Muito menos do que o ‘último homem’: o presidenciável e o ressentimento, por Eliseu Venturi

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Max Ernst. Ilustração para “Une Semaine De Bonté”. Dimanche, 1934. (Montagem com trabalho original)

Muito menos do que o ‘último homem’: o presidenciável e o ressentimento

por Eliseu Raphael Venturi

“Amo todos aqueles que são como gotas pesadas, caindo uma a uma da negra nuvem que paira sobre os homens: eles anunciam a chegada do raio, e como arautos perecem” (NIETZSCHE, Friedrich)¹

A recente entrevista de um presidenciável no telejornal nacional de grande alcance articulou um teatro de “Double K.O.” em que a barbárie de um lado parecia, numa espécie de “delirium tremens” ou dança mórbida, amenizar (ou reforçar?) a selvageria do outro.

Absolutamente nada de novo em nenhum dos lados: mesmos personagens, mesmos “scripts”, velhas estratégias de confronto e de polemização vazia. Apenas os renovados velhos sustos da completa incapacidade de adaptação e de mudança destes mesmos agentes sociais.

Em verdade, um jogo de vitórias-derrotas e derrotas recíprocas em que o telespectador-eleitor é o único e verdadeiro aniquilado, senão também a cultura democrática, a representatividade democrática, o jornalismo democrático.

Quem encenou mais?

De um lado, a sinceridade asquerosa e a truculência desmedida do candidato, perdida em um turbilhão de incapacidades de responder qualquer pergunta com o mínimo de foco e adstrição temática. Um jogo de bilhar em que as bolas só seguem rotas curvas.

Incapacidade, ainda, de se realizar qualquer propositura original sobre temas relevantes como saúde, segurança, previdência, trabalho e qualquer outro direito civil, político, econômico, social, cultural, ambiental etc. Péssimo indício.

Jogava o Sr. Presidenciável, como único mérito de seu discurso equivocado, entre salivas e venenos, na cara da dupla inquisidora, a hipocrisia dos questionamentos deles sobre a precarização do trabalho, justo por quem a praticaria em seus corredores, sob insígnia da pejotização, mais do mesmo que pareciam pretender criticar. Em suma: vejam bem, somos farinha do mesmo saco.

“Diga ao menos um direito, candidato”, insistia desesperadamente o jornalista, do que não obteve resposta (aliás, não obteve nenhuma resposta em todo o programa), porque o candidato não faz ideia do que seja um direito; ele só pensa em desregulamentar e, ah!, dane-se o mundo.

De outro lado, os grandes bocas-do-Golpe e de tantos outros microgolpes ideológicos cotidianos, que, sob o verniz da polidez e da moda sóbria e conservadora, e por meio do sereno rememorar a obediência às regras do debate para todos em voz doce, pareciam até a imagem de um elevado estrato da civilização.

Não fosse o que está por debaixo das suas fitas e rendas, ou por dentro do pão, o espectador incauto até se iludiria que, afinal, não são algozes de discursos tão precarizantes, iguais aos do sujeito que questionam.

Conclusão 1: um jogo de espelhos, um estágio infantil, a grosseria como grande capital eleitoral, as alianças valiosas que se alimentam da tacanhice. O espectador que escolha sua morte: ou com um tacape, ou com uma suave dose de veneno lançado de dentro de um anel de pedra oca.

Como em toda tragédia e explosão, depois do estrago, cada um se apropria dos pedaços dos cadáveres e das ruínas como melhor lhe aprouver.

Houve quem achou digno a jornalista justificar que sequer se sujeitaria a ganhar menos do que um homem. Assim pensam, mesmo que ela o tenha feito, a despeito dos valores monetários envolvidos, em uma aula de voluntarismo que não parece aproveitar à maioria dos brasileiros.

Para estes brasileiros, mais do que escolhas livres e desembaraçadas tais como a proposta da jornalista, restam apenas sujeições, cruelmente se submeter aos abusos para sobreviver – isto quando não estão sequestrados ideologicamente e repetem o “discurso do patrão”.

Apagam-se, em discursos heroicos como o da jornalista, os traços estruturais, coletivos, gerais, as entranhas das diversas subjugações, em nome de imagens protagonistas e sem quaisquer amarras de patrimônio, renda, classe, gênero, etnia etc. Afinal, tudo sempre é muito simples.

Houve, ainda, quem achou – e foi muita gente – que o Presidenciável, cujo olhar e tom de voz espelham a miséria espiritual e a debilidade intelectual que só inspiram comiseração, também tenha reinado.

Proferir soluções ilegais, inconstitucionais, imorais, a-históricas, ilógicas e toda sorte de impropriedade rasa, rudimentar e prévia à construção de qualquer enunciado digno da qualidade de “argumento” é um ato de “mito”.

Realmente, com um Judiciário disposto a corroborar violações de direitos desde a terceirização até o descumprimento de recomendações da ONU, talvez realmente tenham razão em que desatinos jurídicos realmente possam, e eventualmente vão, “pegar” ou “colar”. Tempos imundos!

Um Presidenciável frágil, inseguro, tenso. Parece que ícones de ordem, força, disciplina e hierarquia deveriam vir de uma presença um pouco mais efetiva.

Nem que esta postura adviesse de um jogo cênico corporal, tal como aquele magistralmente dominado pelos ditadores do passado que, a despeito de não terem os físicos de super-heróis, dominavam a arte talar e gestual da coreografia do totalitarismo.

