Haiti: O exemplo de resistência contra o colonialismo e racismo no continente, por Camila Koenigstein

A Revolução haitiana foi a primeira que ocorreu na América Latina e Caribe, inteiramente feita por homens negros que já não aceitavam as condições análogas às da escravidão.

Haiti – Foto ONU

Haiti: O exemplo de resistência contra o colonialismo e racismo no continente.

por Camila Koenigstein

No atual cenário de turbulência, um emaranhado de temas surgiram com o passar dos meses, uma cortina se abriu diante da pandemia, enfim, a América mostrou todas as suas incongruências.

A questão sanitária revelou a ausência de estruturas que antes não eram percebidas dentro do ritmo frenético dos centros urbanos e o árduo trabalho braçal nas regiões rurais, que não permitiam um olhar direcionado para uma série de problemas que ficavam espaçados na maquinaria complexa que é o capitalismo e a discrepância social que ele gera há séculos.

Assuntos antigos que permearam o continente nunca foram abordados com tamanha frequência. Colonialismo, racismo, violência estatal, feminicídios, descaso, pobreza e indiferença no âmbito da saúde pública são expostos em redes sociais e diversos periódicos de forma ampla, ressaltando a ligação dos temas com o fracasso  do neoliberalismo.

No entanto, de praxe, a seletividade é uma peneira que deixa de fora determinadas regiões e questões consideradas espinhosas.

Então de que América estamos falando? Que partes do continente ficaram diminuídas e, apesar de sofrerem todo tipo de negligência, delas não temos notícias?

Basicamente há uma divisão marcada entre América Latina e América do Norte, o que provoca uma relegação da zona central, principalmente do Caribe e Antilhas, espaço não reconhecido como pertencente à região, mas parte de um passado e presente de muita violência, esquecido pela imagem lúdica que filmes e revistas projetaram por causa da beleza que cerca esses lugares. O Caribe está longe da imagem idealizada por homens brancos que ficam maravilhados com a doçura e beleza de povos tão sofridos.

Embora a pandemia tenha atingido diversas ilhas e os países banhados pelo mar do Caribe, pouco ou nada foi dito sobre como essas regiões estão enfrentando o  COVID-19, a violência e o aumento cada vez maior da pobreza.

Entre esses países, o Haiti está afetado de diversas formas, condensando todos os problemas sociais já citados.

O passado do Haiti exemplifica toda a capacidade de exploração européia no continente. O território, que em 1492 contava com 100 mil habitantes, teve, um século depois, sua população dizimada, restando por volta de 200 pessoas (Sartre). Durante o período de ocupação espanhola e francesa a ilha foi a principal fornecedora de açúcar para o continente europeu, fonte inesgotável de matérias-primas. Com o Tratado de Rijswijk, em 1697, a Espanha cedeu à França a parte ocidental da ilha e conservou a parte oriental, a atual República Dominicana.

Depois do extermínio dos indígenas, os espanhóis começaram a repovoar a ilha por meio do tráfico de pessoas oriundas de diversas regiões da África.

Após séculos de violência gerados pelo sistema escravagista e já dentro do que o filósofo Eduardo Gruner denominou de sistema mundo do capital o Haiti estabeleceu uma relação colônia/metrópole, que permitiu que os ideais da Revolução Francesa (1789-1799) fossem reivindicados na realidade de opressão existente na ilha.

A geração de homens que iniciaram o movimento por libertação, no que viria a ser Haiti, teve contato com os novos conceitos filosóficos e políticos que circulavam na Europa. Os lemas liberdade, igualdade e fraternidade, oriundos da Revolução, não podiam mais seguir somente no velho continente.

De 1791 a 1804, houve grandes tensões e violência entre os escravos e os senhores, lembrando que a população escrava era numericamente maior, o que auxiliou no êxito da empreitada.

