MPs, decretos, convicções e responsabilidades, por Rafael Alves

Apenas 08 dias entre a caducidade da MP 914 e a edição da MP 979. O governo não deixará de tentar intervir nas Universidades e Institutos Federais.

Odisseu passa por Scylla e Charybdis.

MPs, decretos, convicções e responsabilidades, por Rafael Alves

Na véspera do Natal de 2019, em 24 de Dezembro, o governo publicou a Medida Provisória nº 914, alterando o processo de escolha dos dirigentes das universidades federais, dos institutos federais e do Colégio Pedro II.

A medida era explicitamente antidemocrática, estabelecendo lista tríplice onde a comunidade escolhia diretamente, acabando com eleições para diretores e a paridade de voto entre os segmentos das instituições.

Talvez ela não tenha sido suficientemente combatida por um motivo: oito universidades e nove institutos federais teriam troca de reitor prevista no período, mas todas essas instituições já haviam feito seus processos de consulta, o que segundo a própria MP e confirmação do MEC, as desobrigava das novas regras.

Assim, acordou-se com o Congresso que ele não votaria a matéria e a MP caducaria, o que ocorreu em 02 de junho de 2020. Muitos consideraram que bastaria aguardar o fim da vigência da MP 914 para seguir como se nada tivesse acontecido, já que não é possível publicação de nova Medida Provisória sobre o mesmo tema no ano vigente.

Mas é preciso ter em conta que, ao menos desde 2016, nada mais volta a ser como era antes. Nossa máxima tem sido de que “antigamente, as coisas eram piores, mas foram piorando”, como diria Paulo Mendes Campos, e este governo sempre poderá aprofundar o viés autoritário e o ataque às instituições.

Os Institutos Federais têm um processo de escolha de dirigentes ainda mais democrático que as Universidades Federais, já que nos Institutos não há formação de lista tríplice, sendo direta a escolha por parte da comunidade, e há paridade no voto de docentes, técnico-administrativos e discentes.

E este processo de escolha de dirigentes está previsto na própria lei de criação dos Institutos Federais, Lei no11892/2008!

Porém, o processo de escolha não está de todo previsto na lei, mas depende também de um decreto. O Decreto no6986/2009 regulamenta os artigos 11, 12 e 13 da Lei no 11.892. A previsão de que “o processo de consulta será finalizado com a escolha de um único candidato para cada cargo”, por exemplo, está no decreto, não na lei.

Assim, em tese o governo não poderia emitir outra Medida Provisória neste ano, mas não se poderia supor que tudo “voltaria como antes”, porque nada mais é como antes e, não sendo por um instrumento, o governo poderia utilizar outro. Emitir novo decreto permitiria, dentre muitas outras possibilidades para intervir no processo, o estabelecimento de lista tríplice, quíntupla, ou formada por qualquer número arbitrário de candidatos para que o presidente escolha.

Atentos a esta possiblidade, quatro Institutos Federais deflagraram, por meio dos respectivos Conselhos Superiores, seus processos eleitorais. O Conselho Superior do IFNMG deflagrou o processo no primeiro dia de caducidade da MP 914, em 02 de junho, o IFMA em 03 de junho, o IFRR em 04 de junho e o IFFar em 05 de junho.

A análise de que novamente o governo tentaria interferir no processo não estava equivocada. Houve os que chegaram a dizer que o ministro da Educação estaria enfraquecido, preocupado com processos pessoais e a repercussão do vídeo da reunião ministerial, inclusive com possibilidade de sua saída do governo. Mas, como nossa máxima é a de Paulo Mendes Campos, o governo foi ainda mais além em seu ataque à democracia e editou no dia 10 de junho nova medida provisória, no 979, autorizando o ministro da Educação a nomear reitores nas universidades e institutos federais durante a pandemia de covid-19, sem consulta à comunidade dessas instituições.

A nova medida era tão mais absurda que, de imediato, ao mesmo tempo que oito partidos de oposição acionavam o Supremo Tribunal Federal, o próprio Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados, declarava que a medida era inconstitucional, levando o presidente do Senado e do Congresso, Davi Alcolumbre, a devolver a MP ao Planalto por “violação aos princípios constitucionais da autonomia e da gestão democrática das universidades”.

Ora, voltou tudo ao normal?

Se essa pergunta aparecer novamente, não estou conseguindo me fazer entender. Estamos já há algum tempo em Estado de Exceção. Oxalá a devolução da MP 979 seja uma manifestação de que as instituições começaram a reagir contra os ataques à Constituição e à democracia, mas não resta dúvida de que outro golpe será dado e, no caso dos Institutos Federais, basta um novo decreto, que substitua o no 6986/2009, sendo que aí não haverá problema de reedição de Medida Provisória ou outra ilegalidade que permita recorrer contra a decisão do governo.

Claro, se vier novo ataque, ou melhor, quando o ataque vier, o responsável pelo mesmo é o governo, sendo dele o caráter avesso à Ciência, às liberdades democráticas e declaradamente antipático às instituições públicas de Ensino, Pesquisa e Extensão.

