Cesar Locatelli
César Locatelli, economista, doutorando em Economia Política Mundial pela UFABC. Jornalista independente desde 2015.
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Lula se radicalizou?, por César Locatelli

Em seu pronunciamento em São Bernardo, no sábado 09/11, após deixar a cadeia, Lula não falou de luta de classes, de expropriação ou socialização dos meios de produção.

Lula se radicalizou? 

por César Locatelli

Talvez por descuido, por desinformação ou por outra razão que nos escapa, certas celebridades insistem em atribuir ao ex-presidente Lula o mesmo radicalismo, com a diferença de ser à esquerda, do ocupante do Palácio do Planalto. Nada mais equivocado.

Em seu pronunciamento em São Bernardo, no sábado 09/11, após deixar a cadeia, Lula não falou de luta de classes, de expropriação ou socialização dos meios de produção. Não falou de reforma agrária, de estatização dos bancos ou dos meios de comunicação. Não falou de armar quem quer que seja. Não usou uma vez sequer a palavra socialismo.

“A única coisa que eu tenho certeza: eu estou com mais coragem de lutar do que eu estava quando eu saí daqui. Lutar para tentar recuperar o orgulho da gente ser brasileiro, lutar para que as mulheres possam levar os seus filhos num supermercado e comprar o suficiente para eles comerem. Lutar para que o trabalhador possa ter um emprego com carteira assinada e leve para casa no final do mês o dinheiro para garantir a alimentação da sua família. Lutar para que o trabalhador possa ter o direito de ir a um cinema e de ir a um teatro, de ter um carro, de ter uma televisão, de ter um computador, de ter um celular, de ir ao restaurante e de poder, todo final de semana, reunir a família fazer um puta de um churrasco, tomar uma puta de uma cervejinha gelada. Sabe que é, na verdade, o que deixa a gente feliz.”

Bem, talvez alguns julguem que a luta por um emprego com carteira assinada, por ganhar o suficiente para alimentar a família, por poder tomar uma cerveja ou por alguma diversão sejam  demonstrações de um ideário de extrema esquerda. No máximo podem acusá-lo de um ‘extremismo fordista’ ou de um ‘socialismo made in USA no pós-guerra’. Ou a radicalidade estaria no adjetivo usado para qualificar o churrasco e a cerveja?

Não se pode dizer que seja radical ou surpreendente que o ex-presidente faça dura oposição ao governo:

“Veja, este cidadão foi eleito, ele foi eleito. Democraticamente, nós aceitamos o resultado da eleição. Esse cara tem um mandato de quatro anos, agora ele foi eleito para governar para o povo brasileiro e não para governar para os milicianos do Rio de Janeiro.”

Lula critica as ofensas do então deputado a mulheres, negros e LGBTs e, ainda, as medidas que prejudicam os trabalhadores do, agora, presidente da República:

“Eu fui oito anos deputado, ele nunca fez um discurso que prestasse. Ele só sabia ofender as mulheres, ofender os negros, ofender o povo LGBT, ofender as pessoas mais frágeis da sociedade.

Então eu quero saber por que é que este cidadão, que se aposentou muito jovem, quis tirar a aposentadoria do povo trabalhador brasileiro. Por que é que esse cidadão, que nunca ganhou um salário mínimo, resolveu dizer que não vai aumentar mais    o salário mínimo? Por que é que este cidadão resolveu acabar com a carteira profissional azul, criar uma vez da amarela que vai ter empregos intermitentes. Os trabalhadores não vão ter registro em carteira.

Eles têm que explicar por que é que eles estão apresentando um projeto econômico que vai empobrecer ainda mais a sociedade brasileira.”

Lula e todos aqueles com alguma atividade política sabem das dificuldades de mobilizar as pessoas para os embates, fora dos Legislativos, que a democracia exige. Ele cumpre, então, o papel que lhe cabe de chamar à participação:

“Eu quero dizer para vocês: não têm ninguém, não tem ninguém que conserte esse país se vocês não quiserem consertar. Não adianta ficar com medo, não adianta ficar com medo, não adianta ficar preocupado com as ameaças que eles fazem na televisão, que vai ter miliciano, que vai ter o AI-5 outra vez. A gente tem que ter a seguinte decisão: este país é de 210 milhões de habitantes e a gente não pode permitir que os milicianos acabem com esse país que nós construímos.”

