Missão em Canudos – I, por Walnice Nogueira Galvão

Missão em Canudos – I, por Walnice Nogueira Galvão

Reuniu-se em Salvador o “Seminário 100 Anos Com Calasans”, promovido pela Universidade do Estado da Bahia (Uneb) em homenagem ao mestre maior da Guerra de Canudos.

A trajetória de José Calasans é singular. Em plena formação como folclorista, teve sua atenção chamada por uma reportagem realizada pelo jornalista Odorico Tavares, da revista O Cruzeiro, por ocasião da passagem do semicentenário da guerra, em 1947. A matéria, ilustrada por um fotógrafo desconhecido e iniciante, chamado Pierre Verger, contava a crônica do arraial e estampava entrevistas. Para lá seguiu o jovem Calasans nas pegadas do jornalista, na primeira de muitas expedições. Ainda tomaria depoimentos de testemunhas, fossem sobreviventes ou filhos de combatentes.

A tese universitária que se seguiria, com o título de O ciclo folclórico do Bom Jesus Conselheiro (1950), assinala o pivô da guinada, quando o folclorista se metamorfoseia em historiador da Guerra de Canudos, seguindo-se meio século de pesquisas e de produção escrita.

Antes de mais nada, Calasans empenhou-se em retirar a Guerra de Canudos daquilo que chamaria de “a gaiola de ouro” de Os sertões. Assinalava a importância desse livro, mas lamentava que se relegasse ao olvido tudo o mais. Alvo de suas investigações foram os aspectos menos explorados, sobre os quais produziria, à sua maneira idiossincrática, fascículos sucessivos, boa parte providencialmente reunida em livro mais tarde. Reconstituiu o funcionamento interno do arraial, tanto na paz quanto na guerra. Trouxe à atenção a existência de escolas e professoras em Canudos, havendo inclusive uma Rua da Professora.  Conseguiu juntar fragmentos para dar a conhecer o estatuto das mulheres na coletividade. Transformou em pessoas de carne-e-osso figurantes até então de papel, chegando a montar um Catálogo de Herois com as “Quase biografias de jagunços”.

Seu ouvido devotado à escuta faria com que anotasse certas frases,  tornando vívido e característico o interlocutor. Pedrão, um dos chefes, cuja valentia todos que escreveram a respeito exaltaram, foi várias vezes entrevistado por Calasans, cuja admiração conquistou. Entrevado e inválido, não perdeu a prosápia, dizendo: “Faz pena um homem como eu morrer sentado…” E, corroborando os  documentos que mostravam no Conselheiro um católico ortodoxo, isento de usurpação das prerrogativas da hierarquia eclesiástica, registrou sua exclamação dirigida a quem se ajoelhava ante ele: “Levante-se, que Deus é outra pessoa!”. O saber acumulado o levaria igualmente a prestar atenção na frequência com que, na certidão de batismo dos sertanejos, aparecia o nome do Conselheiro como padrinho e de Nossa Senhora como madrinha: a rede de compadrio era também uma rede de poder. Por tudo isso é que se pode dizer que os trabalhos do mestre são, ao pé da letra, reveladores.

Basta uma vista d´olhos pelos títulos de seus fascículos para verificar como são originais suas contribuições, que contemplam as igrejas e cemitérios edificados ou reparados pela grei do Conselheiro; os caminhos percorridos no sertão; os oragos escolhidos para os templos e capelas; as relações amigáveis com certos vigários e de confronto com outros; a aliança com ex-escravos e com índios; o passado remoto do líder e o desmentido de que tivesse sido um criminoso, etc., etc., etc. Assim, iniciaria um movimento renovador, consagrado a aspectos que tinham ficado obscuros.

Como todos os participantes unanimemente concordaram, mais do que merecida foi a celebração do centenário de nascimento do grande mestre.

Walnice Nogueira Galvão é professora emérita da USP.

Walnice Nogueira Galvão

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