Junho de 2013 e o rumor da multidão: dissonâncias entre os movimentos sociais e os ativismos virtuais, por Paulo Fernandes Silveira

Nos últimos 50 anos, as CEBs e as pastorais ajudaram a conceber os principais movimentos sociais do país.

(Primeiro Encontro Internacional da Coalizão Negra por Direitos, São Paulo, Ocupação Nove de Julho, novembro de 2019).

Junho de 2013 e o rumor da multidão: dissonâncias entre os movimentos sociais e os ativismos virtuais 

por Paulo Fernandes Silveira

Contrário a todo tipo de hegemonia, a livre circulação da palavra – literária, poética – abrangia novas razões da vida em comum” (Olgária Matos, “1968: Paris toma a palavra”).

Entre as vozes que ecoaram em meio à efervescência do movimento estudantil de 68, surpreende o entusiasmo com o qual Michel de Certeau, sacerdote jesuíta e historiador, saudou a novidade das manifestações: “Em maio último, tomou-se a palavra como se tomou a Bastilha em 1789” (1968, p. 29).

Encantado com a democracia direta colocada em prática nas assembleias promovidas pelos estudantes nas ocupações das escolas, universidades e teatros, Certeau transforma a expressão “tomada da palavra” num conceito filosófico e político que seria retomado por Roland Barthes, Jean-Luc Nancy, Giorgio Agamben e Jacques Rancière.

Nos anos 60, visando impulsionar uma renovação (aggiornamento), a Igreja Católica iniciou a uma série de mudanças (FERNANDES, 1994, p. 36). Um dos objetivos principais era ampliar e fortalecer a relação entre a Igreja os pobres. Em setembro de 68, bispos de várias nacionalidades participaram da Conferência de Medellín. Entre as resoluções aprovadas nesse encontro estava: “Encorajar e favorecer todos os esforços do povo para criar e desenvolver suas próprias organizações de base, pela reivindicação e consolidação de seus direitos e busca de uma verdadeira justiça”.

Essa proposta se materializou com a formação das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Influenciadas por diversos intelectuais de esquerda, as CEBs incorporaram ideias socialistas e marxistas (LÖWY, 2016, p. 88). Em sua formulação, as CEBs herdaram a “utopia antiautoritária” do movimento estudantil de maio de 68 (LEGER, 1976, p. 284). Com uma estrutura simples e enxuta, as CEBs são pequenos grupos coordenados por bispos, padres ou leigos (BETTO, 1981, p. 16). Em encontros regulares com o intuito de fomentar a discussão sobre temas bíblicos, os membros da comunidade também são instigados a refletir sobre questões sociais e políticas.

A partir da discussão sobre os problemas da comunidade, as CEBs estimulam a criação de pastorais e de outras organizações de base: clubes de mães; movimentos de jovens; movimentos pela terra; movimentos por moradia, etc. No Brasil, com o recrudescimento da repressão militar após o AI-5, as CEBs passaram a ser uma das poucas alternativas de mobilização popular (JACOBI, 1982, p. 149).

Segundo Rubem Fernandes, nos anos 70, aquele que pretendia atuar num movimento social, fosse religioso ou materialista, acabava procurando alguém da “Igreja dos pobres” (1994, p. 36).

Em vários pontos, as CEBs se aproximam das ocupações estudantis de 68. Além de promoverem a democracia direta e a circulação da palavra, elas contemplam uma diversidade de demandas. Nesse sentido, como destacam Foucault, Deleuze e Guattari, o movimento emancipatório abre-se para uma irrupção de subjetivações políticas (RAMBEAU, 2018). Na interpretação de Marilena Chaui: “A marca dos movimentos realmente libertadores é sempre a inclusão e a ampliação”. Um exemplo disso foi o surgimento do “Movimento Sem-Teto” de Maceió. Em 1989, após um deslizamento, milhares de pessoas ficaram desabrigadas. Isso motivou a CEB da região, que não tratava diretamente do tema, a organizar o movimento (MEDEIROS, 2018, p. 132).

