Cesar Locatelli
César Locatelli, economista, doutorando em Economia Política Mundial pela UFABC. Jornalista independente desde 2015.
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Furtado, Conceição Tavares, Saturnino e Lessa serão homenageados pela ABED, por César Locatelli

Invade-nos, porém, um desejo de levar a palavra desses mestres e mestras um pouco mais adiante. São esses os momentos em que percebemos que não estamos, nem nunca estivemos, sós

Furtado, Conceição Tavares, Saturnino e Lessa serão homenageados pela ABED 

por César Locatelli

O assombro com destruição física, intelectual e afetiva da nação não termina quando nos juntamos para firmar parcerias e saudar pensadores e pensadoras que dedicaram suas vidas a disseminar a crença em uma sociedade mais igualitária, mais fraterna, mais humana, soberana.

Invade-nos, porém, um desejo de levar a palavra desses mestres e mestras um pouco mais adiante. São esses os momentos em que percebemos que não estamos, nem nunca estivemos, sós. É esse espaço que ocupa a homenagem da Associação Brasileira de Economistas pela Democracia (ABED) a essas quatro preciosidades do pensamento brasileiro.

Momento que requer realçar os princípios da Associação, inspirados no que ensinaram Celso Furtado, Maria da Conceição Tavares, Roberto Saturnino Braga, Carlos Lessa, entre outros. Reproduziremos, também, algumas de suas ideias sobre o Brasil, sobre soberania, sobre pensamento econômico,

Construir conhecimento e alternativas para superar a brutal desigualdade brasileira

A Associação Brasileira de Economistas pela Democracia tem, entre seus princípios norteadores, o “questionamento do processo de desenvolvimento desigual entre os países, aprofundado sob a égide da ideologia neoliberal”.

Diz a Carta de Princípios da ABED:

“Acreditamos que os objetivos de desenvolvimento inclusivo e sustentável têm como condição fundamental para sua realização a defesa intransigente dos valores democráticos. Mais do que defender pluralidade e diversidade de pensamento, entendemos que a democracia no Brasil só será plena quando superarmos a situação em que amplas parcelas da população são privadas de direitos e das condições mínimas para desenvolver suas potencialidades. Uma das tarefas fundamentais dos economistas compromissados com a democracia e com o povo brasileiro é construir conhecimento e alternativas que permitam a emergência de um modelo de desenvolvimento capaz de superar a brutal desigualdade brasileira.

“E como a história não terminou…” (Celso Furtado)

Celso Furtado iniciou seu livro “Brasil: A construção interrompida”, de maio de 1992, com a seguinte Nota Explicativa:

“As páginas reunidas neste pequeno livro refletem todas, em graus diversos, o sentimento de angústia gerado pelas incertezas que pairam sobre o futuro do Brasil. Relutei em pô-las ao alcance de um público maior, que transcende os círculos universitários, mas decidi-me por assumir o risco, pois há momentos na vida dos povos em que a falta mais grave dos membros da intelligentsia é a omissão.

A ofensiva que visa a vacinar a nova geração contra todo pensamento social que não seja inspirado na lógica dos mercados – portanto, vazio de visão histórica – já convenceu a grande maioria da inocuidade de toda tentativa de resistência.

Interrompida a construção de um sistema econômico nacional, o papel dos líderes atuais seria o de liquidatários do projeto de desenvolvimento que cimentou a unidade do país e nos abriu uma grande opção histórica.

Resistir à visão ideológica dominante seria um gesto quixotesco, que serviria apenas para suscitar o riso da plateia, quando não o desprezo do seu silêncio. Mas como desconhecer que há situações históricas tão imprevistas que requerem a pureza de alma de um Dom Quixote para enfrentá-las com alguma lucidez? E como a história ainda não terminou, ninguém pode estar seguro de quem será o último a rir ou a chorar.”

