Mãe da Rua:  uma brincadeira agora triplamente perigosa, por Antonio Hélio Junqueira

Mãe da Rua:  uma brincadeira agora triplamente perigosa

por Antonio Hélio Junqueira[1]

Mãe da rua, para quem não sabe ou não mais se lembra, é uma brincadeira infantil das bem antigas, do tempo em que as famílias sentavam-se às calçadas, à noitinha, para prosear e vigiar os jogos e travessuras dos seus felizes e ruidosos rebentos.  A brincadeira consistia em dividir os jogadores em dois grupos polarizadamente oponentes e assumidos adversários, ferrenhos e renitentes. Cada um deles assumia seu lugar em um dos lados das calçadas ou lados opostos da via. A mãe da rua – eleita ou não, sorteada, autoritariamente imposta, voluntária ou simplesmente metida a mandona mesmo – posicionava-se no meio da rua, entre os dois grupos, com a missão de agarrar aqueles que tentassem atravessar de um lado para o outro, sempre pulando em uma perna só, à moda de sacis. Quem fosse agarrado na frustrada tentativa de “passar para o outro lado” devia se juntar à mãe da rua de plantão, contribuindo para perseguir todos os demais brincantes.

O jogo, para a época, representava poucos perigos e era bastante bem tolerado socialmente. Poucas e boas raladas de joelho (já que pular em uma perna é ato que comporta sérias instabilidades) normalmente resumiam as tragédias e não implicavam interrupções chorosas dos jogos em andamento. Tampouco inspiravam ofensas, xingamentos e recriminações mútuas entre oponentes. A brincadeira era jogo limpo e os participantes não costumavam portar bandeiras exógenas, porretes (especialmente os pertencentes a outros universos lúdicos, como os jogos de baseball) e cartazes com dizeres ofensivos. A mãe da rua, por sua vez, limitava-se à sua função coletora dos elementos transgressores utilizando-se apenas de suas capacidades físicas e intelectuais de atenção, agilidade e perspicácia para prever e antecipar movimentos, por mais limitadas ou tendenciosas que fossem. Quanto ao uso de bombas de efeito moral, balas de borracha, porretes e cassetetes: nem pensar!!! Pode-se dizer que a brincadeira era verdadeiramente democrática e pacífica. Quaisquer abusos de poder e intimidações não eram nunca bem recebidos, nem pelos próprios jogadores, nem, tampouco, pelos atentos observadores domésticos, de proximidade ou dos mais longínquos logradouros e rincões.

Tenho muitas saudades daqueles tempos, em que o mundo era mais inteligente e gentil. Gostávamos de ir tomar as ruas, democrática e galhardamente. Mas, nem por isso, éramos chamados de “marginais” e “terroristas”.

Ir para as ruas, ganhar as ruas, sair de casa sempre foram sinônimos de conquistar a liberdade. Já nos ensinou muitas vezes o célebre antropólogo carioca Roberto DaMatta[2] que em um País dominado pelo patriarcalismo autoritário, asfixiante e supercontrolador do espaço domiciliar, pular para fora da casa é, antes de tudo, um gesto libertador. Da porta para fora, descobrimos e aprendemos sobre aquilo que não nos é dado falar no lar.

Para nós, baby boomers mais do que para as gerações de X a Z e para a dita “geração canguru”, sexualidades e políticas eram temas proibidos nos sagrados espaços familiares. Mas, para tais assuntos, a rua sempre foi acolhedora e profícua mestra e conselheira (nem sempre para o bem, diga-se de passagem!). A rua é, por excelência, o lugar de encontro com o Outro, em contextos de igualdade e corporeidades afeitas às mestiçagens de cores, etnias, gêneros, idades, diferenças corporais. Impessoal e igualitária a rua é, pois, essencialmente democrática.

O eminente sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman[3] nos fala que um dos maiores desafios das políticas contemporâneas é, sem dúvida, a reconquista da dimensão comunitária e democrática dos espaços públicos, especialmente das ruas, como forma de reaprender e apreender a arte da convivência segura e pacífica, que venha pôr a nocaute certa mixofobia ascendente.

Todos somos donos da rua e, por isso mesmo, a rua não tem dono, não é de ninguém.  Ser mãe da rua representa assumir uma posição hierárquica apenas temporária, frágil e fugaz no corpo social. Tal lugar é livremente concedido por um coletivo que, assim como dá, tira!

Ninguém pode nos dizer, sem ônus, a quem pertence o espaço de expressão das ruas. Podemos, sim, sofrer restrições na nossa liberdade de ir e vir em atenção à proteção de um bem maior que é a saúde coletiva. Isso, sim! E é o que os que somos esclarecidos, educados, coerentes, empáticos e colaborativos estamos fazendo há quase 100 dias por conta da pandemia do coronavírus (covid-19).

