Marco Civil da Internet se consolidou nos tribunais em 2016, por Omar Kaminski

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Por Omar Kaminski

No Conjur

Neste ano um tanto quanto atípico e conturbado, acompanhamos a consolidação da Lei 12.965/2014, também chamada de “Constituição da Internet” no ordenamento jurídico pátrio. Não apenas isto, verificamos sua crescente influência sobre iniciativas de outros países, sendo considerado um instrumento legislativo inovador para reconhecer direitos digitais e citado como paradigma em termos de engenharia legislativa participativa. Em vista disto, optamos em desenvolver esta retrospectiva estritamente sobre o tema Marco Civil da Internet (MCI).

Uma das principais novidades do ano foi o Decreto 8.771/2016, de 11 de maio e com vacatio legis de 30 dias, portanto com vigência a partir de 10 de junho, que regulamentou o MCI “para tratar das hipóteses admitidas de discriminação de pacotes de dados na internet e de degradação de tráfego, indicar procedimentos para guarda e proteção de dados por provedores de conexão e de aplicações, apontar medidas de transparência na requisição de dados cadastrais pela administração pública e estabelecer parâmetros para fiscalização e apuração de infrações”. Porém, o Decreto ainda tem sido muito pouco observado e aplicado pela jurisprudência, com não muito mais que algumas dezenas de citações até o presente.

Gigantes no polo passivo
Google e Facebook somados continuam os principais “fregueses” da Lei, com mais de 90% das ocorrências no polo passivo, sendo que grande parte diz respeito a pedidos de remoção de conteúdos supostamente ilícitos da rede social ou de desindexação de resultados do motor de buscas.

Neutralidade em xeque
As linhas mestras do MCI são a defesa da liberdade de expressão, da privacidade e da neutralidade de rede, esta como um novel princípio ainda não suficientemente compreendido, mas já bastante ameaçado pelo chamado zero rating (acesso “gratuito” a determinados serviços) das operadoras de telefonia móvel, especialmente após o esgotamento das franquias ou na forma de promoções.

A ameaça mais recente se dá pelos representantes republicanos na Comissão Federal de Comunicações (FCC) no novo governo norte-americano de Donald Trump, não muito simpáticos a esse princípio consolidado sob as bênçãos do democrata Barack Obama, fazendo acender a luz amarela para os simpatizantes e defensores.

Alterações à vista?
Somam-se até o momento 42 projetos de lei (35 na Câmara e 7 no Senado) na busca por modificações na lei do Marco Civil, dos quais 31 (26 na Câmara e 5 no Senado) em 2016.

Boa parte visa regular ou mesmo proibir iniciativas que se traduzam na limitação de franquias de dados na telefonia móvel ou mesmo na banda larga fixa. Ou seja, busca-se manter o acesso ilimitado como modelo de negócios ao menos na versão desktop, e proibir a redução de velocidade ao término da franquia nos smartphones, tablets e quiçá nos smart watches, ou relógios de pulso conectados.

A Anatel acabou por convocar consulta pública sobre a franquia na banda larga fixa em 14 de novembro, para entender melhor a opinião da sociedade e ajudar na tomada de uma decisão final sobre o assunto. Até sua conclusão as franquias seguem suspensas no país.

Além disso, o legislativo federal vem demonstrando sua preocupação com as medidas coercitivas adotadas para o cumprimento de determinações judiciais, por meio de decisões drásticas que suspendam ou mesmo interrompam serviços ou aplicativos. Um dos projetos prevê que tais medidas só se verifiquem após decisão colegiada.

Um dos projetos de lei mais preocupantes sob o ponto de vista da liberdade de expressão é o PL 1.589/2015, apensado ao PL 215/2015, que quer tornar mais rigorosa a punição dos crimes contra a honra “cometidos mediantes disponibilização de conteúdo na internet ou que ensejarem a prática de atos que causem a morte da vítima”. Teme-se que acabe sendo usado especialmente para a prática de censura, mas não parece guardar a razoabilidade necessária para ser aprovado.