Neste show de id, ego, pouco superego, teimosia, grosseria e muitas infantilidades constrangedoras, fato é que, no melhor espírito da retórica e da persuasão, ouvidos e olhos gostaram das sensações a que foram expostos, tal como o deslumbramento da cor fluorescente de um material radioativo que destruirá todas as células de modo invisível e indolor.

Conclusão 2: parece que a ideia de representatividade voltou com força total. O senso comum, o simplismo, o reducionismo, a proposta de soluções irresponsáveis e incompatíveis com o ordenamento jurídico, além da imprudência, imperícia e negligência parecem animar grande parte dos brasileiros, de seus representantes e de suas autoridades.

Uma mesma moral reptiliana anima estas pessoas todas, é certo. O compromisso democrático, pelas mais diversas razões, parece ter se diluído no ácido do ressentimento.

Candidato-Face do ressentimento nacional, estampado em decorrência de um sentimento cultivado, um ressentimento montado, um afeto público gerido em torno ao ódio à política social e à racionalidade jurídica.

Criador e criatura, naquela entrevista, se tocam como uma versão grotesca, degenerada, reativa, menor, caricata e falsa do afresco de Michelangelo.

Que um senso comum desnorteado adira ao discurso do Presidenciável, seria esperado.

O atônito é se verificar o apoio que recebe de diversos setores com instrução formal – o que, por si, é verdade, não garante nada – incluindo camadas que veem no sujeito fonte de esperança, proteção das pessoas de bem, da família brasileira, do bem comum e outros clichês vazios repetidos ao infinito nas redes sociais-aneurais.

Difícil mesmo, porém, é imaginar qualquer bem comum nas rédeas do caos mental, do preconceito, da estigmatização, da violência declarada. Mas, mais do que isso: da completa ausência de propostas individuais que não sejam meramente reativas.

Difícil mesmo é achar que qualquer política do ressentimento seja potencialmente tolerável em decorrência dos seus antivalores antidemocráticos.

Muito menos do que o acomodado e prostrado “último homem” nietzscheano, o Presidenciável e sua cavalaria são a face dura e o corpo morto do homem ressentido, uma face ignorante do último homem que sequer em um quadro cultural preciso se aprisiona.

A fisiologia e a psicologia expressas daquelas morais fracas, incapazes de digerir sua frustração diante do outro que vive seus desejos e ressentidas da derrota do verdadeiro clamor, sentido e valores democráticos.

Morais menores e acovardadas na falta de talento político, da incapacidade de mediação de setores sociais diversos, da falta de representatividade popular, do desatendimento de direitos em sua complexa ordenação constitucional e econômica.

A representatividade do candidato, assim, é expressão de uma larga moral do ressentimento: ressentimento que tem criado os valores no cenário político-jurídico brasileiro, desde operações e processos com juridicidade completamente questionável até a expressão de um insidioso e escancarado “lawfare”.

Depois de liberados todos os demônios, cujo sono da razão gradualmente tem soltado, não haverá mais resquício de Direito que segure a legitimação da barbárie. Logo estaremos falando novamente em pena de morte com pena formal, posto que em tratamentos desumanos, degradantes e cruéis como práticas legítimas institucionais já se tem insistido.

Brincando com os discursos da exceção, culminaremos em inverter os signos, praticar vingança por justiça. Nossos poderes têm alimentado essa mesma moral que vivem com base em ideias fixas, obsessivas e hipnóticas.

Todos facilmente mostraram que em nome do punitivismo se sacrifica todo o garantismo, toda a Constituição, toda a presunção de inocência, toda hermenêutica, todo direito subjetivo. Todos mostraram que políticas sociais devem ser limitadas ao seu gosto e alcance: o Direito é uma questão de governamentalidade e de gestão, apenas.

Vivamos, agora, nossa “pequena política”, nossa pequena saúde, nossa terra pequena, nossos novos regimes de “apequenamento”, adjetivo caro a uma Ministra. Nossos rebanhos de juristas, de operadores do Direito, de professores de Direito e seus estudantes assujeitados em suas confrarias feudais.

Vivamos o advento das prometidas felicidades, confortos e esperanças, a decadência do modo de produzir valor político e jurídico, vivamos o império desta mediocridade e desta ignorância.

Aguentemos essas morais, estes Presidenciáveis, estes inquisidores. Todos eles não são tão diferentes entre si como pretendem parecer. Eles são fruto de uma mesma moral.

Vivamos estas tiranias do igualitarismo em uniformidade, a hipocrisia de uma vontade de poder acobertada na fraqueza, o despotismo dos mais medíocres e estúpidos, as coligações que se sustentam nas redes antidemocráticas.

Suportemos tragicamente este sofrimento político sem fim de barbárie e de tirania ladeadas com palavras e discursos nem tão belos assim, por mais que se achem dos mais literários e eruditos.

Queimemo-nos com eles, pelas mãos deles; é o preço democrático.

Eliseu Raphael Venturi – Eliseu Raphael Venturi é doutorando e mestre em direitos humanos e democracia pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal no Paraná. Editor executivo da Revista da Faculdade de Direito UFPR e Membro do Comitê de Ética na Pesquisa com Seres Humanos da UFPR. Advogado.

¹ NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 17.

 
Lourdes Nassif

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