Há exatos 30 anos, por Luciana Worms

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Há exatos 30 anos

por Luciana Worms

Durante a ditadura pós 1964, uma forma de driblar a censura era falar daquele presente através do passado, como analogia e metáfora. Foi o que fez, por exemplo, Gilberto Braga quando adaptou o romance A Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães, para uma novela da Rede Globo.

Muitas vezes, porém, os ditadores percebiam. O próprio Gilberto, em 1992, na minissérie Anos Rebeldes, criou um personagem álter ego para contar o que viveu. Galeno, escritor de novela, precisou negociar com a censura. O autor reproduziu em uma cena partes do diálogo que teve, em 1976, com a censora que não queria que a palavra “escravo” fosse pronunciada na televisão, nem para contar a história da escrava branca, “por ser capciosa”. Ela defendia que a escravatura era uma página que deveria ser arrancada da historiografia brasileira por dar margens a questionamentos. Na ocasião, a senhora também afirmou que não gostava de perguntas porque perguntas faziam pensar.

Pois bem, foi pela tela da mesma Rede Globo que o G.R.E.S. Paraíso do Tuiuti botou o brasileiro para pensar através do samba-enredo de Moacyr Luz, Aníbal, Claudio Russo, Dona Zezé e Jurandir: “Meu Deus, meus Deus, está extinta a escravidão? ”.

Com essa pergunta a Escola conseguiu colocar um verdadeiro Cavalo de Troia na tela da Globo. Única detentora do direito de transmitir, ao vivo, o desfile do carnaval do Rio, a empresa de telecomunicações não teve tempo de pensar em um jeito de disfarçar o impacto que foi causado na avenida.

A Globo, nesses quase 53 anos de existência, ganhou a credibilidade dos telespectadores por causa das suas grandes produções de ficção – novelas, minisséries –, e sempre se valeu disso, nos seus noticiários, para moldar o pensamento do povo de acordo com a realidade que convém a ela. Uma realidade escravizadora.

O enredo que levou a pergunta ao país estava muito além da denúncia da desigualdade no Brasil – uma das maiores do mundo – que a emissora ajuda a aprofundar; estava muito além da obviedade de querer saber se o brasileiro notou que a exclusão do negro e do pobre – praticamente uma redundância – hoje não está muito diferente daquela do açoite, que existiu entre meados do Século XVI e final do Século XIX.

Tal pergunta fez aquele brasileiro que se reconheceu na avenida enxergar que os pilares, de profundos alicerces, fundadores do Brasil, ainda estão de pé sustentando o mesmo pensamento escravocrata e desumano, porém agora, fantasiado de democracia participativa. Fez mostrar que há uma elite que até se contentaria com um país ainda exportador de sobremesas, desde que essas sobremesas lhes garantissem a perpetuação no poder. Um poder que diz ao povo o que pensar, o que querer e como agir. Povo marcado, povo feliz… povo fantoche.

O desfile da Tuiuti, como muitos já disseram, trouxe ao sambódromo uma emoção semelhante àquela que tivemos com o desfile da Vila Isabel, Kizomba, a Festa da Raça, há 30 anos. Mas há uma diferença: em 1988 estávamos em via de conquistar a “Constituição Cidadã” e assim caminharmos na direção de um Estado de pleno Direito; em 2018, na contramão, estamos em via de perder os direitos conquistados.

Quando em 1988 a Vila encantou o país com seu desfile vitorioso, sem luxo, sem brilho e sem sede, o Brasil preparava uma Kizomba – festa no idioma africano quimbundo – pela democracia. Ainda não tínhamos votado para Presidente, mas o último General já tinha passado a faixa para o civil José Sarney.

É bem verdade que a diferença entre Sarney e João Figueiredo era o fato do maranhense não usar um uniforme verde-oliva, apesar do jaquetão do Presidente combinar bem com as vestimentas militares. Sarney fora Presidente da ARENA (Aliança Renovadora Nacional) – partido de sustentação do governo militar – e só subiu a rampa do Planalto porque Tancredo Neves, eleito indiretamente, não teve como comparecer ao evento.