Nos últimos 50 anos, as CEBs e as pastorais ajudaram a conceber os principais movimentos sociais do país. Na luta pela reforma agrária, formou-se o MST; na luta pela moradia, formou-se o MTST e outros movimentos; na luta pelo acesso dos negros às universidades, formou-se o PVNC, cursinhos pré-vestibulares para negros e carentes; na luta contra a mortalidade infantil, formou-se a Pastoral da Criança; na luta pelos direitos dos catadores de recicláveis, formou-se o MNCR; na luta pela vida e dignidade das pessoas em situação de rua, formou-se a Pastoral da Rua, etc.

As manifestações de junho de 2013 pouco ou nada dialogaram com essa história e com esses movimentos sociais. Elas foram convocadas pelo Movimento Passe Livre (MPL), que se reconhece como um movimento social. No entanto, elas ganharam expressão com a forte atuação de coletivos formados por ativistas virtuais. A pauta geral contra o aumento das passagens do transporte público ajudou a instigar centenas de milhares de pessoas a participarem daquelas manifestações, que também implicavam num protesto contra os governos municipais e estaduais.

Com essas manifestações, o Brasil entrou no mapa dos grandes protestos mundiais construídos a partir do que Howard Rheingolg (2002) chamou de “multidão inteligente” (smart mob): informadas pelas redes sociais ou pelos telefones celulares, uma multidão vai às ruas protestar. Foi assim na “Batalha de Seattle”, em 1999, protesto contra a Organização Mundial do Comércio (OMC), nas Filipinas, em 2001, manifestações que derrubaram o presidente, e no “Ocupe Wall Street” (OWS), em 2011, protesto contra a desigualdade econômica e social, a ganância e a corrupção.

Em comum, as pessoas que compõem essas multidões têm acesso à internet e ao telefone celular; são motivadas por uma pauta geral (guarda-chuva) que envolve a oposição a um governo e não têm outra forma de relação entre elas, além das redes sociais e dos encontros nos momentos dos protestos. Semanas após o término do OWS, Simon Jenkins, colunista do jornal The Guardian, analisou a desarticulação da multidão que fez parte daqueles protestos: além da oposição ao status quo, não havia um projeto, aquilo não passou de um mero cenário de uma insurreição.

Por mais legítimas que sejam as pautas dos ativismos virtuais que visam formar uma “multidão inteligente”, elas não surgem da tomada da palavra e do debate entre trabalhadores que fazem parte dos movimentos sociais. Num texto recente sobre o tema, Wilbur Schäffer destaca a importância de a militância tradicional utilizar as ferramentas da internet para organizar suas mobilizações e, eventualmente, somar forças com outros grupos da militância virtual. Ainda assim, isso é muito diferente de construir uma manifestação restrita ao horizonte das redes sociais.

Em novembro de 2019, na Ocupação Nove de Julho, localizada no centro da cidade de São Paulo, o movimento negro organizou o “Primeiro Encontro Internacional da Coalizão Negra por Direitos”.

Em vários espaços da ocupação, diversos movimentos debateram temas fundamentais, trocaram experiências, elaboraram propostas e delinearam medidas a serem tomadas a médio e longo prazo. É assim que eu penso ser possível lutar pelos direitos: com organização popular, com democracia direta e com a circulação da palavra – literária e poética – que amplie nossa vida em comum.

Paulo Fernandes Silveira (FE-USP e IEA-USP)

Redação

8 Comentários

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  1. É incrível a capacidade das pessoas de embasarem teses sem nenhum apoio nos fatos.

    “elas ganharam expressão com a forte atuação de coletivos formados por ativistas virtuais.”

    O autor deveria indicar uma única linha de comprovação empírica disso. Pior ainda, coloca a Batalha de Seattle em 1999 no meio. Desconhece todas as redes (não virtuais) que existiam, e que sem elas não teria havido a tal batalha. Ah sim, usavam a internet, emails, sites, para se comunicarem mundialmente. Mas também usavam os correios. A classe trabalhadora sempre vai usar os meios de comunicação à sua disposição em cada período histórico. Isso é diferente de dizer que se trata de “ativismo virtual”.

