História ou ficções? Por que ainda ser tão positivista?, por Rogério Mattos

Num artigo, a Folha de São Paulo colocou um escrito de um cidadão de nome Leandro Narloch para fazer uma crítica da escrita dos historiadores. O escriba em questão costuma publicar manuais sobre práticas ditas politicamente incorretas

William Turner – Luz e cor (a teoria de Goethe) 

História ou ficções? Por que ainda ser tão positivista?, por Rogério Mattos

I. Num artigo, a Folha de São Paulo colocou um escrito de um cidadão de nome Leandro Narloch para fazer uma crítica da escrita dos historiadores. O escriba em questão costuma publicar manuais sobre práticas ditas politicamente incorretas, aos quais dá o nome de “guia”. É um best-seller cujo sucesso mostra as ramificações da imprensa marrom no mercado editorial e suas contribuições para a cultura de guerra acentuada nos últimos anos. Ele contesta, por exemplo, a suposta dificuldade de historiadores se utilizarem de pontos finais em suas frases. Retruca também sobre algumas terminologias que para ele parecem incômodas, mas que de fato são uma aporia da escrita historiográfica, a mediação entre a precisão conceitual e a expressão literária bem-sucedida. Sem surpresa, a Folha convoca alguém incompetente para falar de um assunto que nunca lhe diz respeito, já que nunca escreveu um livro de história. Além da prática que para ele é inexistente, ignora todo o debate intelectual na esteira da “virada linguística” nas décadas de 1970-80, com debates dos mais interessantes sobre os limites entre ficção e história, desde Paul Ricouer, Hayden White, Paul Veyne, Hans Ulrich Gumbrecht e até o brasileiro, com um trabalho muito sólido, o professor Luiz Costa Lima. Fora isso, existem toda uma série de publicações no ramo da história das mídias, que vai de Friedrich Kitler, Jonathan Crary e Stefan Andriopoulos. Sem falar de historiadores e filósofos conhecidos como Georges Didi-Huberman, Jacques Rancière e Giorgio Agamben, que trataram sobre a questão das imagens, das figuras literárias e da escrita científica. Isso para ficar num apanhado geral. Como dar uma resposta, ainda que breve, a esse tosco artigo, não menos ridículo que seu autor ou o veículo que o publicou? É o que tentarei por aqui.   II. A questão é que esse debate serve para historiadores e romancistas, mas também para cientistas e jornalistas e todos mais que trabalham com a necessidade de uma linguagem objetiva, porém que não conseguem fugir de certa subjetividade (o próprio caráter de composição literária de toda produção escrita), assim como literatos sempre esbarram com os empecilhos de se auto-exporem para dar objetividade à sua poética, ou seja, de alguma maneira trabalhar com os dados objetivos de suas experiências pessoais num relato que não deve ser o da auto-biografia. Nessa história, existe todo um estatuto da percepção sensorial, das experiências científicas, e de sua expressão, que muda do século XVII para o XVIII, como aponta Jonathan Crary em seu Técnicas do observador, editado pela Contraponto (2012, p. 74):

Goethe cita insistentemente experiências em que conteúdos subjetivos da visão estão dissociados de um mundo objetivo, em que o próprio corpo produz fenômenos que não possuem qualquer correlato externo. Noções de correspondência e de reflexão, nas quais se baseavam a óptica e as teorias do conhecimento clássicas, haviam perdido a centralidade e a necessidade na Doutrina das cores de Goethe, embora ele as tenha mantido em alguma parte. Talvez o mais importante seja a sua designação da opacidade como componente crucial e produtivo da visão. Se o discurso acerca da visualidade nos séculos XVII e XVIII reprimiu e ocultou o que ameaçava a transparência de um sistema óptico, Goethe sinaliza uma inversão e propõe a opacidade do observador como condição necessária para o aparecimento dos fenômenos. A percepção ocorre no âmbito daquilo que Goethe chama de das Tribe – o turvo, ensombrecido ou sombrio. Agora, pura luz e pura transparência estão além dos limites da visibilidade humana.

