classes, São Paulo: Cia Editora Nacional, 1965.

FERNANDES, Florestan. Florestan Fernandes na Constituinte. Fundação Perseu Abramo – Partido dos Trabalhadores/ Expressão Popular: São Paulo, 2014. Disponível em: https://fpabramo.org.br/csbh/estante/cadernos-perseu-florestan-fernandes-na-constituinte/

NASCIMENTO, Abdias. O negro revoltado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. Disponível em: https://www.geledes.org.br/o-ipeafro-disponibiliza-a-integra-das-duas-edicoes-do-livro-o-negro-revoltado-de-abdias-nascimento/

OLIVEIRA, Maybel. O teatro experimental do negro em meio à militância e à intelectualidade: eventos programáticos realizados entre 1945 e 1950 (Dissertação de Mestrado em História). UNIRIO. Rio de Janeiro, 2018. Disponível em: http://www.unirio.br/cch/escoladehistoria/DISSERTACAO%20FINAL%20-%20MAYBEL%20SLULAMITA.pdf

RANCIÈRE, Jacques. Comunistas sin comunismo?. In. RANCIÈRE, Jacques. Momentos políticos. Buenos Aires: Capital Intelectual, 2010, p. 131-148.

SANTOS, Natália Neris. A voz e a palavra do movimento negro na Assembleia Nacional Constituinte (1987/1988): um estudo das demandas por direitos (Dissertação de Mestrado em Direito). FGV. São Paulo, 2015. Disponível em:  https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/13699

Redação

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador