Future-se e o aporte de recursos de empresas, por Renato Dagnino, Wagner Romão e Rogerio Bezerra

A proposta do governo é que as IFES diminuam seu custo mediante a “captação de recursos próprios” que adviriam de uma “maior interação com o setor empresarial para atividades de inovação”.

O ministro da Educação, Abraham Weintraub, durante apresentação do programa “Future-se”. (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

do Le Monde Diplomatique Brasil 

Future-se e o aporte de recursos de empresas

por Renato Dagnino, Wagner Romão e Rogerio Bezerra*

Em 17 de julho, O Ministério da Educação lançou o que parece ser o núcleo da política cognitiva (de educação e de ciência, tecnologia e inovação) da gestão de Jair Bolsonaro: o programa Future-se. Este texto procura complementar as várias manifestações que têm surgido desde então. Ele foca a sua intenção em equacionar o que considera o principal problema das instituições federais de ensino superior (IFES) – seu despropositado e insustentável custo para o Estado – mediante a captação de recursos das empresas para pesquisa e desenvolvimento (P&D).

A intenção, como sabe quem analisa nossa política cognitiva, não é nova. O que é novo é o contexto em que ela reaparece, marcado pela radical “oessisação” (OS) das universidades públicas, que vem sendo há muito concebida. Nosso objetivo é avaliar a probabilidade de ocorrência do círculo virtuoso, que o programa idealiza, mediante a análise dos trechos (entre aspas) apresentados no Future-se.

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A proposta do governo é que as IFES diminuam seu custo mediante a “captação de recursos próprios” que adviriam de uma “maior interação com o setor empresarial para atividades de inovação”. Essencial para isso seria a “criação de um ecossistema de inovação pujante nas IFES, possibilitando que trabalhem com maior foco em inovação e em parceria com empresas”. O que seria alcançado com um maior “estímulo à atividade de inovação com a instalação de centros de pesquisa e inovação e de parques tecnológicos” de modo a gerar na interface com a sociedade um “ambiente de negócios favorável à criação e consolidação de startups”.

Fechando o círculo virtuoso que resolveria o problema, se estabeleceriam “parcerias” com as empresas proporcionando às IFES “alavancagem de recursos privados para inovação por meio de projetos de P&D”.

Para analisar a viabilidade desse círculo virtuoso, é necessário começar pela sua cena final que retrata as empresas localizadas no Brasil como interessadas em financiar “projetos de P&D” nas IFES. E o recurso a elas endereçado como capaz de reduzir significativamente seu custo.

Vamos iniciar indicando que, a julgar pela evidência empírica disponível e ao contrário do suposto pelo programa, a importância do resultado cognitivo imediato (“intangível” ou “desincorporado”) da pesquisa universitária para a empresa é, em todo o mundo, muito pequena.

Fundamenta essa afirmação a realidade observada nos EUA. Uma boa maneira de avaliar essa importância é a parcela do dispêndio em P&D das empresas que é alocada em projetos em parceria com universidades e institutos de pesquisa é fornecida pela National Science Foundation. Segundo ela, essa parcela é de apenas 1%.

Casualmente, de acordo com a mesma fonte, o quanto custa (ou se gasta) com o ensino superior naquele país é aproximadamente igual ao dispêndio das empresas em P&D: apenas 1% do que as universidades precisam para se manter, aquilo que elas arrecadam com contratos de pesquisa com as empresas. Claro que há exceções, a mais notável é do MIT, onde o valor desses contratos alcança mais de 15% do seu custo.

A realidade brasileira é muito parecida com a dos Estados Unidos no que se refere ao escasso interesse de empresas em realizar parcerias para P&D com universidades. Segundo a PINTEC-IBGE, no período 2006 a 2008, em que as empresas aumentavam sua produção e lucro, o salário aumentava e explodia o recurso disponibilizado para a inovação empresarial, apenas 7% das empresas inovadoras contataram universidades e institutos de pesquisa em busca de resultados de pesquisas. E, destas, 70% consideravam essa relação de baixa importância para sua estratégia de inovação.

Até aqui vão as semelhanças: a importância dos contratos de pesquisa com a empresa para o financiamento da nossa universidade é, seguramente, muito menor do que nos EUA.

Ao contrário do que ingenuamente dizem há anos os que elaboram nossa política cognitiva, não é por não ter a “função P&D internalizada”, que as empresas recorreriam à universidade para se beneficiar do resultado desincorporado da pesquisa ali realizada. Há muita coisa escrita por analistas dessa política que invalida essa ideia do senso comum mal informado.

Mas, para quem prefere evidências à “teoria”, cabe examinar o que ocorre numa das nossas universidades que mais recebe recursos por essa via. Na Unicamp, estimamos a participação dos recursos para pesquisa proveniente das empresas no seu orçamento em menos de 1,5%: dez vezes menos do que capta o MIT que lá “compete” com muitos outros “pesos pesados”. Fica aos que conceberam o programa, uma vez que o número correspondente à Unicamp (1,5%) mal ultrapassa o valor médio (1%) estimado para os EUA, divulgar os centésimos dez por cento que corresponde ao nosso país.

O mostrado até aqui é suficiente para evidenciar empiricamente a escassa viabilidade daquele círculo virtuoso. Em primeiro lugar porque, ainda que as empresas brasileiras (nacionais, estatais e multinacionais) baseassem sua estratégia de inovação em P&D, seria muito pouco o recurso que alocariam para parcerias com as universidades. E, em segundo, mesmo que isso ocorresse, a redução do custo das IFES para o Estado seria desprezível.

Mas, como qualquer política pública, é provável que o programa procure induzir um comportamento virtuoso junto aos atores envolvidos. E é por isso que afirma que um “ecossistema de inovação pujante nas IFES” seria capaz de gerar um “ambiente de negócios favorável à criação e consolidação de startups”.