Foi uma autêntica revolução no sentido moderno do termo (no qual é desde já um pleonasmo: o conceito de “revolução” na sua acepção política e social, e outra invenção da modernidade): vale dizer, uma completa transformação das assim chamadas “estruturas” socioeconômicas, políticas, e ideológico-culturais (incluindo, claro, as “relações de produção”) dominantes. Em nossa hipótese, ademais que se trata de uma revolução decisiva para a modernidade em seu conjunto e não somente na América Latina.

A Revolução haitiana foi a primeira que ocorreu na América Latina e Caribe, inteiramente feita por homens negros que já não aceitavam as condições análogas às da escravidão. Seus líderes eram indivíduos que tinham contato com a língua francesa, como o caso de Toussaint Louverture, Henri Cristophe, Dessalines, entre outros, que usaram os conceitos “humanistas” para exigir o fim de séculos de saques e exploração de homens, mulheres e crianças.

Em 1804, chegou ao fim uma revolução sem precedentes, um estalo que despertou o continente.

O que poucos sabem é que para reconhecer o Haiti como uma nação livre a França estabeleceu uma multa, gerando uma dívida que foi paga até 1947.

A quantia, de 150 milhões de francos, serviu para o país ser aceito diplomaticamente e restituir os senhores pela perda de terras e escravos.

A França até os dias de hoje se nega a devolver o dinheiro, auxiliando na manutenção da pobreza que iniciou após a libertação do país.

A França continua a negar-se a devolver a dívida histórica ao Haiti. O país agora presidido por Macron tem uma grande responsabilidade na situação econômica do Haiti e no estado de pobreza em que a sua população se encontra. Por exemplo, concedeu refúgio político ao ex-ditador Jean Claude Duvalier, que se exilou na Riviera Francesa após 29 anos de ditadura, entre pai e filho, com uma fortuna de 900 milhões de dólares roubados ao Estado haitiano. Essa fortuna é um montante superior à dívida externa do país.

Hoje, o Haiti é a nação mais pobre do continente. Do intervencionismo norte-americano, que durou 12 anos à ditadura feroz iniciada por François Duvalier e seu filho, conhecidos como Papa Doc e Baby Doc, a população segue em um estado constante de opressão e sofrimento.

Em 1986 terminou o período dos Duvaliers. Em 1990 foi eleito como presidente Jean-Bertrand Aristide, mas os seguidores de Duvalier tentaram diversos golpes. Em 1991, Aristide deixou o Haiti e exilou-se na África do Sul. Como resposta, a Organização dos Estados Americanos (OEA) decretou embargo econômico, levando a sociedade haitiana à total miserabilidade.

Em 2004, a ONU começou a famosa, embora desumana, missão de paz, conhecida como Minustah. Entre os chamados capacetes azuis enviados estavam soldados de Brasil, Chile, Uruguai e Argentina. A finalidade era assegurar eleições livres, o que de fato ocorreu com a eleição do presidente René Préval.

Em 2010, houve uma das maiores catástrofes naturais na ilha, um terremoto que gerou a morte de 200 mil pessoas, além de milhares de feridos e desabrigados. O Banco Mundial (Bird) e o Fundo Monetário Internacional (FMI) fizeram nessa época um empréstimo ao país que seria cobrado posteriormente com juros, enquanto a França seguiu negando a devolução do dinheiro exigido pela independência da nação, ou seja, o povo haitiano pagou por sua liberdade, pagou literalmente pelo direito de não ser escravo e colônia. Mesmo após a catástrofe o dinheiro não foi devolvido. Os franceses, que sempre buscaram vender ao mundo sua “humanidade”, nunca tiveram a honestidade de pagar aos haitianos o que lhes devem.

Hoje, o Haiti atravessa um momento de dificuldades extremas: o esquecimento de sua existência, a pandemia, o governo corrupto de Jovenel Moise, eleito em 2017, que gerou mais instabilidade, a crise sanitária com mais de 4 mil contaminados pelo COVID-19, juntamente com diversas denúncias sobre o período de ocupação da ONU, quando soldados estupraram, abusaram do poder em diversas instâncias, abandonando mulheres com seus filhos, sem receber nenhum tipo de atenção da ONU e dos países que participaram da missão.