No entanto, assistimos boquiabertos, ao longo de muitíssimas semanas, cortejos urbanos endiabrados cujos alvos foram portas de hospitais públicos, tradicionais ou de campanha, vias de grande tráfego de ambulâncias e outros que só a mais pronta e acabada sandice pode apontar. Nenhum deles foi coibido, apesar de seu inquestionável malefício ao bem comum e à proteção da vida. Pelo contrário, foram vilmente incentivados pela “mãe da rua” de plantão e seus celerados asseclas, que não se fizeram nem um pouco de rogados para assumirem presença de destaque nos corsos malditos

Isso tudo, porém, no acúmulo psicodélico de seus efeitos, não poderia deixar de ensejar uma reação de mesma magnitude e direção contrária. Afinal, mais do que nunca, é preciso dizer: basta! É imprescindível e inadiável defendermos a democracia de tantos, sistemáticos e descabidos achaques.

Nesse contexto, infelizmente, o risco que agora todos corremos tornou-se imenso e triplamente perigoso. Em primeiro lugar porque o Brasil nunca implantou, de fato, medidas de contenção da expansão do coronavírus. Enquanto muitos países do mundo civilizado já ensaiam a volta à dita normalidade das suas existências cotidianas, nós ainda sequer atingimos o pico da contaminação viral prevista. Assim, pisar na rua continua sendo ameaça de vida para nós mesmos e para os que conosco convivem ou de alguma maneira se relacionam. Em seguida, porque não é mais possível nos calarmos frente aos tamanhos descalabros antidemocráticos e ao fascismo ascendente que entre nós passou a habitar. Não gritar se tornou risco de efeitos imponderáveis ao nosso futuro. Por fim, o terceiro risco que ora nos assombra é a ameaça do desvirtuamento das mais legítimas expressões de nosso repúdio e insatisfação, pela infiltração mal-intencionada e perversa de arruaceiros, baderneiros e outros agentes do mal, com o nítido intuito de desqualificar os movimentos de oposição e justificar a mais ostensiva e odiosa repressão.

Sim, temos agora uma brincadeira perigosa em que a “mãe da rua”, enlouquecida e perversa, não se cansa de ensaiar todo tipo de astúcias para impedir o nosso avanço democrático no atravessamento das ruas. De cloroquinas, a camburões, de xingamentos a promessas golpistas de intervenção e reedições endemoniadas de atos pretéritos de números sinistros, chegamos ao vale tudo ditatorial.

Não resta nenhuma dúvida: o jogo perdeu totalmente a graça e qualquer sentido porque infringiu uma de suas regras fundamentais: a imparcialidade.  Para a “mãe da rua” de plantão, a somente um dos lados das turmas das calçadas é assegurada e garantida a ocupação segura do espaço público para sua manifestação ideológica, por mais nefasta e antissocial que seja.  Para o outro lado, a ameaça é explicitada pela promessa de confrontos inspirados pelo Big Brother nortista.  Já de antemão, a legitimidade da manifestação política de amplas parcelas insatisfeitas do tecido social é posta sob suspeita e previamente condenada sob a alcunha aviltante de simples arruaça ou da pecha de terrorismo. Para combatê-la, o ventríloquo trumpista tupiniquim sequer titubeia em prometer o uso de forças desproporcionais e totalmente absurdas e descabidas.  Afinal, rezam as disposições legais que, ainda que delitos sejam cometidos (por sabe-se lá quem e com quais intentos) no interior de manifestações públicas, seu combate e castigo são de competência de polícias estaduais, nunca de Forças Armadas.

Dois pesos, duas medidas. Uma intransigência e uma explícita incapacidade para o jogo democrático.   Assim, o jogo torna-se indecente e chegamos ao “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”.

O momento tornou-se difícil e as decisões a serem tomadas por cada um de nós quanto ao irmos ou não para as ruas exige imenso esforço e consciência dos riscos envolvidos. Cofiemos, porém, na sabedoria popular que assegura que não há mal que sempre dure, nem diabo que o inferno nunca lhe carregue (essa segunda parte acho que inventei no calor da hora).

Puxando pelas lembranças de nossas infâncias, nas brincadeiras de mãe da rua e outras tantas traquinices, sabemos que a criança birrenta, imatura, intransigente e maldosa, cedo ou tarde encontra aquele que vai lhe impor o limite, o freio e a punição merecida.

Os honestos e decentes viverão para ver! Disso, podemos ter certeza!

[1] Doutor em Ciências da Comunicação (ECA/USP), com pós-doutorado e mestrado em Comunicação e Práticas de Consumo (ESPM/SP). Engenheiro Agrônomo (ESALQ/USP). Pós-graduado em Desenvolvimento Rural e Abastecimento Alimentar Urbano (FAO/PNUD/CEPAL/IPARDES) e em Organização Popular do Abastecimento Alimentar Urbano (FEA/USP). Pesquisador e consultor de empresas em Inteligência de Mercado, Estudos do Consumo, Tendências de Mercado e Marketing. Sócio-proprietário da Junqueira e Peetz Consultoria e Inteligência de Mercado.

[2] DAMATTA, Roberto. A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e a morte no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

[3] BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.

Antonio Helio Junqueira

Pós-doutor em Comunicação e Práticas de Consumo. Doutor em Ciências da Comunicação pela ECA da USP, Mestre em Comunicação e Práticas de Consumo pela ESPM.

Antonio Helio Junqueira

Pós-doutor em Comunicação e Práticas de Consumo. Doutor em Ciências da Comunicação pela ECA da USP, Mestre em Comunicação e Práticas de Consumo pela ESPM.

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