“Parece que esse golpe teve o objetivo de desmoralizar o Brasil.” (Roberto Saturnino Braga) 

Roberto Saturnino Braga, em entrevista ao Tutameia TV, em junho de 2018, afirmou:

“O Brasil não é um país que tem soberania, não. O Brasil é um país que não tem apenas uma economia dependente. Tem uma economia dependente, mas tem mais do que isso. O Brasil é um país dominado, como toda a América do Sul. É um país dominado porque sempre foi… teve aquela visão do Monroe, a América para os americanos, na verdade, era a América para os norte-americanos. E sempre foi assim. Sempre que o Brasil buscou, digamos, um caminho próprio, um projeto próprio de desenvolvimento, ele foi golpeado, Ele foi com Getúlio, eu assisti. Eu era jovem e acompanhei mesmo isso. Votei Getúlio Vargas. Eu tenho esse galardão que eu gosto de manifestar: meu primeiro voto foi em 1950, eu tinha 19 anos, votei em Getúlio Vargas, presidente da República…

Getúlio conseguiu elaborar um projeto de desenvolvimento brasileiro: Petrobras, Eletrobras, Vale do Rio Doce, BNDE, Companhia de Álcalis, Fábrica Nacional de Motores, Companhia Siderúrgica Nacional. Era um projeto de emancipação econômica do país. Aí sabe como é, feriu lá os interesses: “não, Brasil é quintal e tem que continuar a ser quintal”. Inventaram toda aquela coisa do mar de lama…

O projeto de melhoria da situação do povo até não interfere muito com os donos do poder. Agora, o Brasil fazer parte e aliar-se à China e à Rússia nos Brics; o Brasil descobrir petróleo e determinar que a Petrobras, a sua empresa, seria a empresa que estaria presente em todas as explorações de poços; o Brasil liderando a América do Sul num projeto de emancipação de todo o continente sul, quer dizer, isso também foi demais. Aí veio o golpe e depuseram a presidente que não cometeu crime nenhum…

A cada momento a gente se ilude. Eu pensei que o Brasil tivesse conquistado, minimamente, a sua a sua autonomia, a sua soberania. Não conquistou. Ainda temos que conquistar. É uma tarefa, é uma missão fundamental dos nossos políticos, dos nossos militantes, do nosso povo, cerrar fileiras em torno desse objetivo de conquistar a soberania nacional.”

“Brasil virou uma economia de rentistas, o que eu mais temia” (Maria da Conceição Tavares) 

O artigo “Restaurar o Estado é preciso”, escrito em 2017, é um dos capítulos do livro  “Maria da Conceição Tavares: vida, ideias, teorias e políticas’, disponível para download no site da Fundação Perseu Abramo. Seguem alguns trechos:

“Vivemos sob a penumbra da mais grave crise da história do Brasil, uma crise econômica, social e política. Enfrentamos um cenário que vai além da democracia interrompida. A meu ver, trata-se de uma democracia subtraída pela simbiose de interesses de uma classe política degradada e de uma elite egocêntrica, sem qualquer compromisso com um projeto de reconstrução nacional – o que, inclusive, praticamente aniquila qualquer possibilidade de pactuação.

Hoje, citar um político de envergadura com notória capacidade de pensar o país é um exercício exaustivo…

A ditadura, à qual devemos repudiar por outros motivos, não era tão ordinária nesse sentido. Não sofríamos com essa escassez de quadros que vemos hoje. O mesmo se aplica a nossos dirigentes empresariais, terra da qual não se vê brotar uma liderança. A velha burguesia nacional foi aniquilada. Eu nunca vi uma elite tão ruim quanto esta aqui.

E no meio dessa barafunda ainda temos a Lava Jato, uma operação que começou com os melhores propósitos e se tornou uma ação autoritária, arbitrária, que atenta contra as justiças democráticas, para não citar o rastro de desemprego que deixou em importantes setores da economia.

É de infernizar a paciência que a Lava Jato tenha se tornado símbolo da moralização. Mas por quê? Porque nada está funcionando. Ela é uma resposta à inação política. Conseguiram transformar a democracia em uma esbórnia, em que ninguém é responsável por nada.

