Folhetins e folhetinescos (II), por Walnice Nogueira Galvão

Em vez de ter sua origem no folhetim, Vidocq, egresso do submundo do crime, veio do lado sombrio da vida real

Folhetins e folhetinescos (II)

por Walnice Nogueira Galvão

As noções de “folhetim” e de “folhetinesco” têm uma data precisa de entrada no vocabulário de uso comum, já que derivam da invenção do jornal diário no início do séc. XIX. O folhetim começa como um rodapé em que se publica um romance ou ficção em série, ou em capítulos, que visam a espicaçar a curiosidade do leitor pelo que vai acontecer depois, impondo a compra do jornal no dia seguinte.  Esse é o “efeito Sheherazade”, quando a narradora de As mil e uma noites escapava da decapitação interrompendo as estórias que contava ao sultão no melhor pedaço, mantendo o suspense e salvando a vida. 

Mas também há folhetins e folhetinescos na vida real. Históricos são estes dois franceses, nascidos com alguns anos de diferença, mas ambos com talento para o lado errado das coisas ou da vida. São eles os famosíssimos Joseph Fouché e Eugène-François Vidocq. A vida de cada um deles pode ser chamada de “romance folhetim”, tal o acúmulo de lances… folhetinescos.

Dentre as inúmeras personagens da Comédia humana de Balzac (os especialistas falam em 2.000 !), Vautrin é um dos mais conhecidos. E o pior é que esse horrível Vautrin existiu e é copiado da vida real: alguém famoso, e até famigerado, por nome Joseph Fouché, que começou a vida como padre. É ele o inventor da Polícia Secreta – proeza que perpetrou a serviço de Napoleão Bonaparte. Até o advento de  Fouché, o ofício de espião era amadorístico e individual. Ele está na raiz do FBI, da CIA, do Mossad, da KGB, do Dops, da OBAN, do SNI, de todo esse horror. Trata-se da grande organização secreta, independente, impune e inimputável, fora do controle dos cidadãos e sobretudo dos eleitores. Operando nas sombras sem nenhum escrúpulo ou lei, abrigando psicopatas como seus agentes porque precisa deles, está pronta a cometer os piores crimes e trucidar os inocentes, sob pretexto de proteger o Estado.

Fouché serviu e traiu sucessivamente todos os companheiros e todos os senhores, alguns deles poderosíssimos e temíveis, como Robespierre e o próprio Napoleão. Mestre em intrigas de bastidores, foi Ministro de Polícia de vários regimes. Roubou tesouros: conta-se que só a fortuna do rei era maior que a sua. E como todo mau-caráter que se preze, morreu rico, de morte natural e com o título nobiliárquico de Duque de Otranto. Há inúmeras biografias dele, que também escreveu memórias.

Mas não foi só Fouché. Houve um outro, que partilha dessas duvidosas honras, chamado Vidocq, igualmente tomado como modelo por Balzac, Edgar Allan Poe, Alexandre Dumas, Victor Hugo. E outros escritores e cineastas. Vidocq está na origem do romance policial ou de detetive, uma das espécies mais prolíficas de best-sellers em nosso tempo. Inspirou diretamente Conan Doyle e sua criatura Sherlock Holmes, de fama duradoura. Hoje seu mais recente avatar pode ser encontrado nas séries policiais norteamericanas de TV como CSI e quejandas, onde a investigação criminal praticada pelos detetives da polícia fica em primeiro plano e a perícia forense é exaltada.

Em vez de ter sua origem no folhetim, Vidocq, egresso do submundo do crime, veio do lado sombrio da vida real. Antigo “forçado”, ou seja, delinquente que cumprira pena de trabalhos forçados, conhecia o universo dos cárceres como ninguém. Foi disso que se valeu para alicerçar sua brilhante carreira de homem e criminalista. Ele mesmo espião, alcagüete e  detetive particular, instituiu a espionagem como apanágio do Estado. Também ficou rico. Criou o primeiro Departamento de Polícia da história (a Sûreté Nationale), passando de criminoso a criminalista. É ele o pai fundador da ciência denominada Criminalística.

Ambos deixaram memórias, de peripécias mirabolantes. Uma mistura de ambos, Fouché e Vidocq, alimentou o folhetim e ainda alimenta muita ficção na literatura, no cinema, nas séries de televisão. Stefan Zweig escreveu uma saborosa biografia de Fouché. E Gerard Depardieu já encarnou tanto Fouché quanto Vidocq em várias produções audiovisuais, uma delas meio science-fiction e meio sobrenatural, como se uma folha corrida dessas já não bastasse…

Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP

 

Walnice Nogueira Galvão

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