Mestrado, doutorado e pós-verdade, por Janice Theodoro da Silva

“Uma cultura de bacharéis é aquela onde o símbolo vale mais do que a coisa representada”

Imagem: Jornal da USP/Luana Franzão

do Jornal da USP

Mestrado, doutorado e pós-verdade

por Janice Theodoro da Silva

O que é um mestrado? O que é um doutorado? Qual a diferença entre um mestrado e um doutorado?

Mestrado é uma dissertação desenvolvida por um estudante de pós-graduação sobre um tema ou pesquisa específico. A explanação se caracteriza por conhecimento da bibliografia com destaque para a produção atual. O mestrado exige do estudante capacidade de leitura e síntese dos principais autores com quem ele pretende trabalhar, demonstrando conhecimento das hipóteses defendidas pelos autores, as polêmicas geradas, os principais argumentos, métodos utilizados, bem como suas conclusões. Em suma, trata-se de uma dissertação sobre produção e discussão de diversos autores especialmente no que se refere tanto aos métodos como aos conteúdos analisados. Alguns mestrados sugerem hipóteses.

No Brasil, os estudantes em geral têm muita dificuldade em reproduzir com exatidão o pensamento de um autor sem misturá-lo com o que eles pensam do tema em questão. Esse exercício é importante na formação para que eles possam futuramente elaborar, no doutorado, uma hipótese inédita.

O doutorado exige uma hipótese bem delimitada, sua demonstração por meio de argumentos sólidos e provas capazes de justificar a hipótese levantada. A conclusão deve ser clara, enunciando, com relação à bibliografia publicada, os avanços e contribuições sobre um determinado tema. O método empregado na análise deve ser nomeado com clareza, permitindo uma avaliação adequada da hipótese e argumentos pela banca de especialistas.

A tese de doutorado exige proposição, hipótese inédita. Vai muito além de uma dissertação. É possível, no Brasil, ir para a doutorado direto, caso o aluno disponha de competência e maturidade para isso. Nos diferentes países do mundo, a carreira acadêmica apresenta especificidades e mesmo no Brasil, na Universidade de São Paulo, existem peculiaridades. O concurso e o título de livre-docente, na USP, são um exemplo.

O Brasil sempre foi um país de bacharéis, de doutores, um país onde as universidades surgiram muito tarde e o analfabetismo foi característica de grande parte da nossa população. O que isso quer dizer? Quer dizer que o título tem valor em si, independentemente do saber, do conhecimento ali contido. O título representa mais uma dignidade, da qual o indivíduo se apropria, como um título de nobreza, do que um saber específico nele contido. Hoje existem muitos doutores, às vezes com pouca qualificação na área de sua especialidade, interferindo no peso/significado da palavra, fazendo com que ela perca força e importância. Ter o título de doutor, antes de a pós-graduação ser institucionalizada em todas as universidades brasileiras, era marca que diferenciava socialmente os indivíduos.

Os títulos obtidos mediante concursos nas universidades brasileiras avaliam habilidades específicas. Para julgar a competência de uma pessoa para um cargo, é necessário considerar suas habilidades específicas em uma determinada área de conhecimento, sua capacidade de liderança, sua relação com os colegas no dia a dia, seus valores, suas experiências de vida e, especialmente, sua ética tanto do ponto de vista pessoal como profissional. Um título apenas não qualifica ou desqualifica uma pessoa para um cargo. Depende do cargo e depende das qualidades da pessoa. O currículo é apenas um indício, tênue, de uma trajetória profissional. Um sujeito ético, capaz para a realização de uma determinada tarefa, não é fruto apenas de seus sucessos escolares e profissionais.

Após a caracterização do que é uma dissertação de mestrado e uma tese de doutorado e compreendendo o que justifica a escolha adequada de uma pessoa para uma função, convém refletir sobre a palavra “mentira” no contexto da escolha de uma pessoa para uma determinada função e as possíveis mentiras, escolhas e omissões que um currículo pode carregar.

O primeiro esforço para se pensar os limites entre verdade e mentira envolve autoconsciência. Cuidado com os papéis de dono da verdade e juiz da humanidade. O mundo da pós-verdade está repleto de meias-verdades, omissões, valorizações e críticas excessivas. A comunicação digital estabelece relações entre pessoas e coisas por meio de estratégias de manipulação com base na análise de dados (logaritmos) disponíveis na rede. Por meio de potentes bancos de informação, é possível conhecer os nossos desejos mais profundos com detalhes, superando o conhecimento que um pai tem de seu filho ou um marido de sua mulher, um amigo de outro bem próximo. Como consumidores, somos manipulados e não raro enganados diariamente. Um bom vendedor é especialista em valorizar em excesso as qualidades de um produto e em silenciar os seus defeitos para atender aos seus interesses. A vida cotidiana é um festival de meias-verdades e, não raro, pequenas e grandes mentiras. O melhor iogurte, o hotel mais sensacional do mundo ou o carro com desempenho espantoso são hipérboles que interferem na percepção humana, dando dramaticidade, retirando a possibilidade de um outro iogurte, hotel ou carro serem melhores, mais agradáveis ou mais adequados ao que de fato se deseja, sem a alavancagem em direção à compra e consumo excessivo. Observe, antes de julgar, quanto e como o nosso cotidiano pós-moderno é marcado por inverdades.

