Humanidade e animalidade de Drauzio Varella, por Paulo Fernandes Silveira

Não se trata de minimizar os crimes cometidos por Susy Oliveira, crimes pelos quais ela cumpre pena, mas de nos permitirmos ter empatia por qualquer outro ser que esteja sofrendo.

(“O sabá das bruxas”, Francisco Goya, 1821-1823).

Humanidade e animalidade de Drauzio Varella 

por Paulo Fernandes Silveira

“Eles podem sofrer?, perguntava simplesmente e tão profundamente Bentham” (Derrida, O animal que logo sou, p, 54).

A obra do filósofo judeu franco-argelino Jacques Derrida demonstra sua luta incessante contra os horrores da Shoah. No início dos anos 40, com a promulgação das leis de exceção na Argélia, Derrida e sua família são obrigados a deixar o país. Como vários outros intelectuais que enfrentaram o antissemitismo, Derrida direciona suas pesquisas para os arquivos, testemunhos e memórias do genocídio judeu.

Em seus últimos trabalhos, Derrida amplia sua crítica a outras formas de extermínio ou genocídio. Numa entrevista para a psicanalista Elisabeth Roudinesco, o filósofo afirma: “tenho simpatia (e prezo essa palavra) por aqueles que se revoltam contra a guerra declarada a tantos animais, contra a tortura genocida que se lhes inflige frequentemente e de forma perversa, criando em massa, de maneira hiperindustrializada, rebanhos que são exterminados para atender supostas necessidades dos homens” (2004, p. 86).

Nessa entrevista e em outros textos, Derrida retoma uma frase bastante conhecida            do filósofo Jeremy Bentham: “A questão não é: eles podem raciocinar? Tampouco: eles podem falar? Mas: eles podem sofrer?”. Numa atitude próxima à de Primo Levi, ex-prisioneiro de Auschwitz que escreve contra toda forma de violência aos animais, Derrida se rebela contra toda forma de sofrimento provocado pelo homem.

O mesmo princípio que pretende legitimar a violência e o sofrimento aos animais, o argumento de que eles não são semelhantes aos homens, é usado para autorizar a violência e o sofrimento a todo vivente estranho à espécie humana, até mesmo aos homens que deixem de ser reconhecidos como tais, sem que isso seja compreendido como um crime ou uma crueldade (DERRIDA, 2016, p. 165).

Uma das palestras de Derrida, traduzida por seu amigo Fábio Landa, tem como título        “O animal que logo sou. Além de se contrapor à frase de Descartes “penso, logo existo”, o título de Derrida indica a impossibilidade de uma distinção radical entre a humanidade e a animalidade. A vulnerabilidade para o sofrimento é uma característica comum e intransponível entre os homens e todos os outros animais.

No último domingo (8), numa reportagem para um programa de televisão, o médico Drauzio Varella manifestou empatia e abraçou Susy Oliveira, uma detenta trans que sofre por não receber visitas há alguns anos. Em nenhum momento da reportagem, Varella discorre sobre os crimes pelos quais Oliveira foi julgada e condenada: o estupro e assassinato de um menino de 9 anos.

Por causa dessa omissão, a reportagem acaba sugerindo que a ausência de visitas se deve ao fato de Oliveira ser trans, e não por causa da gravidade dos crimes que cometeu. Após a repercussão da reportagem, Varella alegou jamais perguntar aos seus pacientes sobre aquilo que eles possam ter feito de errado, sejam pacientes atendidos no seu consultório ou nos presídios em que trabalha.

De alguma maneira, penso que o movimento aberto por Jeremy Bentham, Primo Levi e Jacques Derrida contra toda forma de violência e de sofrimento, é exemplarmente recuperado por Drauzio Varella. Não se trata de minimizar os crimes cometidos por Susy Oliveira, crimes pelos quais ela cumpre pena, mas de nos permitirmos ter empatia por qualquer outro ser que esteja sofrendo. São pessoas belas como Drauzio Varella que nos encorajam na resistência ao fascismo.

Paulo Fernandes Silveira (FE-USP e IEA-USP)

Referências:

BENVEGNÙ, D. Animals and animality in Primo Levi’s work. Londres: Palgrave Macmillan, 2018.

DERRIDA, J. A besta e o soberano (Seminário): vol. I (2001-2002). Rio de Janeiro: Via Vereta, 2016.

DERRIDA, J. O animal que logo sou. São Paulo: Editora UNESP, 2002.

DERRIDA, J.; RODINESCO, E. De que amanhã: diálogo. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

LEVI, P. O ofício alheio. São Paulo: Editora UNESP, 2016.

Redação

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