O brasileiro, que antes de tudo é um forte, parodiando Euclides da Cunha, havia sofrido algumas decepções recentes: acreditou que dava para ter “Diretas Já”, em 1984, mas não conseguiu que aprovassem a emenda; aceitou a eleição indireta, em 1985, porque tem vocação para ser feliz e, na esteira disso, acreditou que Tancredo seria o arauto da democracia, mas o homem morreu; militou pelo congelamento dos preços no “Plano Cruzado”, em 1986, mas só depois de votar no partido do governo descobriu que fora vítima de uma fraude.

Claro que a Rede Globo, maior veículo de comunicação de massa, espetacularizou todos esses episódios: a princípio tentou camuflar as multidões nas ruas pelas diretas mas, depois da avassaladora adesão, não teve como esconder e transformou os atos em grandes eventos televisivos; fez de Tancredo o melhor presidente que o Brasil já teve, com tema musical e tudo, sem nunca ter sido;  prendeu, ao lado dos “Fiscais do Sarney”, gerentes de supermercados, mas se calou quando Leonel Brizola acusou o governo de ter promovido um verdadeiro “estelionato eleitoral” ao esperar as eleições para autorizar o descongelamento dos preços.

De qualquer modo, os Deputados Federais, eleitos em 1986, instauraram a Constituinte cerca de um ano antes do carnaval que comemoraria o centenário da Lei Áurea. A Vila, porta voz da esperança naquela “Constituição Cidadã”, que viria no fim de 1988, colocou o Brasil para festejar: “esta Kizomba é a nossa Constituição”.

Sem sombra de dúvidas, a Escola de Samba Unidos de Vila Isabel protagonizou um dos momentos mais lindos e importantes dos carnavais de todos os tempos. Levantou a avenida no primeiro verso de Luiz Carlos da Vila (Rodolpho e Jonas foram os parceiros na melodia): “Valeu, Zumbi/ O grito forte dos Palmares/Que correu terras, céus e mares/Influenciando a Abolição…”. Fez o maior país negro fora da África clamar, em ritmo de samba-enredo, pelo fim do “apartheid” na RSA: “… nossa sede é a nossa sede de que o apartheid se destrua. ” –  a Vila não tinha sede para os ensaios, mas tinha a sede de ver o fim do maior edifício jurídico criado para calar a voz de cerca de 75% do povo sul-africano. Levou à avenida imagens de grandes líderes revolucionários negros como: Martin Luther King, Samora Machel, Patrice Lumumba, Agostinho Neto, Steve Biko, Nelson Mandela entre outros.  Desfilou na Sapucaí uma cabeça gigante da lendária Escrava Anastácia, amordaçada. Coragem, portanto, não faltou.

A Escola de Noel Rosa ainda teve um diferencial. Sua Presidenta era a “Ruça” (Lícia Maria Maciel Caniné), uma das poucas mulheres que estiveram à frente de uma escola de samba. Ou seja, Kizomba, a Festa da Raça, foi libertária em todos os sentidos.

A mordaça nos escravos da comissão de frente da Tuiuti, a efeméride da Lei Áurea e as dificuldades financeiras da Escola são algumas das coisas que levaram à comparação do desfile de 12 de fevereiro de 2018 com o desfile de 15 de fevereiro de 1988. Duas Escolas que em momentos de dificuldades estufaram o peito, levantaram a cabeça, subiram no salto e disseram aos grandes: viemos aqui para tomar o que é do nosso povo por direito.

A comunidade do Morro do Tuiuti, de São Cristóvão, não comemorou a Lei Áurea e sim chamou aquela concessão dos brancos, que relegaram seus escravos libertos à própria sorte, de “liberdade cruel”.  

