Urariano Mota
Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".
[email protected]

Nenhuma arte é um trabalho solitário

Enviado por Urariano Mota

A educadora, poeta e poetisa Márcia Pontes escreveu O texto sobre o monólogo Soledad no teatro. Belo texto, revelador da coletividade que existe no trabalho artístico.

Que venha 2019 com a arte de que todos somos capazes e mais. Mais  porque nos superamos no que produzimos

 

NENHUMA ARTE É UM TRABALHO SOLITÁRIO. SOLEDAD –A TERRA É FOGO SOB NOSSOS PÉS

 

Márcia Pontes

 

Na noite do último dia 22, fui ao teatro para ver uma peça. A expectativa era boa. Afinal, eu já conhecia o autor e o texto que originara a montagem. A princípio, acreditei que apenas veria um excelente texto numa boa montagem e interpretação. Mas, o que tive ali na minha frente, naquele palco, foi uma visão; um alumbramento.

A peça era Soledad: a terra é fogo sob nossos pés, montagem baseada na obra Soledad no Recife, do pernambucano Urariano Mota, de quem tenho a honra de ser amiga. A comovente história de uma jovem militante paraguaia, que veio ao Brasil movida por uma paixão – a liberdade – foi admiravelmente contada em um monólogo. Um projeto lindo e ousado da atriz Hilda Torres, com direção de Malú Bazán.
Fazer arte no Brasil é algo muito arriscado, principalmente devido às dificuldades financeiras de produção e à falta de apoio. Era 22 de dezembro, época em que a maioria das pessoas está engajada nas comemorações natalinas e nas compras e viagens de fim de ano. No entanto, para a minha surpresa, o público compareceu, ainda que modestamente, mas muito entusiasmado ao teatro.
 

A história da mulher que combateu a ditadura militar, que foi traída por seu companheiro, pai do filho que carregava no ventre, e brutalmente assassinada com outros companheiros na região metropolitana do Recife, em um triste episódio registrado pela história como Chacina da Chácara São Bento, foi contada e recriada por ela mesma, tamanha era a entrega e o talento da atriz.
 

Uma Soledad nua, essencialmente feminina, completamente entregue ao seu destino, entra no palco, cercada por uma cenografia simples e acompanhada de doces e fortes canções, cujas letras traduziam os sentimentos da juventude da época. Ali ela era mãe, filha, menina, mulher e guerreira, do seu nascimento até a sua morte.
 

Aquela mulher no palco que cantarolava, gritava e bailava não era Soledad. Sua luta, representada ali, era a luta de todas as mulheres brasileiras. Urariano não escreveu Soledad no Recife sozinho. Escrevemos junto com ele. Ele apenas nos representou. E muito bem. Aquela visão, aquele alumbramento que tive, diante de toda aquela beleza, fizeram-me entender isso.
Não muito diferente da época retratada, vivemos tempos difíceis no Brasil. Aqui “a terra continua sendo fogo sob nossos pés.” O fantasma da repressão dos “anos de chumbo” nos ronda e nos amedronta novamente. Muitos jovens, assim como Soledad e seus companheiros, lutaram e morreram para que estivéssemos ali e para que eu pudesse escrever isto. Pensei.
 

Nenhuma arte é um trabalho solitário, como muitos pensam. O teatro só existe porque o público está lá, prestigiando, inspirando e sentindo-se representado por ele. Na crônica O Pagador e a Flor, de Drummond, ele explica que a conquista da Palma de Ouro, em Cannes, por Anselmo Duarte, no filme O Pagador de Promessas, foi, na verdade, uma conquista de todo o povo brasileiro. Ganhamos aquele prêmio porque ali aprofundamos nossa consciência de sofrer, de lutar, de pedir. É como se tivéssemos produzido, dirigido e protagonizado aquele filme tão bonito e realista. O mesmo penso que acontece também com a Literatura. Inspiramos, recriamos e contamos histórias junto de seus autores. Fazemos literatura, fazemos teatro, fazemos música, enfim, fazemos arte. E subimos todos ao palco no último dia 22, em Fortaleza. Naquele momento, éramos Soledad. Éramos a força e a coragem de quem lutou e morreu por amor aos seus ideais.

 

Éramos a consciência incorruptível de quem acreditava em um mundo melhor. Éramos a memória dos combatentes que deixaram revolta e saudade no coração de seus entes queridos. Éramos o grito silenciado e a lágrima escondida da mãe que nunca mais viu seu filho. Éramos a sentença dos assassinos e dos corruptos. Éramos o cessar fogo da guerra. Éramos o amor e a glória de quem aplaudia a própria luta de pé.

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador