Manifestos e protestos na encruzilhada da esquerda brasileira, por Erick Kayser

Manifestos e protestos na encruzilhada da esquerda brasileira

por Erick Kayser

Estamos imersos em uma conjuntura adversa e complexa, onde as buscas por alternativas encontram obstáculos que provocam um permanente prolongamento da crise brasileira. Um país que antes da crise sanitária, provocada pela pandemia global do vírus Covid-19, já se encontrava em estagnação econômica, agora, sob a ação negligente do governo federal, parece marchar de forma decidida para a recessão. Para piorar, não há perspectiva alguma, no curto prazo, de reversão desta recessão que já começa a provocar efeitos perversos na população brasileira, com o aumento exponencial no desemprego e miserabilidade. Este quadro de crise econômica têm por moldura uma crise política e institucional prolongada e sem qualquer esboço de solução imediata.

A presidência de Jair Bolsonaro atua como multiplicadora de variadas crises. Seja por estratégia ou inépcia, o governo ampliou os focos de instabilidade e reduziu sua base social de sustentação. Neste cenário, Bolsonaro, em vez de buscar recuperar o apoio perdido, optou pelo caminho oposto, dobrando a aposta em um caminho de maior radicalização e mobilização de sua base. Uma estratégia que busca coesionar sua base mais fiel, expurgando elementos vacilantes ou “impuros”. O tom beligerante adotado parece preparar o clima para uma ruptura institucional que promova um pleno fechamento autoritário do regime político brasileiro. Para piorar o cenário, eles insinuam não buscar um regime autoritário “tradicional”, mas uma ditadura totalitária. São muitos os elementos que demonstram que o bolsonarismo se afirma como uma nova forma de fascismo.

Fruto desta “onda fascista” que acompanha a radicalização bolsonarista, muitos setores que até então apoiavam o governo deslocaram-se para um campo oposicionista. Entre liberais e conservadores que emprestavam uma espécie de “apoio crítico” ao governo, especialmente devido a agenda de reformas neoliberais do ministro Paulo Guedes, viram este apoio ser cada vez mais custoso e difícil de justificar.

A esquerda, neste cenário, segue sem conseguir ter força social suficiente para recolocar-se no centro da conjuntura e apresentar uma alternativa com densidade para superar a “Crise Bolsonaro”. O grande obstáculo, contudo, não está apenas nos erros internos da esquerda, mas no bloqueio imposto pelas demais forças do espectro político. Mesmo com todo o caos provocado ou prolongado por Bolsonaro, as forças políticas da direita não-bolsonarista ainda acreditam ser possível evitar o pior sem a necessidade de um impeachment. A aposta em uma “domesticação” de Bolsonaro, mesmo contrariando todas as evidências, segue sendo a principal aposta destes setores.

Resumindo o impasse: enquanto todos os partidos e forças sociais da esquerda defendem abertamente o Fora Bolsonaro, poucas são as forças de centro ou de direita que aderiram a esta bandeira. A esquerda, sozinha, não possui hoje capacidade para derrubar o governo e este é a grande questão colocada na conjuntura: como ampliar as adesões a luta pelo Fora Bolsonaro? Quais estratégias a esquerda deveria adotar para avançar esta agenda, antes que seja tarde demais e tenhamos que debater como resistir a uma ditadura bolsonarista?

A escalada golpista e fascistizante do bolsonarismo hoje é um fato dado, não mais uma questão de “interpretação”. A recente popularização da bandeira antifascista confirma esta mudança de percepção, passando a ser cada vez mais tóxica qualquer tipo de associação ao governo. Muitos setores da direita brasileira, constatando isto, esboçaram uma espécie de reação “consentida”: bradam pela defesa da democracia, afirmam publicamente ser intoleráveis as ações autoritárias do governo, contudo, não ousam sair do terreno da retórica. Até então, as ações mais “ousadas” destes setores eram divulgar “notas de repúdios”, instrumento que banalizou-se de tal forma, que hoje virou motivo de piada.

A novidade recente foi o surgimento de alguns “manifestos” que buscam congregar amplos setores em defesa da democracia. Organizados por figuras públicas variadas, além da causa nobre, possuem o efeito positivo de ajudar a sedimentar alguma sensação de união da sociedade civil contra o autoritarismo. Contudo, por seu próprio caráter, tendem a não avançar para muito além disso, não sendo difícil prever que logo adiante, caso não se convertam em “movimentos” mais efetivos em termos de ações e organização, poderão ter um efeito frustrante similar ao das “notas de repúdios”.

Destes manifestos, ganhou maior repercussão o “juntos pela democracia”, que ainda que mantenha um caráter pouco propositivo (justificada pela tentativa de ampliar as adesões) e politicamente possa ser definido como um documento “centrista”, com inclinações à direita – defende a “responsabilidade econômica”, velho eufemismo para defesa de políticas neoliberais –, seu impacto é explicado por reunir um amplo espectro de artistas e figuras de renome da sociedade brasileira, além de políticos de muitos partidos diferentes, como FHC, Tábata Amaral. Fernando Haddad ou Guilherme Boulos. Contudo, talvez o que mais tenha se comentado foi a ausência de uma assinatura: a de Lula.