A imagem do Sol na pintura clássica não aparece mais como um corpo em separado da visão, como um mero objeto. Isso é o que mostra o quadro acima representado de William Turner sobre a Teoria das cores, de Goethe. No novo estatuto do observador indicado por Crary, “a visão do Sol, que dominara tantas imagens anteriores de Turner, agora passa a ser uma fusão entre o olho e o próprio Sol”. Assim, “o Sol é obrigado a pertencer ao corpo, e o corpo, de fato, se assume como a fonte de seus efeitos. Nesse sentido, talvez se possa dizer que os sóis de Turner são autoretratos”. Não existe propriamente um limiar, mas uma sobreposição de camadas, de transparências, onde as partes subjetivas e objetivas apesar de separadas como em lâminas, podem se confundir. Isso não aponta para uma duplicidade entre visão subjetiva e objetiva, mas para uma imagem cujo objeto não é suficiente para seu conceito. Em Turner, “o recurso ao anjo, um objeto sem referente no mundo, indica que os meios convencionais eram inadequados para representar a abstração alucinatória de sua experiências ópticas”. Por que não podemos falar de maneira igual, sobre uma espécie de “abstração alucinatória”, quando Marc Bloch resolve, com seu Reis taumaturgos, ilustrar sua experiência no capo de batalha e da proliferação de boatos? Cria assim um conceito cujos meros objetos (suas experiências no campo) não dão conta de satisfazê-lo. Assim, a escrita literária, a ficcionalização, serve ao mais rigoroso trabalho científico. Não por outro motivo, Walter Benjamin irá escrever suas Teses sobre o conceito de história inspiradas no quadro de Klee, o Angelus Novus, numa fuga para uma abstração não tão delirante, mas que aproxima o trabalho empírico das imagens do sonho. Ao contrário do pastiche do autor da Folha de São Paulo, as reflexões sobre a escrita, tanto de romancistas, como de filósofos, historiadores e cientistas, abrem um campo comum, uma verdadeira “partilha do sensível” cuja origem pode estar na chamada “virada linguística”. É um assunto rico e uma prosa maltrapilha como a do autor citado, o escritor de manuais, revela sua incompetência para abrir um debate minimante relevante sobre o tema. A associação do trabalho de antiquário aos primeiros historiadores dos Annales feita por Arnaldo Momigliano, a prosa abertamente literária de Sérgio Buarque de Holanda, a imagem relatada pelo próprio Foucault dele febril entre milhares de livros das bibliotecas que frequentava, sem saber ao certo por onde começar, por onde chegar, ou seja, a imagem daquele que vagueia mesmo que em meio a pilhas de arquivos ou a estantes com incontáveis volumes. Vagar, viajar, errar: esse o retrato de Heródoto traçado por François Hartog em seu Espelho de Heródoto. O historiador viajante, errante, que vê, numa profusão de espelhos, a imagem difusa do outro e que, por métodos que se tornam sofisticados por seu trabalho contínuo, conseguem precisar a noção de alteridade que o autor ainda fechado em sua subjetividade, em suas caras fantasias, ainda não conseguira. Uma noção sempre ambivalente entre o eu e o outro, o subjetivo e o objetivo apresentado depois da experimentação das mais variadas lentes. Viajar e por que não vagar: esse o trabalho do historiador antes de ter aquele livro solidamente estabelecido por sobre uma mesa, aquelas páginas que ele mesmo escreveu. Quantas lembranças elas não trazem para aquele que as fez, para além de qualquer debate erudito que tais palavras possam ter suscitado? Por isso vagueei tanto, para talvez trazer mais precisão a uma definição que faria com poucas palavras. Fora toda a questão teórico-metodológica e a colocação de problemas, essa seria minha resposta para o éthos do historiador.   III. Do “Livro das Instâncias”: fragmentos A Sérgio Buarque de Holanda   Estância XXIII Mares e povos perdidos, sempre nos entristecemos quando os adoramos.   Estância XXIV Existe a história e as histórias Dos mapas perdidos, dos tesouros achados, Da verdade encontrada, do fogo apagado.   Explicação Quando se estende o mapa Por sobre a mesa, A história que se escreve Por sobre o mapa É a da penúltima parada, Naquela aldeia. De mapas, cabanas e o punhal Por sobre a mesa. O candelabro alumia o mapa Por horas, que vagueiam. É a aldeia e a história, Que é a penúltima parada Nas horas mortas De quem traça rotas imaginárias Como se vivesse mais lídimo passado: Cabana, candelabro, aldeia. Dos que traçam rotas imaginárias, Dos que vagueiam. PS: Esse texto também pode ser visto em pdf no Academia.edu. Clique aqui. Rogério Mattos: Professor e tradutor da revista Executive Intelligence Review. Formado em História (UERJ) e doutorando em Literatura Comparada (UFF). Mantém o site http://www.oabertinho.com.br, onde publica alguns de seus escritos.
Redação

2 Comentários
  1. O que diferencia o jornalista, do escritor e do cientista é o uso que cada um deles pode fazer da imaginação. Sem ela ninguém pode se dizer escritor. Com ela o jornalismo pode ser investigativo ou ficar tentado a transformar fatos em invenções e invenções em fatos. Um cientista sem imaginação se torna dogmático. Com ela ele pode tanto inovar como afundar na credulidade.

    Jornalistas, escritores e cientistas usam a mesma ferramenta: a escrita. A descrição de um fato pode ser poética, mas o jornalismo exige o rigor narrativo (quem, quando, onde, como e por quê?). Mas a poesia desprovida de recursos de linguagem é apenas narrativa com ou sem rima. O cientista é um poeta quando imagina cenários inovadores e tenta comprá-los cientificamente, mas se não for um narrador não conseguir comunicar sua descoberta.

    Algumas pessoas conseguem transitar entre o jornalismo e a literatura, entre a literatura e a produção científica e entre esta e o jornalismo. Mas nem mesmo os gênios conseguem fazer as três coisas com a mesma competência. A incompetência do jornalista referido no texto é evidente. Ele quer vomitar regras, mas… ele violou a regra três onde o menos vale mais, entende?

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