Entre todos los entrevistados, 265 ofrecieron testimonios acerca de embarazos por relaciones con personal militar de la ONU. Ese algo más del 10% mencionó las historias de estos niños, dignas de reseñar, como una realidad cotidiana.

Las narraciones revelan cómo niñas de tan solo 11 años fueron violadas y quedaron embarazadas por los cascos azules para ser “abandonadas en la más absoluta miseria.”

O Haiti é a representação do continente nos seus mais variados aspectos: racismo, corrupção, negligência, abusos e machismo, sempre gerados por aqueles que tem a missão obsessiva de “civilização”. No entanto, paradoxalmente, quase não se fala sobre o país. A nação que desafiou a Europa, que reivindicou integralmente a liberdade, onde os negros entenderam que os conceitos universalistas europeus eram direitos de todos e não somente de brancos privilegiados, não existe para a maior parte do continente.

O preço foi alto: esquecimento e estereótipos religiosos absurdos, negligência de organizações humanitárias.

Apesar do contexto desolador, o Haiti mostrou que há um caminho gerado através da resistência, embora não seja fácil, já que o colonialismo está interiorizado nos governos e cidadãos brancos de todo o continente, que se crêem brancos, vivendo uma eterna psicose, estado que nunca atingiu o povo haitiano.

A questão que fica é: o racismo terá fim sem o reconhecimento da importância do Haiti na América? Quando a Revolução haitiana terá mais relevância nas escolas que a Revolução Francesa? Quando será entendido que o Haiti somos nós, que o Haiti é a representação do povo negro massacrado diariamente por exigir seu direito de existir? Quando o mundo vai parar pelo Haiti e cobrar a devolução do dinheiro roubado ao país e gerado pelo sangue de homens e mulheres negros?

Haiti é resistência, persistência dos negros na América, é luta constante contra a violência colonialista, é o país que ensinou que podem tentar, mas nunca vão apagar seu lugar único na história.

 

Fontes:

 

Camila Koenigstein. Graduada em História, pela Pontifícia Universidade Católica – SP e pós graduada em Sociopsicologia pela Fundação de Sociologia e Política – SP. Atualmente faz Mestrado em  Ciências Sociais, com ênfase em América Latina y Caribe pela Universidade de Buenos Aires (UBA).

Redação

2 Comentários

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  1. A história do Haiti é escondida a sete chaves pelo colonialismo militante, o que não apaga seu belo exemplo. No livro C. L. R. James Os Jacobinos Negros, onde escreve uma história da Independência do Haiti, uma passagem é a que mais me fascina num momento crucial da revolução fascinante: “Dessalines esperava no lado ocidental. Ele estava preparado havia várias semanas, não entregando as armas que conseguiu tomar, como havia feito no começo. Assim que soube que Pétion e Clairveaux haviam começado a rebelião, deixou Gonaïves e partiu para Petite-Rivière, avisando seus seguidores que estivessem prontos para sublevar os trabalhadores mediante um determinado sinal. O padre de Petite-Rivière convidou-o para tomar café e ele foi, sem saber que já havia sido dada a ordem para sua prisão e que ele deveria ser preso no presbitério. MADAME PAGEOT, a criada mulata do cura, pôs a mesa e trouxe a Dessalines uma bacia de água para que ele lavasse as mãos. Olhando-o firme nos olhos, ela apertou os cotovelos contra o lado do corpo e mexeu-os para trás, indicando que ele seria amarrado. Os soldados já estavam cercando a casa. Dessalines correu para a porta. O cura o chamou e ele respondeu que tinha de cumprir um dever militar. Pulou no cavalo e, seguido pela guarda, galopou na direção de Artibonite, atirando três vezes para o ar e gritando: Às armas! Às armas!. Escapou por pouco. (p. 321, Boitempo, 2000) (maiúsculas do nome da madame são minhas).

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