Homens em casa, mulheres mortas: possíveis causas de tantos feminicídios na América Latina

Por Camila Koenigstein

Estrada Cali a Bogotá, 3 horas da tarde, paramos em um pequeno estabelecimento.
Não havia ninguém por perto, exceto uma senhora que vendia café e pedaços de
bolo oriundos da região. Elogiamos o lugar, e ela logo ficou constrangida e se
recolheu – notamos claramente que elogios não ocorrem com frequência. Bogotá a
Medellín, o pequeno restaurante era tão isolado que quase não podia ser avistado.
À venda refeições para caminhoneiros, os que mais passam por ali, na televisão a
transmissão ao vivo sobre a desnutrição de crianças no interior do país. Com um nó
na garganta e profundo sentimento de tristeza, deixamos o local nos despedindo da
mulher solitária que servia os pratos. Na Colômbia, cenas como essas são
recorrentes – mulheres sozinhas vendendo cafés, aromática, chá digestivo comum
no país, e produtos artesanais, principalmente mulheres indígenas.

Cusco, 5 da manhã, surge o ônibus para levar os turistas à conhecida Montanha de
Sete Cores. Faz bastante frio, a viagem dura horas, uma subida sem fim. O
ambiente é inóspito, e todos se sentem mal pela altura.

Ao pé da montanha, o que primeiro se vê são mulheres conduzindo cavalos para
que os turistas possam subir até o pico da elevação, 5.200 metros de altitude. O
rosto das mulheres e crianças está queimado pelo frio intenso, e todas usam
chinelos com os pés descobertos, sem meias, inchados. Há um ar de cansaço
extremo. No pico, outras cozinham batatas para os visitantes, o vento é cortante e
começa a nevar, um espetáculo para os turistas, seguramente um sofrimento para
todas elas.

Nas vielas de Cusco é comum a presença de mulheres com bebês nas costas,
muitas conduzindo llamas, outras tecendo tapetes, toucas e blusas. São elas que
fazem a economia local girar.

Havana, mulheres de todos os tipos dançam nas ruas, fazem tranças, vendem
doces, frutas, trabalham em mais de dois lugares para incrementar a renda da
família.

A prostituição que envolve turistas europeus e norte-americanos é algo complexo
que o governo tenta evitar, mas ocorre com frequência.

A situação econômica é difícil, e o dinheiro vem dos turistas e parentes que vivem
fora do país. Pouco sabemos sobre essas mulheres, só constatamos o olhar
cansado, mas em cada conversa há esperança no fim do embargo e nas melhorias
que podem surgir.

Chile, Vina del Mar, feiras artesanais, mulheres mapuches vendem seus preciosos
artesanatos aos estrangeiros, que ficam encantados, o preço é atrativo para quem
paga em euro e dólar.

México, um dos países com maiores taxas de feminicídio do continente, um
esquema que envolve estruturas machistas, Estado omisso e cartéis de drogas.

Argentina, um caleidoscópio de realidades, em algumas regiões do norte há
pobreza extrema, morte de mulheres e crianças, assim como na capital,
principalmente nas villas, que não são vistas, exceto por organizações não
governamentais (ONGs) e serviços paliativos que não alteram a desigualdade que
só cresceu no período da pandemia.

No Brasil a realidade das periferias não está distante da vida de outras mulheres do
continente. Trabalho árduo, executado na maioria por mulheres pobres, negras,
indígenas e migrantes que se deslocam para os grandes centros em busca de
melhores condições para os filhos. Engana-se quem pensa que a maioria das
mulheres brasileiras são executivas de grandes corporações, embora estas
desfrutem visibilidade e sejam chamadas com frequência de “empoderadas”.
A vivência das mulheres indígenas e campesinas é bastante complexa, sobretudo
pela dificuldade de comunicação e pelo isolamento, que permitem tanto a
exploração por meio do trabalho como a violência doméstica e estatal.