    Que o autor responda: quais “ativistas virtuais” impulsionaram o tal “junho de 2013”. Se ele dissesse que após o dia 13 de junho os grandes meios de comunicação (TVs, Jornais) impulsionaram, ok. Mas “ativistas virtuais” é do campo da alucinação.

  2. Quando o todinho fica muito caro aí o MPL, Black Blocks, Anonimos e outras grifes -supostamente- ativistas surgem para se rebelar contra “tudo que está aí”. “O gigante acordou” mas, essa turma de pequeno burgueses continua dormindo e assim permanecerá até mandarem de novo. Ou melhor, até o preço do todinho ficar insuportável.
    Tenham paciência, ora bolas!

    1. Que delírio.. pessoal ta sendo preso pelo que fazia antes e depois de 2013, lutando por transorte gratuito. Transporte já leva mais de um terço do salário das famílias mais pobres. Enquanto isso, quem está adormecido atrás de um computador deve ser você.
      Cadê a CUT e os movimentos ligados ao PT? Esses sim estão dormindo.

      1. Fala sério, rapaz! você enxerga trabalhador no movimento todinho livre, digo, passe livre? Não. A maioria esmagadora é de estudantes universitários e alguns secundaristas. Os trabalhadores deram procuração para vocês reclamarem por eles? O problema de se falar o “povo” está cansado, o “povo” não aguenta mais é que quem fala, na realidade, se acha fora do conceito “povo”. O todinho não aumentou mais depois de 2013? Onde essa turma estava até agora? cadê os Black blocks que vocês enchiam a boca para defender? cadê os anônimos? esses pelo menos são mais coerentes, fizeram o trabalho sujo e sumiram, não querem dar uma de lutadores do “povo”. E agora? o que vocês vão fazer já que a globo não notícia as passeatas 24hs por dia? ou vocês acreditaram que aquilo foi “espontâneo”, “horizontal” “sem partido” kkkkkk piada

    1. Até uma matéria que tem um título desse não consegue mostrar no seu conteúdo que ativismo virtual turbinou algo..
      Na matéria eles entrevistam um monte de gente que ficava sabendo de atualizações de manifestações pelo facebook e twitter. Ora, é óbvio que numa época em as pessoas usam mídias sociais, que elas fiquem sabendo de manifestações por ali, nas grandes cidades O que não significa que os organizadores eram ativistas virtuais. Por vezes fico sabendo de manifestações organizadas por organizações ligadas ao PT pelas mídias sociais também.

      Tente achar uma fonte séria de pesquisa que trate junho de 2013 como ativismo virtual. Pegue o livro do petista acima de qualquer suspeita Ruda Ricci, Nas Ruas, sobre as manifestações em Belo Horizonte. Ele conta a história real daqueles coletivos, e grupos por trás. Vida real. O artigo postado aqui no GGN faz parecer que o MPL era algo virtual, ou desenraizado, e que só movimentos de base católicos fossem enraizados. Não há fundamento nisso. Toda a experiência democrática que você relata sobre os CEBs se viu também, e em até nível provavelmente maior, na ocupação das escolas em São paulo em 2015. E se você pesquisar vai descobrir que aquela geração foi influenciada por 2013 e particularmente pelo MPL, que fazia trabalho de base nas escolas. Aquela experiência de autogestão e democracia direta foi uma das heranças (essa à esquerda) da revolta contra o aumento das tarifas de 2013 e do trabalho de base do MPL.

      Sobre a Batalha de Seattle então, nem se fale. Existe material de consulta sobre as redes que existiam de ação direita. Mas o evento contou com participação de sindicalistas, ONGs, ecologistas etc.

      Um artigo desse o que faz é difundir desinformação, desculpe.

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