Mucha e Art Nouveau (II), por Walnice Nogueira Galvão

Pensando bem, há até alguns seres que já nasceram Art Nouveau, e é o que explica sua frequência na arte da época: na fauna o pavão, na flora a orquídea.

Mucha e Art Nouveau (II)

por Walnice Nogueira Galvão

A Art Nouveau dedicou-se a associar arte e indústria. Incorporou os ofícios menores e as artes decorativas, incluindo vidraçaria, cerâmica, esmaltes, marcenaria, mobiliário, bijuteria, ourivesaria, vestuário, têxteis, serralheria e ferragens, bem como tudo o mais que possa adornar uma construção por dentro e por fora. Em compensação, privilegiou a natureza, consagrando-se a representá-la  minuciosamente, até obsessivamente.

Abundaram barras e guirlandas de motivos florais  (junquilhos, íris, nenúfares), bem como um bestiário específico. Típicos do movimento,  e escolhidos entre os mais menosprezados, ganharam destaque escaravelhos, rãs e sapos, escorpiões, lagartos e lagartixas, libélulas e mariposas, aranhas, cobras, morcegos, caracois. Pensando bem, há até alguns seres que já nasceram Art Nouveau, e é o que explica sua frequência na arte da época: na fauna o pavão, na flora a orquídea.

Vai predominar o amor pela assimetria, juntamente com o horror à linha reta e ao vazio. Na ornamentação luxuriante e fervilhante, pululam  excessos e exageros. Forçando a rigidez da madeira a vergar-se, a tendência surge até nos móveis – como aqueles pertencentes ao Orsay e ao Victoria and Albert Museum, vigorando a impressão de que um braço de cadeira ou perna de mesa vai-se esticando e entortando, escapando ao controle, tendendo ao tentáculo. Cores veladas em tons pastel, linhas fluidas, espirais e volutas, torvelinhos e piruetas. Uma dinâmica giratória,  feita de arabescos, com hegemonia da curva: tudo turbilhona e rodopia. Foi preciso a eclosão da Art Déco e do Modernismo para, saltando ao extremo oposto como reação, impor-se a tirania da linha reta e do despojamento.

A jóia da coroa é a Coleção Lalique da Fundação Gulbenkian, em Lisboa. O magnata do petróleo foi amigo de vida inteira e mecenas do artista, cujos experimentos financiava. A coleção resultante é magnífica, com os trabalhos mais ousados de Lalique. Sobretudo as jóias, que são de uma beleza espantosa: a beleza que só ele, inventor do vidro opalescente e irisado, soube tirar também de materiais menos nobres. Um laivo de perversidade e humor permeia tudo.

Um dos materiais menos nobres e mais modernos a receber tratamento privilegiado nas mãos dos artistas Art Nouveau foi o ferro. Surgiu primeiro nas  estações de trem quando eram novidade. Monumentais, têm sido reconvertidas em museus, como o Orsay em Paris e a Estação da Luz em São Paulo; ou em teatros de concerto  como a Júlio Prestes, que abriga a Sala São Paulo e a Estação Pinacoteca. Por toda parte, destinação similar coube às gigantescas Halles (mercados) de ferro.

O ferro adquiriu proeminência com a inauguração da Torre Eiffel, na Exposição Universal de 1889 em Paris. Erigida para ser desmontada após o encerramento, acabou por subsistir e lá está até hoje, símbolo icônico da cidade de Paris, campeã em altura na França e um dos mais visitados monumentos do mundo.

Em nosso caso, sabemos que o globetrotter D. Pedro II, quando passou por Nova Orleans em 1876, se encantou com os vapores de pequeno calado, ou de casco chato, que singravam o rio Mississipi. Tais barcos hoje se restringem ao turismo, perdido o papel relevante que então tinham para transporte de passageiros e de carga em toda aquela região.  O imperador importou vários para nossos rios. Lindas obras de arte em ferro e madeira rendilhados, os “gaiolas”, como logo foram apelidados, monopolizariam por longo tempo a navegação pelo São Francisco e pelo Amazonas.

Obras então modernas em ferro fundido foram o Mercado de Manaus, projetado por ninguém menos que o Gustave Eiffel da torre, e o Teatro José de Alencar, em Fortaleza, cuja estrutura metálica veio de Glasgow, Escócia. Este, então, parece-se muito com um “gaiola”, pois, gracioso e leve, em sábia opção para uma região quente, é todo vazado e tem poucas paredes, sendo traspassado pela brisa. O viaduto Santa Ifigênia, fabricado na Bélgica, enlaça com sua filigrana as duas margens do Vale do Anhangabaú, contestando o duro coração de concreto de São Paulo. Todos eles, mercado, teatro, viaduto, bem como alguns outros, estão em perfeito estado ainda hoje, para nossa fruição.

Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP

Walnice Nogueira Galvão

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