Carolina Maria de Jesus deu voz ao sentimento do absurdo, por Arnaldo Cardoso

A partir da narração de seu dia-a-dia, Carolina de Jesus traçou um painel da vida dos favelados e de sua luta pela sobrevivência, dando voz aos miseráveis que habitam as favelas e vãos de pontes

Carolina Maria de Jesus deu voz ao sentimento do absurdo

por Arnaldo Cardoso

O uso da literatura como instrumento de expressão do sentimento do absurdo e meio para a libertação pode ser descrito na vida e obra de um número incontável de homens e mulheres como é o caso da escritora Carolina Maria de Jesus e cujo momento é particularmente oportuno para ser lembrada uma vez que em 2020 completou-se 60 anos da publicação de seu livro Quarto de despejo, o mais conhecido do conjunto de sua obra, e também pelo fato de que estamos vivendo o agravamento de uma crise sistêmica global na qual mulheres tem se levantado, derrubado barreiras e assumido protagonismo nas mais diferentes frentes.

Carolina Maria de Jesus nasceu em 1915 em Sacramento no estado de Minas Gerais, emigrou para São Paulo onde trabalhou como empregada doméstica e catadora de papel e outros materiais reaproveitáveis. Na capital paulista viveu na favela do Canindé, na Marginal do Tietê, onde depois de algumas tentativas sem sucesso de divulgação de seu trabalho como escritora, foi descoberta pelo repórter Audálio Dantas que trabalhava numa matéria sobre favelas. A matéria foi publicada em O cruzeiro de 10 de junho de 1959.

O mesmo repórter, ao saber dos diários que Carolina escrevia se comprometeu a organizá-los e conseguir que fossem publicados. O que ocorreu em 1960.

Quarto de despejo reúne anotações de Carolina, entre os anos de 1955 e 1959. Desde sua publicação já foram vendidos mais de 100 mil exemplares, e traduzido para mais de dez idiomas.

A partir da narração de seu dia-a-dia, Carolina de Jesus traçou um painel da vida dos favelados e de sua luta pela sobrevivência, dando voz aos miseráveis que habitam as favelas e vãos de pontes da capital do mais rico estado do Brasil, bem como de outras cidades espalhadas pelo país.

Carolina Maria de Jesus, que só frequentou dois anos do ensino primário, sempre expressou sua gratidão por uma professora que a estimulou a ler e escrever.

Em seus diários, tornados livro, encontram-se passagens como as que seguem:

20 de julho de 1955 – Quando fico nervosa não gosto de discutir. Prefiro escrever. Todos os dias eu escrevo. Sento no quintal e escrevo.

21 de julho de 1955 – Quando cheguei em casa era 22:30. Liguei o rádio. Tomei banho. Esquentei comida. Li um pouco. Não sei dormir sem ler. Gosto de manusear um livro. O livro é a melhor invenção do homem.

8 de maio de 1958 – É preciso conhecer a fome para saber descrevê-la.

10 de maio de 1958 – O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora.

Quem passa fome aprende a pensar no próximo e nas crianças.

13 de maio de 1958 – Fui pedir um pouco de banha a Dona Alice. Ela deu-me a banha e arroz. Era 9 horas da noite quando comemos.

E assim no dia 13 de maio de 1958 (Dia comemorativo da Abolição) eu lutava contra a escravatura atual = a fome!

31 de dezembro de 1958 – […] eu passei a tarde escrevendo. Os meus filhos estavam jogando bola perto dos barracões.

A favela está agitada. Os favelados demonstram júbilo porque findaram um ano de vida.

8 de junho de 1959 – Quando cheguei e abri a porta, vi um bilhete. Conheci a letra do repórter. […] O bilhete dizia que a reportagem vai sair no dia 10, no Cruzeiro. Que o livro vai ser editado. Fiquei emocionada.

Carolina morreu em 14 de agosto de 1977, em um pequeno sítio na periferia de São Paulo. Sua filha caçula Vera Eunice de Jesus, que aparece bastante nos diários, hoje é professora da rede pública de ensino em São Paulo e responsável pelo acervo da escritora depositado na Biblioteca Nacional.