Não há lei ou preceitos do estado de direito que estejam salvaguardados. O futuro foi criminalizado. Não estou dizendo que o cenário internacional seja um oásis. O resto do mundo não está nenhuma maravilha, a começar pelos Estados Unidos. Convenhamos, não é qualquer país que é capaz de produzir um Trump. Eles capricharam…

Com o neoliberalismo não vamos a lugar algum. Sobretudo porque, repito: historicamente o Brasil nunca deu saltos senão com impulsos do próprio Estado. Esses últimos dois anos têm sido pavorosos, do ponto de vista econômico, social e político. Todas as reformas propostas são reacionárias, da trabalhista à previdenciária. Vivemos um momento de “acerto de contas” com Getúlio, com uma sanha inquisidora de direitos sem precedentes. Trata-se de um ajuste feito em cima dos desfavorecidos, da renda do trabalho, da contribuição previdenciária, da mão de obra. O Brasil virou uma economia de rentistas, o que eu mais temia. É necessário fazer uma eutanásia no rentismo, a forma mais eficaz e perversa de concentração de riquezas.” 

“A economia sozinha não vai para lugar nenhum” (Carlos Lessa) 

Carlos Lessa abre o documentário “Um sonho intenso”, realizado pelo cineasta José Mariani, em 2014, realçando que:

“Colocar uma pergunta: o que é o Brasil, o que é ser brasileiro? Em que o Brasil tem de modelos e paradigmas que são nossos, que não são réplica da Europa. Eu vou dar a você uma coisa muito interessante.

É depois da primeira Guerra Mundial que você descobre o gênio do Aleijadinho. É depois da primeira Guerra Mundial que você descobre a importância da escultura barroca mineira. É depois da primeira Guerra Mundial que você passa a valorizar Ouro Preto.

É depois da primeira Guerra Mundial que você diz que o que houve de movimento arquitetônico, musical, artístico no Brasil não era uma caricatura de má qualidade de uma periferia europeia chamada Portugal. Mas era sim, vitalidade de uma nova civilização, de uma nova cultura que estava nascendo dentro do Brasil.

Você encontra um pintor como Di Cavalcanti vendo a sensualidade e a beleza na mulata. Você vê um pintor como Portinari olhando as mãos e os pés dos trabalhadores do café. Você vê uma Tarsila deslumbrada com a cultura pré-Cabralina, dos elementos que sobrariam da iconografia e da lenda indígena.

Se você for para a literatura, você encontra Macunaíma. Depois vem o Sérgio Buarque, vem o Faoro. Na verdade o Gilberto Freire faz uma leitura absolutamente deslumbrante das raízes da elite ou do corpo social brasileiro. Você tem uma redescoberta do Brasil. Por quê? Porque o paradigma europeu deixou de nos ofuscar. Eu estou pegando a cultura para te dizer o seguinte: a economia sozinha não vai para lugar nenhum.”

Lessa encerra o documentário com uma constatação da humildade que deveria ser característica de todo economista:

“O que eu acho é que a história é sempre um mergulho no passado para entender o presente. Já é difícil entender o presente. É particularmente difícil prognosticar o futuro. Tanto que essa é a armadilha que, de certa maneira, captura o chamado pensamento econômico. Ele é razoável para explicar o presente. Lançando mão da economia política é possível explicar como é que se formou o presente. Mas é extremamente difícil, a partir do instrumental que o economista dispõe, pensar o futuro.”

As homenagens, a parceria e o lançamento da ABED no Rio de Janeiro

O Centro Celso Furtado e Associação Brasileira de Economistas pela Democracia (ABED) firmarão o memorando de parceria “ABED e Centro Celso Furtado em prol da democracia” no dia 20 de setembro de 2019.

A cerimônia lança a ABED no Rio de Janeiro e também homenageará Celso Furtado com a concessão do título de Associado Benemérito (nº 1) da Associação Brasileira de Economistas pela Democracia, que será entregue à Rosa Freire d’Aguiar.

A data marcará também a adesão à Carta de Princípios da ABED e outorga do título de Associados Beneméritos da Associação para: Carlos Lessa, Maria da Conceição Tavares e Roberto Saturnino Braga.

O evento é aberto, sem inscrições e será transmitido pela internet, no canal do YouTube do Centro Celso Furtado.

Serviço:

20 de setembro de 2019, sexta-feira

Das 18 h às 20 h

Local: Auditório do 22º andar do Clube de Engenharia.

Av. Rio Branco, 124, Centro, RJ

O GGN prepara uma série de vídeos que explica a influência dos EUA na Lava Jato. Quer apoiar o projeto? Clique aqui.

 

Cesar Locatelli

César Locatelli, economista, doutorando em Economia Política Mundial pela UFABC. Jornalista independente desde 2015.

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