Jurisprudência
Na disputa entre a liberdade de expressão e o direito à honra, este tem prevalecido com alguma vantagem. Boa parte das medidas cautelares ou antecipatórias tem conseguido o intento, que é bloquear, limitar ou remover conteúdos supostamente ofensivos.

Para isto, o artigo mais utilizado é o 19 e seu § 1º, que exigem “ordem judicial específica” em detrimento à simples notificação extrajudicial (notice and take down) para tornar indisponível os conteúdos apontados como infringentes, bem como a “indicação clara e específica” que permita a “localização inequívoca” do material sub judice.

A “indicação clara e específica” tem sido considerada pela jurisprudência majoritária como sendo a URL (de Universal Resource Locator), algo não muito fácil de obter em determinados casos, como em celulares, o que faz com que tal necessidade tenha sido relativizada, desde que realizada a individualização precisa do conteúdo por outros meios descritivos ou métodos. No caso de vídeos e fotos, a data de publicação, nome da página ou site, e outras informações suficientes para sua correta identificação.

Em algumas decisões isoladas têm-se que o ônus da localização do conteúdo específico caberia simplesmente ao provedor de aplicações por dominar a tecnologia empregada. A jurisprudência, portanto, se divide, mas tem prevalecido a necessidade de indicação da URL, conforme já decidiu o STJ em mais de uma oportunidade: ”em se tratando de provedor de conteúdo, o cumprimento do dever de remoção de conteúdo considerado ofensivo fica condicionado à indicação pelo ofendido da URL da página em que estiver inserido”. Só não deverá ser indicada, portanto, se não houver como obtê-la.

Não surpreende nem um pouco a crescente utilização destes dispositivos legais por nossos representantes populares, leia-se políticos, que cada vez mais buscam remover notícias ou comentários considerados por eles como desabonadores. Nem sempre com sucesso (ainda bem!), tendo em vista o reconhecimento do interesse público envolvido e a própria liberdade de expressão, se exercida com bom senso.

Outra questão que foi bastante debatida durante o ano, especialmente na jurisdição paulistana (com raríssimas exceções), é quanto à obrigação de fornecimento de determinados dados específicos que permitam a identificação do usuário. Entre estes, conforme advogam alguns, a chamada “porta lógica de origem”, que não encontra previsão ao menos literal no artigo 5º, VIII ou no artigo 15 mas, defendem, em “outras informações” previstas no § 1º do artigo 10.

A jurisprudência mais uma vez se divide, com clara prevalência na desnecessidade de armazenamento de tais portas lógicas, “gambiarras” do datado e lotado IPv4 (e em franca transição para o IPv6, ainda que demorada e não obrigatória, exceto na Intranet da Administração Pública Federal), sendo admitido o armazenamento, quando muito, apenas aos provedores de conexão e não aos de aplicações.

Com precedentes da Quinta e Sexta Turma do STJ, o entendimento da ilicitude da devassa de dados e de conversas de WhatsApp em celulares apreendidos, sem que tenha havido prévia autorização judicial, têm tomado forma no juízo criminal singular em sede de Habeas Corpus. O MCI assegura o direito à “inviolabilidade e sigilo do fluxo de suas comunicações pela internet, salvo por ordem judicial, na forma da lei” (artigo 7°, II), e, especialmente, a “inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas armazenadas, salvo por ordem judicial” (artigo 7º, III). Por isso, sem que haja prévia ordem judicial, a prova obtida está sendo considerada como ilícita (artigo 157 do CPP), assim como também as suas derivações (§ 1º).

E discussões envolvendo a legalidade do exercício de transporte com base no aplicativo chamado Uber também ganharam os Tribunais, sendo frequentemente citado o artigo 2º, V do MCI, que defende como fundamentos da disciplina do uso da Internet no Brasil “a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor”.

