Lula, Evo, Maduro, as esquerdas brasileiras e as questões democrática e nacional, por Roberto Bitencourt da Silva

Lula, Evo, Maduro, as esquerdas brasileiras e as questões democrática e nacional

por Roberto Bitencourt da Silva

Evo Morales e Nicolás Maduro, dois destacados líderes sul-americanos de esquerda, muito ativos no Twitter, manifestaram solidariedade ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O presidente venezuelano afirmou que “o povo” do seu país “abraça Lula. Desta injustiça miserável sairás mais forte. América Latina e o Caribe levantam suas vozes por Lula!”. Quanto ao chefe de Estado boliviano, Evo Morales, sublinhou que, “sentenciado injustamente, o irmão Lula da Silva é vítima de uma conspiração que busca impedir que seja candidato e ganhe as eleições com o apoio do povo ao qual dedicou toda sua vida. Força irmão Lula”.

Como dezenas, talvez algumas centenas, de milhões de brasileiros e demais latino-americanos, Evo e Maduro nutrem grandes simpatias por Lula. É claro, também se encontram muito preocupados com a conversão de um gigante regional, como o Brasil, em território hiperneocolonizado pelas potências capitalistas, sobretudo o “grande irmão” do Norte. Conversão de um país dotado de enormes possibilidades humanas, políticas, econômicas, civilizatórias, igualmente estratégico para a autonomia regional, em mero joguete nas mãos do grande capital internacional e do imperialismo estadunidense. Os problemas daí decorrentes para Venezuela, Bolívia e outras nações coirmãs, não são pequenos.

A solidariedade não é gratuita, também por conta da odienta natureza persecutória do julgamento. Liguei a TV, assisti o relator, fiz outras coisas, continuava o relator lendo. Em nenhum momento disse existir registro de imóvel em nome do Lula. Era um tal de fulano disse, beltrano sei quem lá falou…. Convenhamos, até o jogo do bicho anda com mais moral e credibilidade que o Judiciário brasileiro, já que a sua regra é que “vale o escrito”. Afora a notória e repugnante seletividade judicial e midiática.

   

Entretanto, é plausível argumentar que, no íntimo, aqueles importantes líderes sul-americanos sabem que o rumo escolhido por Lula e o seu partido não poderia dar em outra coisa. Por experiências próprias, Evo e Maduro têm pleno conhecimento de que sem povo mobilizado e organizado não somente o governo e a soberania popular, como a própria Pátria vai para o beleleu. Fácil, fácil. Sobretudo, sob a realidade de um conjunto de países que integra a periferia capitalista, nessa América Latina séculos a fio submetida à ganância das potências coloniais, imperialistas e capitalistas euroamericanas, com seus títeres internos.

Quando a então presidente Dilma Rousseff, em meio à abrupta queda das exportações e dos preços internacionais das commodities – sem condições de compatibilizar interesses sociais e econômicos contraditórios –, em vez de adotar um programa conflitivo frente aos grandes e aos gringos, um programa de ação em favor do povo e do País, adotou diversas medidas defendidas pelo derrotado adversário tucano, aí babau. Alienou as suas próprias e potenciais bases sociais de apoio.

Quando a mesma Dilma teve à sua disposição cadeia nacional de TV e rádio para se defender e denunciar os violadores da soberania popular e os inimigos da Pátria, silenciou-se. Lembro-me bem de que, inclusive, pululavam nas redes e no mundo “off-line” petistas concordando com a opção, por receio da “bateção de panelas” de semianalfabetos políticos e reacionários entreguistas… O ex-presidente Lula era, precisamente, o arquiteto do silêncio e da capitulação programática (um programa, de resto, que já era demasiadamente tímido). Ora, mistificações à parte – e tão desnecessárias quanto improdutivas na conjuntura –, um líder lidera, politiza e mobiliza a sua gente. Que sirva de ensinamento para todas as esquerdas, que precisam superar o liberalismo de esquerda típico do petismo, mas que representa fenômeno muito mais dilatado do que Lula e o PT. Ele é hegemônico nas nossas esquerdas.

Dito isso, hoje, por onde andam aqueles setores minúsculos de esquerda, como o PSTU, uma esquerda cipaia, que defendiam “fora Dilma, fora todos”, onde andam? O PT tem inúmeros problemas, mas assim como ele, a maioria esmagadora das nossas esquerdas precisa também mudar o software mental. Começar a olhar o Brasil real, com as lentes voltadas não para o que ele parece, porém para o que é: um país subalterno na divisão social internacional do trabalho, latino-americano, integrante do que antigamente se chamava de 3º mundo, uma plataforma de exportação, terceirizada ou mesmo quarteirizada, para grandes corporações multinacionais. Um país cujo poder encontra-se nas mãos de burguesias de dentro e de fora que repartem os excedentes nacionais, intensificando a superexploração e sem dar vez ao povo.