O desfile/manifesto de 2018 não precisou fazer uma analogia direta, como no desfile/manifesto de 1988, entre a segregação brasileira e a segregação do “apartheid”, que os sul-africanos amargaram até a vitória de Mandela nas eleições de 1994. Mas querendo ou não, a Comissão de Frente da Tuiuti, O Grito de Liberdade, remeteu ao filme homônimo que, em 1987, mostrou ao mundo ocidental os crimes contra a humanidade que o governo da RSA cometia. A comissão de frente da Vila, a época, desfilou Guerreiros Africanos para lembrar que é na luta de Zumbi, e não na esmola da Lei Áurea, que se muda a realidade.

O “quilombo da favela” trouxe inspiração para que os brasileiros – oprimidos neste “cativeiro social”, alijado dos direitos trabalhistas e cientes dos golpes e retrocessos que têm vivido – lutemos contra o feitor da vez.

O mal-estar que o desfile, e a vitória da Tuiuti – vice-campeonato com gosto de vitória para os indignados –, causou foi tamanho que, na apresentação das campeãs sábado dia 17, a censura tomou de assalto a Sapucaí trazendo mais uma lembrança dos tempos do governo militar. As alas Manifestoches – “homenagem” aos que saíram às ruas batendo panelas e vestidos de amarelo, seguindo o pato da FIESP, sob a orientação inescrupulosa da TV Globo – e Guerreiros da CLT – cujas fantasias mostravam carteiras de trabalho gigantes e estragadas (precarizadas) – foram praticamente apagadas na transmissão que foi ao ar apenas pela TV Brasil (rede de televisão pública que pertence à Empresa Brasil de Comunicação). O carro alegórico que levava o “O Vampiro Neoliberal”, ou “O Temeroso”, desta vez sem a faixa presidencial, também estava visivelmente avariado.

O retrocesso vem a galope. Agora cabe a nós, que “kizombanos” com lágrimas de emoção e que vimos, através da Tuiuti, uma luz do candeeiro no fim do túnel, transformarmos nossas adversidades em luta. Afinal,“Onde mora a senhora Liberdade não tem ferro, nem feitor”. Avante!

 

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

1 Comentário

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  1. A Tuiuti apresentou dois navios negreiros

    A Tuiuti apresentou dois carros alegóricos alusivos ao Navio Negreiro, sendo que, por terem muitos cadáveres de escravos, receberam o nome de Tumbeiros, sendo o atual denonimado de Neotumbeiro, este trazia o Vampirão com a faixa presidencial e as mãos manipuladoras da Globo com cordões manipulando os manifestoches. No desfile das campeões todo o carro foi descaracterizado…as carteiras de trabalho, uma alusão a reforma trabalhista escravista, também sumiram….

    …quando do primeiro desfile, a Globo silenciou na quase totalidade da exibição do Neotumbeiro, sendo que nos carros da Beija Globo, a emissora foi bem detalhista, focando cada detalhe e descendo falação, afinal de contas a escola exibia suas reportagens no JN, ou seja, reproduzia a narrativa dominante do “combate à corrupção” como se a corrupção pudesse ser combatida pela casta corrompida desde a nascença, a Casa Grande…

    … a intervenção militar ocorreu na sequência da apresentação do quilombo Paraiso do Tuiuti e todos os membros da agremiação, por questão de se defender de perseguição, passaram a negar o teor de denúncia do desfile, mas a denúncia ficou evidente, inclusive negá-la denuncia ainda mais a truculência da Casa Grande..negros com a boca amordaçada por estruturas de ferro…como negar o que vimos, não há como…

    Em tempo: quem de fato tentou combater a corrupção foi o PT, ao dar total liberdade as Instituições para que atuassem contra o crime organizado e os desvios de dinheiro público…mas o que estas Instituições estão fazendo senão matando de morte o PT e seus liderenças, Lula inclusive…

    General ameaçou Tuiuti a mando de Temer

    https://blogdacidadania.com.br/2018/02/general-ameacou-tuiuti-mando-de-temer/

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