Situações anômalas
Temos notado também algumas questões anômalas, como a aplicação do Marco Civil a fatos pretéritos à sua vigência, ferindo o princípio da legalidade (artigo 5º, II da CF); e a determinação de segredo de justiça em situações não totalmente amparadas legalmente, ou quando amparadas, verificando-se a publicação de despachos e decisões na íntegra, inclusive e especialmente citando o nome completo das partes em seu corpo, nos Diários da Justiça – e com isso indexadas nos buscadores, trazendo óbvios prejuízos às partes e a necessidade de se buscar amparo judicial motivado por ato displicente do próprio judiciário (!), que pelo visto continua pensando analogicamente em muitos casos.

E já que adentramos nesta seara, há sites de Tribunais onde a obtenção de jurisprudência, ferramenta basilar do operador do Direito, é especialmente dificultosa e nada intuitiva, acumulando dois ou três sistemas diferentes e nem sempre plenamente funcionais.

Urge a necessidade de algum grau de padronização, prevista inclusive na Lei nº 11.419/06, de informatização do processo judicial, que acaba de completar dez anos, mas que continua trazendo mais dúvidas, problemas e dificuldades do que soluções, especialmente do ponto de vista tecnológico e da segurança da informação.

Audiência Pública no STF
Tendo em vista a decisão (e não foi a única, nem primeira), de suspensão judicial do aplicativo WhatsApp pelo juízo da longínqua comarca de Lagarto, no Sergipe, no início de maio e por 72 horas (logo em seguida cassada pelo TJSE em sede de Mandado de Segurança), gerando reações coléricas por parte dos usuários, o STF houve por bem em expedir convocação conjunta para a realização de audiência pública simultânea com especialistas e interessados, muito provavelmente em algum momento de 2017.

A convocação conjunta é o resultado (até então) do ajuizamento de Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) por partido político, além da propositura de Ação Direta de Inconstitucionalidade dos artigos 10, § 2º, e 12, III e IV do MCI, também por partido político, objetivando “ver declarada a inconstitucionalidade da penalidade de suspensão temporária e de proibição de exercício das atividades, decorrente de descumprimento de ordem judicial”. Lembrando que o WhatsApp vem sendo utilizado inclusive para a realização de acordos na esfera trabalhista.

Prova de fogo
A audiência pública no STF será, muito provavelmente, a verdadeira prova de fogo do Marco Civil da Internet em seus dois anos e meio de vigência. Fora isso, e sob o ponto de vista genérico e popular, uma das principais dificuldades práticas tem sido conseguir sobrepujar a noção popular errônea de que o MCI se revelou uma lei concebida para viabilizar a prática da censura ou com pendões ditatoriais. Ao nosso ver, embora não seja uma lei perfeita, pelo contrário.

Mas a desinformação se mostrou bastante eficaz neste aspecto, especialmente por se tratar de lei oriunda de um Poder Executivo não mais em exercício e bastante desacreditado, após sucessivas manifestações públicas convocadas por seus detratores.

Observando o Marco Civil
Com vistas a tudo isto foi criado o Observatório do Marco Civil da Internet, que completa dois anos de funcionamento no final de janeiro de 2017 e que reúne até o momento 127 casos que ganharam o Judiciário, criteriosamente selecionados entre despachos, sentenças e acórdãos dos mais diversos Tribunais pátrios, dos quais 55 já se encontram comentados por experts convidados.

Além da jurisprudência selecionada, notícias oficiais, vídeos, projetos de lei e uma linha do tempo dos principais acontecimentos que marcaram nossa “Ciberconstituição” desde sua concepção.

Omar Kaminski é advogado e consultor, gestor do Observatório do Marco Civil da Internet, membro especialista da Câmara de Segurança e Direitos do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) e diretor de Internet da Comissão de Assuntos Culturais e Propriedade Intelectual da OAB/PR.

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