Lula e Prestes: uma falsa contradição, por Marcio Tenenbaum

A pandemia deixará a nós todos mais pobres e endividados, mas muitos serão mais pobres e endividados que outros. A pandemia não criou o caos na saúde, simplesmente o agravou.

da ABJD – Associação Brasileira de Juristas pela Democracia

Lula e Prestes: uma falsa contradição

por Marcio Tenenbaum

Pachukanis, em sua obra Teoria Geral do Direito e Marxismo, nos apresenta um aspecto das relações políticas que a burguesia utiliza como padrão: a normalização das relações burguesas esvaziadas do seu implícito aspecto ideológico. Segundo ele, é fundamental, para a aceitação da dominação burguesa, que a sociedade acredite que as regras provenientes do corpo político não têm nenhuma base ideológica, ou seja, precisam ser compreendidas como algo que têm uma ligação com a realidade e, mais importante e fundamental, que representam a expressão de uma verdade absoluta, para a qual não há alternativas. No campo da economia, por exemplo, Delfim Neto, nos anos 70 do século passado, vendeu a ideia de que era preciso, inicialmente, fazer crescer o bolo, para só então distribuí-lo. Apoiado em uma ditadura feroz, com amplo espaço na imprensa, esse mantra atravessou décadas justificando a impossibilidade da distribuição de renda, mesmo diante de elevado crescimento econômico, que, no começo daquela década, chegou próximo dos 13% ao ano. Foi necessário que esperássemos mais de 40 anos para que um metalúrgico, sem curso universitário, demonstrasse à burguesia e ao país que era possível fazer exatamente o oposto: crescer e, de maneira concomitante, distribuir renda, mesmo quando o país não atingia as elevadas taxas de crescimento daquela época.

Recentemente, com o objetivo de construir uma alternativa ao governo Bolsonaro, setores da oposição resgataram uma tática política utilizada em diversos momentos da história brasileira: alianças entre partidos de diferentes matizes na luta contra o autoritarismo. Tentando incentivar os partidos a tomarem a dianteira, intelectuais, juristas e políticos com diferentes compromissos ideológicos divulgaram manifestos a favor da democracia. Uma assinatura ausente, contudo, remeteu a uma figura extremamente presente, criando um paradoxo semelhante àquele vislumbrado por Marx e, alguns séculos antes, por Shakespeare. Um espectro que ronda não a Europa nem as cortes dinamarquesas, mas o palco político brasileiro: Luiz Inacio Lula da Silva. Semelhante ao drama dinamarquês na tragédia de Hamlet, a frase usada por Lula, de que não era uma “Maria vai com as outras”, traduz que há algo de podre, não no reino da Dinamarca, mas no cenário político brasileiro.

A crítica de Lula era bastante procedente e é a mesma crítica-aviso de Pachukanis na normalização das relações sociais burguesas. Foram muitos os atores políticos que idealizaram a necessidade de uma frente sem fazer referência aos aspectos ideológicos nela implícitos. Infelizmente, alguns setores da própria esquerda, inclusive, não escutaram o aviso feito pelo grande jurista russo há mais de 80 anos.

Ao se recusar a assinar um manifesto junto com os mesmos personagens responsáveis por colocar o país à beira do fascismo, Lula, na realidade, não se afastou do exemplo de Prestes quando subiu no palanque de Getúlio, como muitos quiseram crer. Ao contrário, a recusa de Lula o aproxima de Prestes. Para perceber isso, no entanto, é necessário não se apegar aos gestos isolados, nem de Prestes nem de Lula, mas enquadrá-los na conjuntura de cada momento, sob pena de se deturpar a história. Prestes, ao subir no palanque de Getúlio, durante o movimento denominado “Queremismo”, manifestava o apoio ao presidente que criara a legislação trabalhista, a Companhia Siderúrgica Nacional, entre outros direitos e conquistas comprometidas com a soberania nacional, contra uma burguesia tradicionalmente entreguista. Lula, ao se recusar a assinar o manifesto em companhia de personagens que ignoram a soberania nacional e desprezam a legislação trabalhista porque não têm compromisso com as camadas populares, caminha na mesma direção de Prestes. O comportamento dos dois personagens é apenas aparentemente paradoxal, porque, ainda que distantes historicamente, a aceitação de Prestes e a recusa de Lula os aproxima da mesma luta, a de não abrir mão do compromisso com os interesses e direitos dos mais vulneráveis.

