Fome, obesidade e mudança climática: a Sindemia Global Contemporânea, por Antonio Hélio Junqueira

Fome, obesidade e mudança climática: a Sindemia Global Contemporânea

por Antonio Hélio Junqueira

O Dia Mundial da Alimentação é celebrado, desde 1981, em 16 de outubro, em mais de 150 países. Esse foi o dia do ano especialmente escolhido por ser o mesmo da fundação da FAO (Food and Agriculture Organization), a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, em Roma, no ano de 1945.

A instituição dessa data no calendário oficial das celebrações objetiva conscientizar as nações, autoridades e opinião pública sobre os gravíssimos problemas da fome, da desnutrição e, também, os da má alimentação, que resultam em importantes índices de morbidade e mortalidade.

Segundo os dados mais recentes divulgados pela FAO, 821 milhões de pessoas em todo o mundo estão famintas, enquanto 2 bilhões experimentam situação de severa ou moderada insegurança alimentar[1].  Ao mesmo tempo, 672 milhões de indivíduos adultos estão obesos e padecem das consequências do excesso de peso, o que representa uma prevalência de 13,3% sobre o conjunto da população desta faixa etária. Para a infância e a adolescência, os números também mostram severo agravamento: 124 milhões de crianças e jovens (de 5 a 19 anos) são obesos e mais de 40 milhões de crianças com menos de 5 anos estão acima do peso.

Por sua vez, o recém divulgado relatório da Unicef “Situação Mundial da Infância 2019: Crianças, alimentação e nutrição” [The State of the World’s Children 2019: Children, food and nutrition] aponta que, pelo menos, uma em cada três crianças com menos de 5 anos – cerca de 250 milhões – está desnutrida ou com sobrepeso. Praticamente duas delas em cada três, entre 6 meses e 2 anos de idade, não recebem alimentos necessários para sustentar o crescimento adequado de seu corpo e de seu cérebro, o que coloca em risco o seu desenvolvimento cerebral, sujeitando-as a dificuldades de aprendizagem, baixa imunidade, aumento de infecções e, em muitos casos, a morte. Ao mesmo tempo, no Brasil, segundo a mesma fonte, uma em cada três crianças de 5 a 9 anos possui excesso de peso, 17,1% dos adolescentes estão com sobrepeso e 8,4% são obesos.

Para agravar ainda mais o quadro, 600 milhões de indivíduos, em todo o mundo, padecem anualmente de doenças originárias da contaminação alimentar por vírus, bactérias, produtos químicos ou toxinas. Destes, 420 mil chegam a óbito.

No Brasil, conforme dados da FAO, a fome já atinge nove milhões de pessoas. Dessas, sete milhões não possuem, sequer, a perspectiva de saber quando será a sua próxima refeição. Para as demais, a insegurança alimentar chega a ser tamanha que nem todos os moradores do mesmo lar têm acesso aos alimentos no mesmo dia ou podem compartilhá-los com seus familiares.

Como se pode constatar por esses números, a questão alimentar é uma das mais relevantes para a sanidade, qualidade e continuidade da vida contemporânea. Ainda assim, pouca atenção é dedicada ao tema por parte da maioria dos governos, especialmente nos países mais pobres do Hemisfério Sul.

Para contribuir com a conscientização sobre os problemas da fome, da desnutrição e da má alimentação, a cada ano a FAO elege, para o Dia Mundial da Alimentação um tema para congregar as manifestações e gerar foco unificado de ações, debates e iniciativas de políticas sociais, públicas e privadas. Para 2019, o motivo escolhido está resumido no slogan “Nossas ações representam o nosso futuro: dietas saudáveis para um mundo fome zero”.

Fica claro, portanto, o objetivo de unificar em uma mesma frente de conscientização e luta duas abordagens aparentemente (e só aparentemente) contraditórias: o combate à fome e à desnutrição, por um lado, e o aumento da obesidade e da má nutrição, por outro.

De fato, há muitas décadas que o problema alimentar mundial deixou de ser representado apenas pelos contingentes populacionais sem acesso às quantidades mínimas de alimentos, capazes de assegurar a sua subsistência, embora a importância desse fenômeno, além de sua intolerável desumanidade, seja inegável do ponto de vista social.

O aumento da oferta de alimentos ultraprocessados  (alimentos com baixo valor nutricional e ricos em gorduras, sódio e açúcares) , aliada à perversidade excludente dos “desertos alimentares” a que vivem submetidos imensos contingentes populacionais, em todo o mundo, são responsáveis pela brutal queda da qualidade das dietas e pelo aumento exponencial das taxas de obesidade, cardiopatias, diabetes, incidência de câncer e de outros males de altíssimos custos físicos, econômicos e emocionais tanto em nível pessoal, quanto familiar e social. São as chamadas doenças crônicas não-transmissíveis, que têm, como principais fatores de causalidade, o empobrecimento das dietas e a os maus hábitos cotidianos, como o sedentarismo e o tabagismo, entre outros.