A disputa pela terra, o modelo de agronegócio maquiam o protótipo de
uma realidade laboral replicada e valorizada, guerras territoriais,
protagonizadas por bandas ligadas ao narcotráfico, a difusão dos códigos
carcerários por bairros inteiros, o desaparecimento de mulheres nas mãos
das máfias, a proliferação de sicários que multiplicam crimes por encomenda,
redefinem um processo de exploração que intensifica modalidades de
benefícios e se estende a novos circuitos e espaços.

O contexto de brutalidade contra as mulheres sempre esteve presente. No entanto,
passados meses desde o início da pandemia, a América Latina evidenciou o
abandono que elas sofrem diariamente.

Essa é a face do continente pouco reconhecida, onde mulheres sobrecarregadas
fazem todo tipo de trabalho para sobreviver e manter a casa.
Segundo o Comitê Internacional de Resgate (IRC), o isolamento obrigatório
proporcionou duas pandemias concomitantes, com números alarmantes de
denúncias e mortes.

O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento identifica a desigualdade
como uma das principais causas da violência de gênero. Essa realidade se reflete
nos rankings: países mais desiguais também têm taxas desproporcionalmente altas
de feminicídio e violência contra as mulheres. O que em parte demonstra que a
ausência de trabalho e a presença constante dos homens dentro do lar, seja por
desemprego ou afastamento do trabalho criaram um fenômeno que seguramente
será investigado após o momento atual: um número estrondoso de mulheres
mortas.

Na dianteira de feminicídios estão Brasil, México, Colômbia e El Salvador.

“Las estadísticas recientes son horribles y demuestran la
alarmante tendencia de la violencia contra las mujeres y las niñas. Solo algunos ejemplos. En Brasil, las tasas de feminicidio
aumentaron un 22 por ciento en marzo y abril en comparación
con la misma época del año pasado”. Según los datos
mostrados por el Centro Wilson, en México, 987 mujeres y
niñas fueron asesinadas en los primeros cuatro meses de 2020.
El mes de abril batió un récord de cinco años De acordo com o
Conselho Presidencial para a Equidade da Mulher, houve um
aumento de 51% nos casos de violência doméstica contra a
mulher na Colômbia durante os primeiros dias da quarentena
nacional. A campanha NoEsHoraDeCallar identifica 99
mulheres como vítimas de feminicídio neste ano, de acordo com
o jornal El Tiempo. Desde o início da quarentena, as ligações
para as linhas diretas aumentaram em mais de 90%. En El
Salvador, durante las últimas dos semanas de marzo, “más del
50 por ciento de mujeres murieron más por feminicidio que por
Covid-19”.

Em comum, países marcados por racismo, desigualdade econômica e narcotráfico,
fator pouco debatido, mas, segundo a antropóloga Rita Segato, determinante no que
tange à violência, que gera nos corpos femininos territórios de poder, extensão do
domínio exercido nas ruas, uma espécie de mercadoria para os homens.
Marx, em seu livro Sobre o Suicídio, escrito em 1846, já mostrava que a violência
intrafamiliar era um desdobramento da frustração do mundo do trabalho,
desemprego e humilhação, que os homens levavam para o lar, o único lugar em que
exerciam poder.

Obviamente a sociedade ganhou novos contornos e se tornou muito mais complexa,
mas a ideia de extensão do espaço público para o privado com a mulher já
confinada, dominada e sujeitada ao dinheiro que o homem levava para casa surgiu
rapidamente aos olhos do autor.

O texto de Marx é uma das mais poderosas peças de acusação
à opressão contra as mulheres já publicadas. Três dos quatro casos
de suicídio mencionados nos excertos se referem a mulheres vítimas
do patriarcado ou, nas palavras de Pechet/Marx, da tirania familiar,
uma forma de poder arbitrário que não foi derrubada pela Revolução
Francesa. Entre elas, duas mulheres ¨burguesas¨ e a outra de origem
popular, filha de um alfaiate. Mas o destino delas fora selado mais pelo
seu sexo do que por sua classe social. (Michel Levi)

