Muhammad Ali, o indomável, por Walnice Nogueira Galvão

Muhammad Ali, o indomável

por Walnice Nogueira Galvão

E lá se foi o grande Muhammad Ali, boxeador e militante político, que se tornou um notável ícone do movimento dos direitos civis, arrostando o racismo e pagando o preço.

Antes dele, um dos primeiros atletas de cor a se destacar na arena internacional foi Jesse Owens. Na Olimpíada de 1936 em Berlim, Hitler, então no auge, tratou de promover a superioridade dos arianos, ou seja, dos brancos, como pregava o nazismo. A Alemanha sagrou-se campeã, mas Jesse Owens ganhou logo quatro medalhas de ouro.

Podemos vê-lo em foto no pódio, deixando em segundo lugar o campeão alemão que fazia a saudação nazista. Jesse brilhou nos 100 e 200 metros rasos, no salto a distância e no revezamento de 100 metros. Alguns dos recordes que estabeleceu levaram vinte anos para serem superados.

Mais tarde, nos anos 60, o clima era bem outro e estava em ebulição. A década marcou o avanço do movimento negro, dos hippies, da esquerda estudantil, do protesto contra a guerra do Vietnã. Grassavam a dissidência e a desobediência civil. Foi assim que Tommie Smith e John Carlos, dois velocistas negros norte-americanos, provocaram um escândalo na Olimpíada do México, em 1968. Ao subirem ao pódio, após a prova de 200 metros rasos, em vez de adotarem posição de sentido ao som do hino nacional, abaixaram a cabeça e ergueram o punho cerrado, na saudação dos Panteras Negras, facção mais radical do Black Power. Claro que foram expulsos imediatamente – mas a foto icônica até hoje circula.

Foi nesse quadro de ascensão da causa da negritude que riscou o firmamento um sol fulgurante: o pugilista Cassius Clay, futuro Muhammad Ali. Era inteligente e articulado, dominando a fala, escorado na beleza física, em que se distinguia, tanto no corpo escultural quanto nas feições. Subia ao ringue invectivando o adversário, insultando a plateia com sua arrogância e declarações de superioridade. Tão detestado quando admirado, era diferente dos rappers atuais, que no palco se vangloriam do muito dinheiro que ganham e se cobrem de joias, reforçando os valores dos brancos.

Logo passou a fazer das suas. Para começar, converteu-se ao islamismo, tornando-se  um muçulmano negro e trocando seu nome “de escravo” para Muhammad Ali. Na religião sincrética que os negros americanos criaram, com elementos do Islã mas também do cristianismo, tudo estava invertido: o Mal era branco e o Bem era negro. Renegaram o Deus branco barbudo e o Jesus Cristo louro de olhos azuis, que todos conhecemos. Advogavam o mais completo separatismo e uma guerra sem quartel aos brancos, que, a seu ver, tinham usurpado o poder que lhes pertencia desde tempos imemoriais. Seu mais notório converso, Malcolm X, ao contrário de seu contemporâneo Martin Luther King, pregava a violência e a intransigência. Os dois eram amigos de Muhammad Ali e, guerreiros ou pacíficos, a ambos espreitava a bala assassina.

Já campeão mundial dos pesos pesados, Muhammad Ali recusou-se a lutar na guerra do Vietnã:  declarou que não via motivo para ir matar gente que nunca o tinha xingado de crioulo.

Sua punição foi pública e exemplar. Cassaram-lhe o título e o cinturão, foi expulso dos ringues e condenado à prisão por cinco anos.

Quando, finalmente, passou esse período, montaram um grande circo com ele, que já tinha perdido seus anos de apogeu, impedido de lutar. Agora, aos 32, iria disputar o cinturão com George Foreman, de 25 anos, então campeão mundial, em combate a se travar no Zaire. A atenção mundial, e não menos a dos africanos na África, ficou sob os holofotes da mídia. Entre os muitos fãs que se deslocaram até lá, estava Norman Mailer, escritor premiado, opositor da guerra do Vietnã e dissidente. Escreveu, contextualizando os antecedentes, A luta, que se tornaria um best-seller.

Sempre lúcido, Muhammad Ali assim definiu o boxe: “Os brancos pagam a dois negros para baterem um no outro enquanto eles ficam olhando.” Ganhou a luta, outras ganhou ou perdeu, antes de se declarar aposentado, com sintomas de Mal de Parkinson. Agora morreu, e que repouse em paz seu corpo que tanta pancada levou. É marco incontornável na trajetória que vai desde a lavoura de algodão até a Casa Branca. Um grande homem. 

Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP

Walnice Nogueira Galvão

3 Comentários

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  1. Ariano não era sinônimo de branco, para os nazistas

    Bom artigo. Só faço uma observação: para os nazistas, ariano não era sinônimo de branco, mas sim de descendentes de povos germânicos (alemães, austríacos, holandeses, saxões, suecos e nórdicos em geral. Judeus, mesmo brancos como eram os judeus asquenazim da Europa Oriental, sequer eram considerados gente, e destinados ao extermínio. E latinos eram considerados gente de segunda classe, mesmo sendo brancos. E eslavos (estes, por ironia, não raro mais loiros do que os próprios alemâes), eram considerados também gente de segunda classe, passíveis somente de escravização ou assassinato, se não se submetessem aos nazistas no seu plano de expandir o reich alemão nas terras eslavas do leste europeu.

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