Em uma live organizada pela Somos Educação e Sabor Literário, realizada no último 16 de setembro importantes aspectos do conjunto da obra de Carolina Maria de Jesus foram debatidos por Vera Eunice de Jesus, filha da autora; por Conceição Evaristo, doutora em literatura comparada, estudiosa da afro brasilidade, contista e poeta. Ganhadora do Prêmio Jabuti de 2015, com o livro Olhos D’água; e por Fernanda Miranda, doutora em Letras pela USP, estudiosa da obra de Carolina de Jesus. Sua tese está publicada pela editora Malê com o título “Silêncios prescritos: estudos de romances de autoras negras brasileiras (1859-2006)”.

Vera Eunice, contou na live como é para ela ler Quarto de despejo, uma vez que nele se encontram relatos de sofrimento de sua mãe e irmãos, quando ela era ainda muito criança. Vera reafirmou seu desejo de ver a vida e obra de sua mãe plenamente reconhecidas.

A intelectual e contista Conceição Evaristo fez importantes considerações sobre a contribuição e legado de Carolina de Jesus para a literatura brasileira, e particularmente a influência que teve sobre a sua própria formação como mulher e escritora negra.

“Nós líamos Carolina de Jesus e era como se a gente estivesse lendo a nossa vida. Nós éramos personagens, nós éramos a Carolina Maria de Jesus”.

E Conceição continua:

Carolina cria uma tradição na literatura brasileira, a partir da apropriação da leitura pelas classes populares, inaugurando um novo lugar na literatura brasileira. […] Outras mulheres também oriundas de classes populares passaram a escrever sob uma influência de Carolina, se não estética, de conteúdo e atitude. Só por isso Carolina de Jesus já merece um lugar próprio na literatura brasileira”.

Carolina busca a leitura e a escrita como direito.

O ato de escrever contém outros atos reivindicativos, de reivindicação à vida.

Analisando em perspectiva a irrupção do cidadão comum, do pobre, na literatura brasileira, Conceição Evaristo pontua que “Diferente de Aluísio Azevedo em O cortiço, obra do final do século 19, Carolina inaugura uma escrita de dentro, como sugere o termo escrevivência.

Embora escrevendo no mesmo tempo de Jorge Amado, Clarice Lispector e Nélida Piñon, Carolina escreve de um lugar de desvantagem, de mulher negra, favelada.

É admirável a luta de Carolina para se apropriar da escrita que era predominantemente um recurso de pertença de homens brancos.

Já a pesquisadora Fernanda Miranda, faz menção às próprias dificuldades que encontrou em sua trajetória de formação acadêmica, como mulher negra, propondo problemas de pesquisa não convencionais em uma faculdade conservadora e canônica.

Na live Fernanda salienta que “Hoje a periferia busca sua própria história. Surgem novas narrativas”.

“Há uma ambiência de recepção diferente daquela dos anos 60, que era basicamente de classe média. Obras como Capão Pecado (2000) do escritor Férrez ou Cidade de Deus (2002) de Paulo Lins ampliaram muito seu público e se comunicam também com a própria periferia”.

Temas ainda hoje presentes e urgentes, como a violência doméstica, e de gênero, já eram expostos por Carolina de Jesus na década de 50. Hoje a violência da favela denuncia sobretudo o fracasso do Estado.

Do legado de luta por dignidade e liberdade deixado por Carolina Maria de Jesus, fica para todos nós o exemplo de luta e resiliência e o chamamento para a transformação social diante de um mundo em crise aguda, onde a miséria, a fome, o racismo, a violência de gênero precisam ser vencidos.

A história pode mudar quando o desejo por mudança encontra os meios, e os atores sociais lhe dão forma.

O tempo da mudança pode ser agora.

Arnaldo Cardoso, cientista político

Redação

1 Comentário

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  1. História triste de vida, infelizmente alguns já nascem e não tem a mesma sorte de outros, mas servem como experiência e alentos para outros saberem que a vida pode mudar se corrermos atrás dos nossos objetivos e nos esforçarmos para isso. Apesar de tudo isso que ela passou na vida nos deixou um exemplo e um despertar que em tudo devemos agradecer a Deus, que apesar das dificuldades da vida, Deus está olhando e cuidando de nós.
    Ela foi um exemplo de mulher para a sociedade e também para sua família.

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