Os notáveis esforços empreendidos pelo Brasil nos seus últimos governos, no tocante ao enfrentamento da fome e da desnutrição, foram capazes de nos garantir, em 2014, um honroso distanciamento do chamado “mapa da fome”. De fato, segundo a Unicef, nas últimas décadas, o Brasil conseguiu reduzir significativamente a taxa de desnutrição crônica entre menores de 5 anos (de 19,6% em 1990, para 7% em 2006).

Infelizmente, porém, a sistemática extinção de órgãos, conselhos e políticas públicas setoriais que passou a vigorar de 2016 em diante, voltou a agravar a situação, elevando o número de pessoas vivendo em estado de extrema pobreza – ou seja, com renda inferior a R$ 230,00 por mês – e renovando, assim, o retrocesso social da fome e o drama da desnutrição entre nós.

A questão alimentar contemporânea é de altíssima complexidade, o que não significa, absolutamente, que não possa ser devidamente equacionada, enfrentada e vencida com boa vontade e comprometimento político e social por parte dos governos e da sociedade civil organizada.

Médicos, nutricionistas, antropólogos, sociólogos e estudiosos do tema, em todo o mundo, têm formulado a situação da alimentação e nutrição mundial sobre um tripé de fenômenos que devem ser enfrentados simultânea e sinergicamente, para que resultados efetivos possam ser obtidos. Trata-se da tripla face da má alimentação, que se consolida, globalmente, por um lado na fome e na desnutrição, e, por outros, tanto na deficiência de micronutrientes (a chamada “fome oculta”), quanto no sobrepeso e na obesidade. Pesquisadores têm agregado a esse quadro ainda um outro elemento: as consequências perversas da mudança climática. A esse fenômeno, deram o nome de “sindemia global”, que congrega, ao mesmo tempo, os efeitos perversos das epidemias da obesidade, da desnutrição e do aquecimento planetário global[2].

Enquanto fenômeno multifatorial, a questão alimentar e nutricional contemporânea, e em especial a que ora vivenciamos no Brasil, exige ações contundentes de enfrentamento em várias frentes. Nelas se envolvem a proteção da agricultura local e familiar em bases saudáveis e sustentáveis, a defesa intransigente do acesso universal a uma alimentação adequada, limpa e suficiente, a educação alimentar e nutricional, especialmente de crianças e jovens, o combate aos desperdícios alimentares e o cuidado ambiental, entre outras bandeiras de luta afinadas com a conquista e sustentação das metas dos ODM (Objetivos de Desenvolvimento do Milênio).

Nesse sentido, e especificamente nesse momento, toda a sociedade brasileira está sendo convocada a se manifestar sobre uma importantíssima medida de interesse público na área alimentar e nutricional: a rotulagem frontal dos alimentos.

As novas medidas, a serem adotadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), encontram-se em consulta pública até o dia 6 de novembro próximo (acesso em: http://formsus.datasus.gov.br/site/formulario.php?id_aplicacao=50279). O objetivo da luta social em prol da rotulagem em forma de triângulos de alerta, conforme proposta pelo grupo de trabalho instituído em 2014 e composto por representantes do governo, sociedade civil, pesquisadores e setor produtivo, é o de priorizar a oferta de informações claras e seguras aos cidadãos, ao invés de privilegiar os interesses da agroindústria de alimentos processados e ultraprocessados, reconhecidamente não saudáveis.

Segundo relatório preliminar elaborado pela própria Anvisa, a rotulagem baseada nos triângulos pretos, de bordas arredondadas, em fundo branco e contendo textos de fácil compreensão – conforme proposto pelo referido grupo de trabalho – é o mais adequado para orientar e proteger a saúde dos brasileiros. Neles, as advertências sobre os teores elevados de açúcares, gorduras totais, gorduras saturadas e sódio devem ser clara e corretamente apresentadas. Grandes quantidades de adoçantes e/ou de gordura trans também deverão ser identificadas com as correspondentes advertências.

No entanto, defensores de outra ordem de interesses insistem na rotulagem baseada em sinais semafóricos – coloridos, em verde, amarelo e vermelho –, indutores de erro de interpretação a respeito da inocuidade dos alimentos e dos ingredientes que os compõem.

Vale, seguramente, uma boa briga. Afinal, uma alimentação saudável, nutritiva, adequada e inclusiva é um direito inalienável de todos nós. O acesso à informação de qualidade, também. Lutemos incondicionalmente por eles.

Um feliz e alvissareiro Dia Mundial da Alimentação para todo(a)s, na esperança de um mundo justo, equânime, democrático e harmônico para todos os cidadãos de todos os povos e nações.

 

[1] FAO. The stage of food security and nutrition in the world: safeguarding against economics slowdowns and downturns. Roma: 2019).

[2] The Lancet Commision Report. The global syndemic of obesity ,undernutrition, and climate change. 2019 (https://www.thelancet.com/commissions/global-syndemic ).

Antonio Helio Junqueira

Pós-doutor em Comunicação e Práticas de Consumo. Doutor em Ciências da Comunicação pela ECA da USP, Mestre em Comunicação e Práticas de Consumo pela ESPM.

Antonio Helio Junqueira

Pós-doutor em Comunicação e Práticas de Consumo. Doutor em Ciências da Comunicação pela ECA da USP, Mestre em Comunicação e Práticas de Consumo pela ESPM.

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