De novo uma comparação com os EUA ajuda a avaliar a probabilidade de que isso venha a ocorrer.

O que se indicou acima não significa que nos Estados Unidos o resultado da pesquisa universitária não seja essencial para a inovação. Um indicador dessa importância provém também da National Science Foundation. Mais de 50% dos mestres e doutores lá formados em “ciências duras” (Engenharia, Física, Biologia, etc.), por serem imprescindíveis para o lucro e a competitividade das empresas, são por elas contratados para realizar P&D. De fato, o que nos países avançados é importante para as empresas é o conhecimento incorporado nos alunos que na universidade aprenderam a pesquisar.

No Brasil, a situação é absolutamente distinta. O conhecimento resultante da pesquisa universitária que é incorporado no pessoal formado é muito pouco relevante para as empresas.

De acordo com a CAPES, no período de 2006 a 2008, formamos aqui 90 mil mestres e doutores em “ciências duras”. O que então ocorria sugeria que, se as coisas funcionassem aqui como rezam os manuais da Economia da Inovação em que se baseiam os fazedores da política cognitiva, isso deveria induzir as empresas a inovar realizando P&D. E, se fosse legítima a comparação com países como os EUA, 45 mil seriam contratados para realizar P&D em empresas.

Mas aqui as coisas são diferentes: desses 90 mil profissionais, que, como no exterior, são muito bem formados mediante a pesquisa universitária para realizar a P&D empresarial, apenas 68, segundo a PINTEC-IBGE, foram contratados pelas empresas para trabalhar com P&D.

Embora isso já evidencie a escassa probabilidade da criação daquele “ambiente de negócios favorável” de que fala o programa, cabe avançar indicando que o mesmo vale no que diz respeito à probabilidade de que ele induza uma mudança no comportamento dos atores.

Há fatores estruturais, a todo momento reforçados pelo mercado, que muito dificilmente, num país capitalista (ainda que submetido a um rígido planejamento central), poderão ser alterados mediante a ação do Estado.

Essa afirmação ganha força se considerarmos a nossa ancestral dependência cultural e o estilo eurocêntrico (e, depois da segunda guerra, norte-americano) de organização social que adotamos. Essa nossa “condição periférica” faz com que praticamente tudo o que se fabrica aqui no “Sul”, na periferia do capitalismo, já tenha sido antes produzido no “Norte”. As exceções bem conhecidas confirmam a regra: as empresas “brasileiras”, por serem dotadas de perfeita racionalidade econômica, não realizem P&D. Elas preferem inovar, sobretudo a partir do abandono da industrialização via substituição de importações, via aquisição de tecnologia já desenvolvida. Em especial, a incorporada em máquinas e equipamentos, como revelam 80% das inovadoras pesquisadas pela PINTEC-IBGE.

Novamente, para avaliar a probabilidade de sucesso do Programa, nos parece conveniente um “parênteses histórico”…

Nossa elite científica vem declarando há mais de seis décadas que, através da política cognitiva que ela prioriza, é possível induzir os empresários “atrasados” a fazer (e gastar mais em) P&D. Afinal, segundo ela idealiza, essa é a forma como eles devem atuar para ter mais lucro e se tornar competitivos. Para isso ocorrer, eles consideraram que era necessário, por um lado, formar profissionais capazes de realizar P&D. E, por outro, “acostumar” a empresa a interagir com a universidade.

A primeira condição vem sendo alcançada. Contrastando flagrantemente com o resto do nosso sistema educacional, a pós-graduação e a pesquisa universitária brasileira, quando avaliada pelos critérios que usam os países avançados, estão entre as melhores do mundo. O que faculta à nossa liderança científica uma alegada sensação de dever cumprido, e faz com que se sinta autorizada a reivindicar a prerrogativa de receber recursos para continuar “fazendo a sua parte”.

Mas, uma parcela crescente da nossa comunidade de pesquisa (e até dessa liderança) reconhece que é irrealista esperar que a segunda condição, que permitiria que o resultado do seu trabalho fosse aproveitado pelas empresas para se tornarem inovadoras e competitivas e que terminasse beneficiando o povo que paga seu salário, se verifique. Ela já percebeu também que o considerável, longevo e reiterado esforço do Estado, de mediante “incubadoras” de empresas e outros arranjos, aclimatar professores e alunos “empreendedores” ao mercado, tem sido em vão; ou muito diminuto face ao tamanho do problema que seus líderes dizem poder equacionar. E que, por isso, a prerrogativa auto atribuída daquela elite não pode ser considerada um direito a ser assegurado por um programa que reedita antigas crenças do neoliberalismo local.

Mais além do que isso: a comunidade universitária está sinalizando a escassa viabilidade de que o Programa possa vir a induzir uma mudança no comportamento dos atores envolvidos; ainda mais num ciclo de prolongada retração econômica, quando os empresários ficam ainda mais arredios a qualquer investimento “inovador”, seja cognitivo ou, muito menos, real.

Para terminar, invocamos nossos filósofos mais autênticos. Como diria o Garrincha: para que o programa consiga a aproximação da universidade pública com o mercado, é preciso combinar com as empresas habilitadas para jogar esse jogo! Antecipando-nos ao que cobraria o Dadá Maravilha, prometemos que depois de analisar a problemática que evidencia seu provável fracasso, vamos mostrar a “solucionática”. Mas isso vai ter que ficar para outra vez…


*Renato Dagnino faz parte do Departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp; Wagner Romão é presidente da ADUNICAMP; e Rogerio Bezerra da Silva é do Movimento pela Ciência e Tecnologia Pública.

Redação

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