Junção de análises distintas, mas que não descartam o capitalismo do núcleo da
violência contra a mulher, é importantíssimo para entendermos como a pandemia
aumentou os casos de feminicídio. Os estudos feitos pelo Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento identifica que a falta de acesso à educação e a

dependência econômica são fatores que afetam as mulheres e fazem com que
muitas delas permaneçam em relações abusivas e violentas.
No restante do continente as mortes também seguiram de forma exponencial.
Argentina com 71 mortes, Venezuela 131, Bolívia 19, Nicarágua 55, Peru 12, sendo
Cuba o único país com 3 mortes, o que ressalta a relação capital/violência como um
grande fenômeno social a ser estudado, o que não exclui de maneira nenhuma a
estrutura machista existente no país, como no resto do mundo.

O rol do feminismo no momento

Sem dúvida alguma, a dianteira do movimento feminista está a Argentina, que,
embora tenha uma multiplicidade de agrupações, cada qual com suas
reivindicações, entende que as mudanças estruturais dentro do sistema capitalista
surgem por meio de leis, inclusive com um olhar mais amplo sobre mulheres de
outras localidades. O Ni Una Menos nasceu em 2015, após a morte de Chiara Paez,
14 anos, grávida e assassinada pelo namorado. Chiara teve o corpo esquartejado, o
que gerou uma onda de comoção no país.

Florencia Etcheves, periodista y conductora en ese momento de
TN, canal de noticias, le respondió: “Se me ocurre mujeres referentes
grosas convocando a mega marcha. No sé si sirve, pero visibiliza”. En
ese momento, las fundadoras de Ni Una Menos jamás iban a pensar
que la convocatoria se convertiría, casi cuatro años después, en uno
de los movimientos políticos más influyentes, que no sólo marca
agenda en la Argentina sino también que inspiró a feministas de otros
países.

Outro marco, juntamente com a pressão exercida sobre respostas para os
feminicídios, é a legalização do aborto, que evitaria a morte de mulheres e meninas
menores de idade, que têm seu futuro completamente alterado com a maternidade
precoce, muitas vezes por meio de estupros, inclusive dentro de casa.

O hábito de sair às ruas mostra que há esperança em alterar o cotidiano de muitas
mulheres em toda a América Latina, desde que isso se torne prática constante.
Talvez a pergunta mais importante seja: quando mulheres dos grandes centros com
privilégios oriundos da raça e classe vão agarrar as mãos das mais necessitadas? A
luta feminista será liberal, pautada na estética e nos corpos, tão comum nas redes
sociais, que não visibilizam a realidade dura da maioria de nós, sul-americanas?

Vamos entender que basta qualquer alteração social para que nossos corpos sejam
alvo de violência? Que a luta por uma educação escolar que desconstrua o
machismo é parte do nosso compromisso com as gerações futuras? Ou vamos
entregar séculos de resistência ao grande capital, apagando o que nossas
companheiras lutaram por séculos para conseguir no âmbito legal?

Vale lembrar Hannah Arendt: o poder nunca é propriedade de um indivíduo;
pertence a um grupo e existe somente enquanto grupo unido.

Bibliografia
https://www.opendemocracy.net/pt/democraciaabierta-pt/feminicidios-durante-a-quarentena-
america-latina-enfrenta-duas-pandemias/
https://www.lavanguardia.com/vida/junior-report/20200309/473968428582/aborto-proyecto-
ley-argentina.html
https://www.nytimes.com/es/2020/03/30/espanol/america-latina/coronavirus-trabajadores-
informales.html
https://www.bbc.com/mundo/noticias-52900596
SEGATO, Laura Rita, La escritura en el cuerpo de las mujeres asesinadas en Ciudad de
Juárez. Buenos Aires: Tinta Limón, 2003.
MARX, Karl, Sobre o Suicídio. São Paulo. Boitempo, 2006

Camila Koenigstein. Graduada em História, pela Pontifícia Universidade
Católica – SP, e pós-graduada em Sociopsicologia, pela Fundação de
Sociologia e Política – SP. Atualmente faz Mestrado em Ciências Sociais, com
ênfase em América Latina y Caribe pela Universidade de Buenos Aires (UBA).

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