Mas temos a responsabilidade em fazer a análise de conjuntura e atuar para minimizar os impactos ou mesmo dificultar o assalto.

O fato do capitalismo ser a contradição em processo e Marx ter previsto seu colapso já nos Grundrisse (1857-58), não fez com que ficasse esperando ou, pior, se acomodasse por considerar que a culpa de suas mazelas seria do capitalista e não sua. Tanto Marx quanto os seguidores de suas ideias, ainda que por diferentes vias, lutaram diuturnamente para mitigar os efeitos do sistema capitalista e melhorar a condição do trabalhador, em paralelo ao combate mais amplo contra a irracionalidade do próprio sistema.

Aguardar a superação do capitalismo, ou concentrar-se apenas nela, sem, por exemplo, lutar pela redução de jornada, o que se faz dentro das regras do próprio sistema, condenaria gerações de trabalhadores que não verão este dia, o qual já leva mais de 200 anos para chegar.

No caso dos ataques às instituições, ainda que o ideal seja que a própria essência antidemocrática desse governo seja vencida, poucos meses da permanência de um interventor pode desconstruir políticas que levaram décadas para serem implementadas.

Por outro lado, parece inoportuno e complicado pensar em um processo eleitoral durante as mudanças provocadas pela pandemia do novo coronavírus e a necessidade de distanciamento social, sendo preferível que ele seja feito “quando tudo voltar ao normal”. Mais uma vez, agora em relação à pandemia, as coisas não vão “voltar ao normal”. Infelizmente, estamos aguardando o momento da “nova normalidade”. Já é consenso, ao menos no meio científico, que conviveremos com as medidas trazidas pelo novo coronavírus por bastante tempo.

Assim, cumprirá aos Conselhos Superiores das Instituições de Ensino definirem regras para esta nova normalidade, que garantam o processo democrático e a participação da comunidade.

Curiosamente, o argumento de que não é possível realizar o pleito em meio a medidas de isolamento foi o mesmo dado pelo governo para editar a MP 979 que impedia processos de consulta à comunidade.

Ora, parece que em alguns casos foi estabelecido um falso dilema, com potencial paralisante. Aguarda-se um melhor momento para deflagrar processos eleitorais e perde-se a oportunidade de realizar o processo ainda com as regras anteriores à MP 914, aproveitando que esta perdeu validade; ou aproveita-se a caducidade da MP 914 e realiza-se um processo que não garante a participação de toda comunidade?

Se considerarmos que o que aguardamos em relação à pandemia é uma “nova normalidade”, esse “melhor momento” pode não chegar tão cedo. De modo que as instituições terão de pensar seus processos de maneira diferente de anos anteriores.

Nesse sentido, não há nada que ateste, a priori, que as condições de participação de candidatos ou da comunidade seriam prejudicadas. Com efeito, sempre há a possibilidade de crítica por parte dos candidatos em relação a seus recursos para campanha, sejam relativos ao tempo ou mesmo financeiros, para deslocamento pelos campi. Em instituições multicampi, ainda que um debate aconteça em um campus, a única forma de chegar aos demais é por transmissão.

Além disso, supor que a participação na eleição seria menor caso a votação fosse realizada a distância e não com urnas físicas, carece de base, já que sendo o voto facultativo, parece muito mais simples ao votante fazê-lo sem deslocamento ao seu campus de lotação, exercício ou matrícula. Questionar o acesso do corpo discente é louvável, mas nas eleições tradicionais não parece haver esta preocupação sobre sua possibilidade de deslocamento ao campus no dia de votação, nem mesmo das centenas de estudantes que acompanham cursos em EaD e têm o mesmo direito ao voto que os demais. Além disso, respeitadas as regras de higiene e distanciamento social, bastaria que no dia da eleição houvesse computadores nos campus preparados para o uso específico para votação, atendendo os que por algum motivo não tivessem acesso.

A Lei no 12.965, de 23 de abril de 2014, conhecida como Marco Civil da Internet, disciplina o uso da rede mundial de computadores no País, tendo como fundamento o respeito à liberdade de expressão, mas também colocando como um dos seus princípios o exercício da cidadania em meios digitais (art. 2o, inciso II) e a finalidade social da rede (art. 2o, inciso VI).

No parecer no 00059/2020/PROC/PFIFNORTE DE MINAS/PGF/AGU, sobre a legalidade de adoção de consulta eletrônica/virtual à comunidade escolar, os Chefes das Procuradorias Federais junto ao IFRR, IFMA, IFSP, IFFar e IFNMG, concluíram pela não vedação legal para adoção do processo, destacando, entre outros pontos, que “o software ou sistema a ser adotado deverá ser capaz de garantir ao processo: a) acessibilidade, b) transparência, c) confidencialidade do voto, d) autenticidade, e) possibilidade de auditoria; f) integridade”.

Em resumo, claro que não se pode, em nome da democracia, tentando escapar de nova medida antidemocrática do governo, realizar um processo sem as garantias de participação. Mas também não se pode, em nome da democracia, ignorar que nova interferência virá, pois levou apenas 08 dias entre a caducidade da MP 914 e a edição da MP 979.