Mesmo quando ele expõe aquilo que mais o indigna, ele o faz muito moderadamente propondo distribuição de livros, empregos e acesso à cultura:

“O que nós queremos, na verdade, é que esta gente saiba que esse país é nosso. Eu não posso, aos 74 anos de idade, ver essa gente destruir o país que nós construímos. Eu não posso ver aumentar o número de gente dormindo na rua, eu não posso ver aumentar o número de mulheres jovens vendendo o seu corpo a troco de um prato de comida, eu não posso ver mais jovens de 14 e 15 anos assaltando e sendo violentado, assassinado pela polícia, às vezes inocente ou, às vezes, porque roubou um celular. Se as pessoas tiverem onde trabalhar, se as pessoas tiverem salário, se as pessoas tiverem onde estudar, se as pessoas tiverem acesso a cultura a violência vai cair e nós temos que dizer contra a distribuição de armas do Bolsonaro, nós vamos distribuir livros, vamos distribuir emprego, vamos distribuir acesso à cultura.”

A denúncia da concentração crescente de renda, do aumento da desigualdade e do financiamento, pelo grande capital, de parte da classe política não é nem mais um discurso exclusivo das esquerdas anticapitalistas. Em todo o espectro político há quem veja a desigualdade de renda e riqueza como risco iminente ao atual modo de produção, e, mais ainda, o risco que o poder econômico impõe às democracias. Nas palavras de Lula:

“Estou disposto a percorrer esse país com os dirigentes sindicais porque não é possível que a gente viva nesse país vendo cada dia mais os ricos ficarem mais ricos e os pobres ficarem mais pobres.

(…)

Duzentas pessoas no Brasil têm mais dinheiro do que 100 milhões de pessoas e esta gente, por incrível que pareça, não mora no Brasil. Essa gente, por incrível que pareça, está tentando investir em algumas pessoas no Brasil para criar uma nova classe dirigente, financiada pelo dono da Ambev, financiada pela XP, financiada pelo Banco Itaú, financiada pelo Bradesco, financiada pelo Santander. Nós não temos nada contra essa gente.

O que nós queremos é gente formada no meio do povo brasileiro. Gente que conheça como é que mora o pessoal numa palafita, como é que mora o pessoal numa favela, como é que mora o pessoal nos bairros mais empobrecidos desse país. E aí quando a gente tiver esse governante, a gente vai poder consertar o país.”

Lula faz a defesa dos governos progressistas da América Latina, inclusive da Venezuela e dá seu recado claro aos EUA e aos arroubos imperialistas que pipocam por aqui:

“Veja, é normal, é normal que cada um de nós aqui possa ter críticas a qualquer governo do mundo,  agora, quem decide o problema do país é o povo do seu país e que o Trump, o Trump resolva o problema dos americanos e não encha o saco dos latino-americanos como ele está enchendo. Ele não foi eleito para ser xerife do mundo. Ele que governe os americanos, ele que cuide da pobreza lá. Mas eles que festejaram a queda do muro de Berlim em 90, estão construindo um muro contra os pobres. É o muro para não deixar pobre entrar nos Estados Unidos. Nós não podemos aceitar isso, nós não devemos aceitar isso.”

Já caminhando para o fechamento, Lula se opôs a um coro ofensivo a Bolsonaro que se formava. Relembrou o grosseiro grito, dos presentes na abertura da Copa do Mundo de 2014, contra Dilma. Simultaneamente deixou claro qual deveria ser a palavra de ordem a agregar das forças progressistas:

“O que nós temos é que olhar e dizer alto e bom som: nós não vamos permitir que eles destruam o nosso do país. É isso que nós temos que dizer e a partir de alguns dias eu quero que vocês saibam que Freixo, que Boulos, que Haddad, que Gleisi, que o PCdoB, que o movimento sindical, que a CUT, que a Força Sindical, que a gente esteja na rua e sobretudo, sobretudo, a juventude.

Olhe, a juventude ou briga agora, ou o futuro será pesadelo.

Olhe, olhe, nós vamos fazer, nós vamos fazer muita luta e luta não é ir um dia, depois de passar três meses e voltar, não. Luta é todo dia, é todo dia, é todo dia…”

Cesar Locatelli

César Locatelli, economista, doutorando em Economia Política Mundial pela UFABC. Jornalista independente desde 2015.

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