Talvez a principal palavra-chave no vocabulário das nossas esquerdas – não apenas hoje, como desde os anos 1970 – seja “democracia”. Ora, “democracia” descarnada, formalística, sem conteúdo material, nem programa substantivo e participativo é expressão banal, etérea. A velha dicotomia “democracia/autoritarismo”, explorada e reverberada pelo então sociólogo FHC, nos idos dos 1970, ainda hoje é mote de ação para as esquerdas. Um “contrabando” irrefletido e acrítico que ainda impera no PT e em demais setores à esquerda.  

O que as nossas esquerdas não sabem, ou fazem questão de esquecer, é que todo o esforço intelectual e político de um FHC – que anda por aí todo pimpão, sempre jogando contra os interesses populares e da Pátria – era/é obscurecer os problemas que giram em torno da dependência e apagar a dicotomia que as esquerdas brasileiras dos anos 1950/60 entendiam e operavam perfeitamente:  emancipação nacional versus entreguismo.

Sem recuperar esse esquema interpretativo – diga-se, identificável nas ações e retóricas dos presidentes Evo e Maduro –, sem reconfigurar as categorias de percepção, amplos segmentos da nossa esquerda permanecerão fazendo trabalho inócuo. Sem perseguir a emancipação nacional, sem combater o entreguismo, não haverá democracia alguma, nem a precaríssima democracia semirepresentativa que tínhamos até uns dois anos atrás. Ou ainda não se sabe a motivação central do golpe? Sem lidar com a questão nacional, a questão democrática torna-se palavreado florido, mas impotente.

Em outra oportunidade pretendo recuperar essa questão do passado, que incide no presente, a partir de ilustrativo debate que polarizou os intelectuais Carlos Nelson Coutinho e Francisco Weffort, de um lado, e Theotônio dos Santos, de outro, na década de 1980. Por ora, apenas chamo a atenção para a necessidade de que as percepções sobre o Brasil precisam ser modificadas, mais realistas, observando os seus problemas de fato, distantes do privilegiado foco concedido às chamadas superestruturas, às instituições políticas e eleições. Sem isso, não conseguiremos sair da situação infame que as burguesias internas e gringas nos colocaram. E continuaremos sem projeto de País, nem programa de ação. Depois retomo o tema.

Roberto Bitencourt da Silva – historiador e cientista político.

Redação

2 Comentários

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  1. Correto diagnóstico.
    O

    Correto diagnóstico.

    O imperialismo entende perfeitamente isto, tanto que adestraram seus marionetes tupiniquins, notadamente aqueles do MBL, para que desqualifiquem este debate com argumentos tão rasteiros quanto seus propósitos. O mais comum é dizerem que a defesa de um projeto nacional independentista e anti-imperialista são idéias antigas, ultrapassadas, fazendo chacota com o apelo para que nos modernizemos. Fazem seu papel, é para isto que servem. O que não se pode aceitar é que setores de esquerda não aó não entendam isto como até façam coro.

    A defesa da democracia deve estar na linha de frente da nossa luta política, subordinada a um projeto nacional desenvolvimentista autônomo e calcada na ativa participação popular, que garanta o efetivo controle das instituições de estado pelo poder popular.

    O projeto de dominação econômica do imperialismo e seus associados da oligarquia interna e das castas do funcionalismo estatal é incomptível com a democracia de fato, pois num ambiente efetivamente democrático não conseguem impor seu projeto. O fascismo é uma necessidade para eles, ou abertamente assaltando as instituições do estado ou tendo-as sob tutela.

    Nossa luta necessita ser guiada por uma postura  ativamente anti-fascista (e por isso democrática) e nacional-desenvolvimentista, como condição para avançar um programa que atenda aos interesses populares. A clareza quanto a isto é que determina o arco de alianças a ser construído na sociedade (onde não há lugar para a predominâncias de acordos eleitoreiros, nem a protagonismo de tipos pedantes como o Pallocci, Zé Mané da justiça, Mercadante, Paulo Bernardo, Marta Suplicy ou Marina Silva, todos a seu momento com papel predominante).

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