Se o que se deseja é que o processo eleitoral e a escolha dos dirigentes seja feita pela comunidade acadêmica de forma democrática, parece haver aí um falso dilema.  Pois teme-se que o governo interfira, ou teme-se que o planejamento do processo eleitoral comprometa a ampla participação, mas não há o que temer ou esperar, já que os mecanismos de participação e o código eleitoral são definidos pela própria instituição, por meio de seu Conselho Superior.

Ao deflagrar o processo eleitoral, este deverá acontecer em até 90 dias, não significa que eleições acontecerão na semana seguinte. Infelizmente, as medidas de distanciamento estão previstas para permanecer por meses, de modo que pensar um código eleitoral específico, bem como formas de participação não presenciais, parece ser necessário independentemente das interferências do governo.

Por fim, cumpre lembrar outro dos clássicos das Ciências Sociais. Hoje, 14 de junho, completam-se 100 anos da morte de Max Weber. E temos que o centenário de sua morte se dá em meio à pandemia de Covid-19, sendo que o alemão faleceu por uma pneumonia, após infectar-se com a gripe espanhola.

Como reflexão final, recorro à conferência de Weber sobre a política como profissão/vocação *. Os conselheiros, os gestores eleitos, os eventuais candidatos de uma instituição, apesar de não estarem de maneira direta em uma carreira política, estão atuando como políticos no âmbito institucional, na melhor acepção do termo, que nos tempos recentes ganhou erroneamente sentido pejorativo.

Segundo Weber, “pode-se dizer que três qualidades decidem preponderantemente em favor do político: paixão, sentimento de responsabilidade e acuidade visual”.

Porém, “paixão no sentido de objetividade: dedicação apaixonada a uma ‘coisa’”, não um “‘Romantismo’ que transcorre rumo ao vazio ‘daquele que tem interesse intelectual’ sem todo o sentimento material de responsabilidade” (grifos do autor). A qualidade psicológica decisiva do político é a acuidade visual, 

“capacidade de deixar as realidades atuarem sobre si com uma concentração e uma tranquilidade interiores, ou seja, carece-se da   distância em relação às coisas e aos homens. ‘Ausência de distância’ é, puramente enquanto tal, um dos pecados mortais de todos os políticos e uma daquelas qualidades cujo cultivo junto à nova geração a condena à        incapacidade política. Pois o problema é justamente: como é que podem      ser forçadas a se manterem reunidas na mesma alma uma ardente paixão e uma fria acuidade visual? A política é feita com a cabeça, não com outras partes do corpo ou da alma. E, contudo, a devoção a ela (…) só pode vir a nascer e ser degustada por paixão”.

Para Weber, o forte controle da alma diferencia o “político apaixonado” dos “meros diletantes políticos ‘excitados de maneira estéril’”, o que é possível pelo hábito da distância. O político “tem de superar em si um inimigo completamente trivial, demasiadamente humano: a vaidade completamente comum, a inimiga mortal de toda dedicação substancial e de toda distância, nesse caso, a distância em face de si mesmo” (grifo do autor).

“Em verdade, a política é feita claramente com a cabeça, mas com toda certeza também não apenas com a cabeça. Nesse ponto, os éticos da convicção têm inteira razão. Nunca podemos fazer prescrições, contudo, sobre se devemos agir como éticos da convicção ou como éticos da responsabilidade (…); se os políticos marcados por uma mentalidade específica alardearem de repente aos quatro ventos a frase: ‘o mundo é estúpido e vulgar, não eu; a responsabilidade pelas consequências não me concerne, mas concerne apenas aos outros, para os quais trabalho, e cuja estupidez ou vulgaridade busco eliminar’, então direi que (…) causa em mim a impressão de estar lidando aí a cada nove de dez casos com cabeças ocas, que não sentem realmente o que eles acolhem em si, mas se embriagam com sensações românticas.(…)

Por outro lado, é imensamente perturbador quando um homem maduro – sem levar em conta se ele é jovem ou velho em termos de idade – que sente realmente com toda a sua alma essa responsabilidade pelas consequências e age de acordo com a ética da responsabilidade, diz em um momento qualquer: ‘não há outra coisa a fazer, é aqui que me encontro’. (…) Nesse sentido, a ética da convicção e a ética da responsabilidade não apontam para uma oposição absoluta, mas para complementos (…).”

Assim, ética da convicção e ética da responsabilidade devem tentar se conjugar.

No caso dos processos de escolha de dirigentes das Instituições Federais de Educação, é preciso que aqueles que estão imbuídos da função de deflagrar processos e definir códigos eleitorais tenham a paixão da defesa da democracia e a responsabilidade para com a instituição, distanciando-se de si e de seu grupo, com a acuidade visualpara análise da conjuntura.

Espera-se que os diferentes grupos progressistas e democráticos possam debater suas ideias e divergir durante os 90 dias de duração do processo após a deflagração, não colocando suas divergências anteriormente a esta, sob o risco de não haver debate algum.

* WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações. São Paulo: Martin Claret, 2015.

Redação

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