Convém lembrar que a verdade plena, nós não alcançamos. É possível ver apenas partes e com o uso da razão chegar a entendimentos plausíveis, circunstanciados, comprovados temporariamente. A dúvida é a alma da verdade, anima a razão, faz ver os movimentos de tudo o que é nomeado como verdade e quase sempre são meias-verdades, meias-mentiras, mentirinhas e mentironas.

Do ponto de vista da vida psíquica dos seres humanos, convém lembrar um detalhe importante: Lacan considera ser a mentira uma forma pela qual o ser humano enuncia um desejo, algo não realizado, porém muito cobiçado. Mais uma vez considero adequado julgar primeiro a si mesmo e depois os outros.

Mentir em um currículo, por exemplo, é uma falta, sim, mas é prudente ver além do erro cometido, compreender a sua origem e, principalmente, suas roupagens. Uma cultura de bacharéis é aquela onde o símbolo vale mais do que a coisa representada. Vale mais ser doutor do que homem ético. A meia-verdade e o erro são julgados, não raro, de forma diferente dependendo do lugar social, do poder e da cor da pele. Em uma cultura de bacharéis o título está desvinculado do conhecimento específico. Chamar alguém de doutor pode representar, em muitas partes do Brasil, respeito, obediência ou medo, fruto de profundas e históricas desigualdades sociais. Falar línguas nobilita, língua também é lugar de poder e de discriminação.

É fácil compreender o lugar onde o conhecimento de fato deve ser respeitado: um médico muito bom não sabe construir uma ponte, mas sabe operar, um advogado não sabe operar um apêndice, mas entende das normas que regem a sociedade, um médico ortopedista não vai fazer uma cirurgia de cérebro, mas entende de ossos, músculos e ligamentos. O saber de cada um de nós tem validade num lugar específico e muitas atividades não dependem dos títulos de mestre ou doutor. Ter um título de mestre ou doutor não é passaporte para o desenvolvimento de qualquer atividade. Cada função, papel, atividade desenvolvida em uma determinada sociedade depende de certas habilidades e competências. Se me soltarem no mato eu vou morrer rapidamente, já aqueles que conhecem bem as florestas irão encontrar nela tudo o que é necessário para a sua sobrevivência. Eu, Janice, não tenho nem competências nem habilidades para viver na floresta, embora tenha títulos de mestre, doutor, livre-docente e titular.

Portanto, antes de jogar a primeira pedra, avaliem, prezados leitores, o que é capital simbólico, capital científico e, especialmente, ético. Cuidem-se diante do que produz prestígio e, especialmente, lembrem-se, sempre, da importância em desenvolver a habilidade mãe voltada para o reconhecimento do erro ou do engano. Esse é o primeiro passo, o mais importante, para o desenvolvimento da ciência, do ser humano e para a preservação do planeta.

Janice Theodoro da Silva é professora titular do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

Redação

4 Comentários

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  1. Ao defender minha tese na USP-Universidade de São Paulo, quase fui à lona, aprovado por dois, reprovado por um. Tempos depois descobri que meu orientador era “inimigo cordial” de um dos integrantes da banca examinadora e que a vingancinha perpetuada contra minha defesa foi fruto de desavenças entre eles.
    Todo o esforço milimetricamente realizado quase foi para cucuia. E eu com isso?
    Eu era o pato da história, digo, futrica acadêmica.
    Então, entendo bem o que autor quer dizer com “boa relação com os colegas”.
    Que lástima!

  2. Na Física existe historinha apócrifa sobre um indivíduo que se apresentou ao César Lattes como PhD. Justo ele que não tinha o título.

  3. Engraçado é a autora excluir completamente o que ocorre nos interstícios, nos esgotos da produção acadêmica.
    Tal como Michel Foucault, que pensava sobre os casos dos livros não publicados, é bastante conhecido e menos publicado sobre as relações entre orientandos e orientados em situações talvez menores ou marginais. Escolhas de orientandos e orientadores (a USP é o primor de, na iniciação científica, você indicar pro forma o seu orientador, uma vez que você já deve ter algum tipo de relação ou contato com ele; portanto, nem sempre é a pesquisa em si que prevalece).
    Como o professor respeitadíssimo da USP que tinha como orientanda a sua companheira. Se não tivesse ocorrido denúncia, o a situação continuaria sem problemas.
    Quantos orientandos reproduzem tiques, estereótipos de violência perpetrada contra eles mesmos por seus orientadores pelo fato de terem conseguido galgar à pesquisa? Ou seus “introjetos” contra os não acadêmicos? Tão importante quanto a pesquisa séria é a diversidade de relações de poder dentro das instituições universitárias e que moldam as subjetividades, que acabam se reproduzindo na sociedade.
    Quer dizer, é uma docente de dentro dando lições para quem está do lado de fora.
    As lições que ela dá dizem respeito de um mundo que ela emoldura muito mal e é concretamente pior que seu texto chapa-branca e falsamente crítico.
    Afinal, é verdade que um médico não pode dizer sobre como deve ser construída uma ponte, mas é possível que um médico possa dizer o impacto que a emissão dos gases dos veículos que passarão pela ponte causará numa população local.
    Por isto, o texto da professora esconde uma armadilha a mais.

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