Lula livre, e daí?, por Vilma Aguiar

O discurso contra o fascismo, que foi a tônica do PT desde a campanha, por exemplo, por mais correto que seja, fala apenas com convertidos.

Lula livre, e daí?, por Vilma Aguiar

Lula saiu de 580 dias na cadeia diretamente para liderar a oposição contra o governo Bolsonaro. Nos dois discursos que fez até aqui foi bastante claro em reivindicar o lugar que, de resto, estava vago desde a posse de Bolsonaro.

No período, apesar de tentativas tímidas de unificação da esquerda, ou mais amplamente, do campo progressista, este não conseguiu nem elaborar um discurso popular contra o governo e sua agenda nem viu emergir uma liderança capaz de lhes fazer frente. Ciro, Haddad e Boulos fracassaram. Por mais que Bolsonaro tenha atentado retoricamente e/ou de fato contra todas as instituições, tenha conspurcado o decoro do cargo, tenha proposto e aprovado projetos que roubam direitos, tenha mostrado seu nenhum apreço às regras republicanas e mesmo à boa educação, a oposição que ele encontrou veio mais de seu próprio campo de apoio, como a guerra que seu partido abriu contra ele, ou de seus aliados no Congresso, como a reprovação do decreto de liberação das armas. É certo que as derrotas no Congresso foram engordadas pela ala progressista, mas ela nem ao menos liderou essas derrotas. Mesmo quando Bolsonaro fez seus balões de ensaio contra a ordem constitucional. Foi sempre da direita e/ou da mídia tradicional que vieram os rechaços mais veementes.

Mais importante que isso, o campo da esquerda não conseguiu até aqui dizer ao povo o quanto as ações do governo Bolsonaro são deletérias a seus interesses. Não à toa, o índice de reprovação do governo baixa tão lentamente, se considerarmos o tamanho da falta de resultados de um lado e a deterioração dos indicadores políticos, sociais e econômicos de outro.

O discurso contra o fascismo, que foi a tônica do PT desde a campanha, por exemplo, por mais correto que seja, fala apenas com convertidos. As pessoas que vivem com menos de dois salários mínimos têm urgências muito mais prementes que pensar no solapamento da democracia que, para elas, dificilmente pode ser entendida de outra forma que a possibilidade de votar em seus dirigentes a cada 2 anos. Nas periferias ou nas comunidades, o Estado não chega ou chega em farrapos. O crescimento das milícias, a saúde e educação públicas precárias, a mobilidade urbana em colapso são experiências das quais essas pessoas não conseguem escapar. Dizer para uma mãe cujo filho não consegue atendimento em um hospital que o nosso perigo é o fascismo, é quase cínico. Não que não seja verdade, mas não cola como discurso popular capaz de mobilizar e colocar as massas nas ruas, como sonhamos nestes dez meses de agonia. Porque não conseguimos falar da falta de hospitais e empregos, não conseguimos também sensibilizar as pessoas para a defesa da aposentadoria que, no limite, é uma miragem distante para o trabalhador informal, que representa quase a metade de nossa mão de obra atualmente.

O discurso de Lula, pelo contrário, tem concretude. Ao mesmo tempo em que evoca continuamente sua trajetória de homem vindo do povo, filho de mãe analfabeta, exalta suas próprias conquistas como governante, aponta para as urgências do cidadão que tem dificuldades em encher o seu carrinho no supermercado, que sonha com o emprego com carteira assinada, com o filho na faculdade e com uma aposentadoria digna. Lula fala simplesmente em devolver essas coisas ao povo. Ele não apenas aponta para aquilo que de fato preocupa e atinge em cheio as pessoas, mas ainda fala isso com uma autenticidade que não é mero exercício de retórica. Daí vem a sua força.

É certo que ele aposta na crítica à Lava Jato e à agenda econômica como focos principais, mas não haveria como ser diferente. A Lava Jato é um alvo necessário já que depende de sua deslegitimação junto à opinião pública sua própria redenção como homem público, além do fato de que as entranhas podres desta já estarem expostas e resta apenas que seu odor se espalhe mais amplamente. A agenda econômica é também um alvo óbvio. Ainda que haja muitos analistas que apostem em uma retomada do crescimento econômico nos próximos meses, o modelo de desenvolvimento desenhado já desde o governo Temer, com desregulamentação do mercado de trabalho e fortalecimento dos mecanismos de concentração de renda, garante que, ainda que o país cresça, dos frutos do crescimento cheguem apenas migalhas para o povo a quem Lula dirige seu apelo.

A força do discurso de Lula também vem do fato de que articula movimentos sociais, lideranças sindicais e partidárias com a mesma facilidade com que fala com o cidadão comum. Eu apostaria todas as minhas fichas que ele jamais voltará para a cadeia mesmo que seu julgamento não seja anulado. Aquele clima de insanidade coletiva que a Lava Jato e a mídia criaram nos últimos anos e que possibilitou sua prisão não tem chances de reedição. Inclusive, seus discursos foram acompanhados de um enorme silêncio daqueles que meses atrás urravam por sua prisão.

O que se pode dizer é que, para o bem e para o mal, o país reencontrou o seu líder e a vida do governo Bolsonaro ficará bem mais difícil.

Vilma Aguiar – É socióloga, Doutora em Ciências Sociais (UNICAMP), Mestre em Filosofia (USP). Atualmente é professora de pós-graduação, presidente da Escola da Política e desenvolve uma pesquisa sobre o impacto do feminismo na vida privada de mulheres.  Escreve sobre política, feminismo e crônicas no blog Política no feminino (vilmaaguiar.blogspot.com) 

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