Um dos principais líderes populares da esquerda brasileira, a ausência na adesão ao manifesto ganhou maior repercussão após Lula justificar que não assinara deliberadamente, por não concordar com o conteúdo e nem com a adesão de algumas figuras políticas associadas ao golpe de 2016. Uma onda de críticas públicas povoaram a imprensa e as redes contra esta posição. Boa parte das críticas de pessoas de esquerda ou de “liberais democráticos” (sim, parece que eles voltaram a existir), apontavam que o problema seria Lula querer “hegemonizar” qualquer movimento, não querer ceder espaço, etc. e por isso não assinou. Salvo raras e valorosas exceções, são as mesmas pessoas que, caso Lula tivesse assinado, estariam o criticando por querer “hegemonizar” o movimento, não quer ceder espaço, etc. Ou seja, não importa o que o Lula fizesse, o conteúdo da crítica seria praticamente o mesmo. O erro maior, neste caso, nos parece ser mais da forma que Lula expressou sua crítica do que propriamente pelo conteúdo.

A defesa da democracia é uma bandeira necessária e que não deverá ter seu apelo reduzido por sectarismos de qualquer natureza, da mesma forma, a resistência ao fascismo exige alianças amplas e convergências na ação. Contudo, a superação da crise brasileira precisará avançar para medidas concretas. Neste sentido, é necessário que a esquerda consiga ampliar a adesão a consigna pelo fim deste governo e apontar para a urgência desta alternativa. Assim, qualquer manifesto que se proponha a alterar o dramático cenário brasileiro, só terá um conteúdo transformador efetivo se enfrentar aquele que é hoje o centro dos problemas: o governo Bolsonaro.

Um manifesto poderia derrubar um governo impopular? Por si só, seguramente não. A presença de “povo na rua” é um ingrediente indispensável para provocar qualquer mudança deste tipo. Ainda que a insatisfação com o governo seja crescente e hoje amplamente majoritária, como efeito direto da pandemia, os protestos de oposição eram raros ou inexistentes. Este elemento começou nos últimos dias a mudar, provocado pelo agravamento da conjuntura brasileira, mas ganhando um importante estímulo com a onda global de protestos que se iniciaram nos EUA contra o racismo. Os protestos oposicionistas voltaram as ruas, a defesa da democracia, a luta contra o fascismo e o racismo, mobilizaram grupos variados, tendo destaque torcidas de futebol, grupos de juventude e outros setores a irem as ruas, rompendo provisoriamente com a narrativa do monopólio sobre as ruas que os atos bolsonaristas buscavam impor.

Mesmo com as restrições impostas pela pandemia e com a violenta repressão policial que acompanharam os primeiros protestos de maior densidade, tudo indica que os protestos não arrefecerão, pelo contrário. Contudo, ainda que as mobilizações populares sejam um dos repertórios “clássicos” da esquerda, até mesmo este expediente é objeto de dúvidas e receios na atual encruzilhada da esquerda brasileira. Para além das restrições médicas a aglomerações de rua, um outro elemento tem sido apontado pelos críticos aos protestos: sua eventual radicalização, com possíveis confrontos com grupos fascistas ou mesmo com o uso de provocadores infiltrados pelo próprio governo, poderiam levar a uma escalada de violência que seria o cenário ideal para Bolsonaro promover um fechamento do regime. Estas suposições ganham força quando o próprio presidente fala abertamente nesta alternativa, como forma de desestimular os protestos contra seu governo.

Ainda que seja uma preocupação pertinente, cabe aqui uma pergunta provocadora: a ausência de protestos de rua evitará a radicalização violenta do bolsonarismo ou a ameaça de golpe? Todos os indícios indicam que não, pelo contrário. Um exemplo histórico em nosso país de como esta opção pelo não-confronto pode ser desastrosa foi no golpe de 1964. Naquela ocasião, o presidente João Goulart contava com um significativo apoio popular e dentro das Forças Armadas para resistir ao golpe e tentar evitar a implantação de uma ditadura. Jango, contudo, afirmando querer evitar derramamento de sangue, optou pela não resistência e seria deposto quase passivamente. Contudo, mesmo com este gesto, o banho de sangue aconteceu igual, mas com a diferença que as vítimas tombaram apenas de um lado. O Brasil de 2020 não é o mesmo de 1964 – ainda que muitos bolsonaristas pensem o oposto –, mas este exemplo nos deve ajudar a refletir que não será evitando os confrontos que eles deixarão de ocorrer.

Ainda que manifestos e frentes políticas sejam importantes para sedimentar opinião crítica na sociedade; nesta conjuntura complexa, não cabe a esquerda “temer” as ruas, pelo contrário. Os protestos serão o elemento-chave para salvar o que nos resta de democracia. Mas, em um quadro de pandemia, repressão e uma boa dose de dispersão política na esquerda, o grande desafio será evitar voluntarismos e dar a consistência política necessária para que estes protestos não sejam “sequestrados” pela direita e ganhem a dimensão social necessária para precipitar a queda do governo Bolsonaro. Não é um desafio pequeno e o momento exige que a esquerda encare de frente, com a ousadia necessária, do contrário, poderá não ter outra chance tão cedo.

Erick Kayser é Historiador. 

Redação

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