A pandemia deixará a nós todos mais pobres e endividados, mas muitos serão mais pobres e endividados que outros. A pandemia não criou o caos na saúde, simplesmente o agravou. Os efeitos econômicos e sociais do sistema econômico implantado no país com o Golpe de 2016 foram agravados pelo surto do Coronavirus. É necessário, portanto, ter um olhar sobre esse regime econômico criado por uma burguesia que se encastelou no poder após o impeachment da ex-Presidenta Dilma. Lula, ao se recusar a colocar seu nome em um manifesto com os personagens que criaram esse caos político-econômico, sem que houvesse qualquer discussão prévia, sem mencionarem sequer as perdas dos direitos trabalhistas e as ameaças à soberania nacional, denuncia o aspecto ideológico que um manifesto dessa natureza contém. Essa simples verdade deflagrou uma tsunami de incompreensões, apenas porque a verdade incomoda.

A pandemia nos trouxe incertezas. Os otimistas burgueses querem nos fazer crer que assim que a curva começar a descer a vida retomará ao “normal” antigo. A burguesia quer que acreditemos no “normal” antigo para não discutirmos o caráter ideológico desse “normal”, um “normal” consumista, individualista, sem gastos públicos e com um estado mínimo, que ficou evidente, não só em nosso país, como no resto do mundo, fruto do mesmo regime neoliberal imposto pelo capitalismo internacional.

Mas esse “normal” ideológico do passado é insustentável em uma vida pós-pandemia, no mínimo porque, sem a participação forte do estado, os países não começarão sequer a se reconstruir. Nesse ponto, a recusa de Lula em assinar o manifesto, mais uma vez demonstra que o rei está nu. Quem pagará essa conta do endividamento público ocasionado pela crise sanitária do Covid-19? Novamente jogarão nas costas do povo brasileiro, como já fazem alguns setores da burguesia, antecipando os anúncios de que a economia não aguenta mais aumentos de impostos?

A recusa de Lula, afinal, nos mostra a coragem de alguém que rema com força contra a maré, optando pelo caminho mais difícil, quando poderia, considerando a sua biografia, ter escolhido a via fácil, recebendo os aplausos de todos. Mas Lula não é igual a todos. Parafraseando Hamlet, Lula nasceu uma vez, como todos nós, mas ao contrário de muitos, veio ao mundo para consertá-lo.

Marcio Tenenbaum é advogado com atuação no Direito do Trabalho e Direito Tributário. É membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).

Redação

1 Comentário

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  1. Tanto Lula quanto Prestes tiveram tempo para refletir o que o Brasil precisava e quem trabalhava por isto. Lula não precisou fazer uma grande auto-crítica, a não ser de não ter preparado o povo para a autodefesa. Prestes foi um agente de uma potência estrangeira, que tentou um golpe contra o que era na época um governo democraticamente eleito, o que deu pretexto para a perseguição a toda a oposição de esquerda. Mas ele teve a grandeza de reconhecer a obra feita por Getúlio e a que ele poderia fazer, o que foi provado durante seu governo seguinte.
    Por mais que taticamente poderia ser interessante juntar muita gente num grande balaio, como peixes num puçá, os tubarões logo, logo comeriam os peixes menos agressivos. FHC, Ciro, Lehman e seus seguidores certamente não merecem a companhia de gente de bem.

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