Histórias do empreendedorismo brasileiro, por Fábio de Oliveira Ribeiro

O "novo empreendorismo" - um evidente superlativo usado para descrever o velho comercio ambulante de uma parcela da população que sempre lutou desesperadamente para não morrer de fome.

Histórias do empreendedorismo brasileiro, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Em meados dos anos 2000, no vagão do trem da Fepasa em que eu retornava para Osasco após uma audiência na Justiça do Trabalho em São Paulo, o empreendedor (então conhecido como vendedor ambulante) vendia despertadores chineses a 5 reais cada. Outro empreendedor, um que explorava o ramo do entretenimento ao vivo em troca de pagamentos incertos e voluntários (também conhecido como o cego que toca e canta no trem), pergunta ao colega.

– Esse despertador tem braile?

– É claro que tem. Ele tem braile, tem hora, tem minuto e tem despertador.

– Posso ver? – diz o empreendedor cego estendendo a mão para pegar um relógio.

– Pois então…

De posse do pequeno objeto, o empreendedor criativo o manuseia delicadamente. Depois ele devolve o relógio ao colega.

– Como faço para tocar os ponteiros?

– A pois… isso não dá para fazer não.

– Mas você disse que esse relógio tem braile.

– É claro que tem. Tem braile, tem hora, tem minuto e tem despertador.

– Se não dá para abrir o mostrador para eu tocar os ponteiros o relógio não tem braile não.

Imaginando que conseguiria realizar a venda e auferir o lucro, o primeiro empreendedor mostrou o produto novamente ao cego e afirmou com a segurança de um Relações Públicas com MBA.

– Você pode cortar com uma serra de fita aqui e aqui. Então os ponteiro ficam em braile.

– Se eu pedir para alguém fazer isso para mim como vou poder fechar o relógio depois de consultar as horas?

– Você quer ou não quer o braile? Então… É cinco reais cada.

O trem para numa estação e cada empreendedor foi para um vagão diferente. A venda não foi realizada por causa de um sutil problema de comunicação.

Nos anos 1990, também num trem da Fepasa, presenciei outro episódio curioso. Pouco depois de eu entrar na composição, uma mulher de meia idade se sentou ao lado de uma jovem grávida do outro lado do corredor. Sem perder muito tempo, ela puxou conversa com a outra:

– Quantos meses?

– Seis para sete. – respondeu a moça sorrindo.

– Menino ou menina?

– Eu e meu marido preferimos não saber não.

– Isso é bão. O nascimento de um bebê é sempre coisa de Jesuis. E esses médico são muito intrometidos, né… Eles acha que sabe tudo.

– É sim.

– Posso lhe dizê uma coisa importante, irmã.

– Pode sim.

– Quando o bebê nascê você tem que amamentá ele só com o peito direito. Com o esquerdo não, pois o pastor lá da minha igreja disse esquerda é coisa do demônio. E você não pode dar o leite do peito do esquerdo para o bebê não, entende? Ele vai virar do demônio se você fizer isso, entende?

Não presenciei o restante da conversa, pois tive que descer na estação seguinte rindo solto.

Contei essas duas histórias várias vezes, rindo solto da ignorância e da credulidade popular. Todavia, hoje sou obrigado a reconhecer que havia uma outra história acontecendo que não foi por mim percebida.

Refiro-me, obviamente, a história do advogado arrogante que ria daqueles dois episódios porque não era capaz de ver nada além do que estava na superfície. As pequenas igrejas grandes negócios prepararam o advento do bolsonarismo de maneira lenta, cuidadosa e persistente. A demonização da esquerda facilitou a criminalização da política que levou à queda de Dilma Rousseff e à destruição da nossa democracia.

Essa realidade paralela, que pode muito bem ser resumida pela frase “Mais Bíblia, menos Constituição”, tem tudo para se tornar duradoura, pois os jornalistas da grande mídia estão a incentivar o comércio de rua como se ele fosse algo virtuoso. No passado esse tipo de atividade econômica era considerada marginal e irrelevante (um problema no caso da Fepasa). Não sou economista, mas tenho a impressão de que esse “novo empreendorismo” (um evidente superlativo usado para descrever o velho comercio ambulante de uma parcela da população que sempre lutou desesperadamente para não morrer de fome) será incapaz de tirar o Brasil do buraco em que ele foi jogado para a alegria dos arquitetos estrangeiros do golpe de 2016 e da subsequente eleição de Jair Bolsonaro.

Fábio de Oliveira Ribeiro

1 Comentário
  1. Todo esse “empreendendorismo” está inserido na área de serviço e com a nova metodologia da averição do trabalho é caracterizado como ocupado. Pessoas que não podem adoecer, sofrer acidente ou ter férias e sobretudo envelhecer. Provavel que seja eleitores de Bolso ou da direita e que só irão perceber o buraco que se encontram quando necessitarem da proteção social do Estado. Parece-me que Chile foi isso aconteceu, mas lá como aqui será tarde.
    Pobres dos nossos filhos”!

Comentários fechados.

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