Neoliberalismo em lugar de Jornalismo, por Fernando Nogueira da Costa

Neoliberalismo em lugar de Jornalismo

por Fernando Nogueira da Costa

A “grande” imprensa brasileira, na área econômica, foi capturada pelo neoliberalismo desde o Plano Real. Os nomeados “pais do Real” obtiveram cadeira cativa em suas colunas e entrevistas. Seguidores dessa ideologia, apresentados como economistas-chefe de bancos, pautam suas reportagens e opiniões editoriais.

A bola-da-vez é apelar para o populismo de direita – “é hora de diminuir o setor público para fazer políticas sociais” – como estampa a manchete na reportagem especial do jornal Valor Econômico (02/09/2020) do grupo Globo. A jornalista Arícia Martins entrevistou Sérgio Werlang, assessor da presidência e professor da EPGE na Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ). Ele deu um giro completo pela “porta giratória”: EPGE-Banco Central do Brasil-Banco Itaú-EPGE. Foi diretor do BCB no governo FHC.

Essa entrevista mereceu ¾ de uma página de destaque como Especial. O outro ¼ como contraponto foi concedido ao Nelson Marconi (FGV-SP). Ele é porta-voz do Novo-Desenvolvimentismo e assessor do Ciro Gomes. Mas o debate público não será plural enquanto não se divulgar também as ideias do Social-Desenvolvimentismo.

Essa coloca ênfase na necessidade de políticas sociais ativas em conjunto com um planejamento estratégico de retomada do crescimento sustentável da renda e emprego em longo prazo. Simpatizantes dessa linha de pensamento têm sido boicotados, desde o fim desta Era Social-desenvolvimentista (2003-2014), quando a Presidenta Dilma adotou sob pressão política, no início de seu segundo mandato, a política econômica levyana. Daí o golpismo contou com cumplicidade do jornalismo econômico neoliberal.

Pior é quando, sem contestação crítica, o economista neoliberal pauta a nova panaceia – reforma administrativa –, assim como eram antes apresentadas a reforma trabalhista e a reforma da Previdência Social. Não tiveram nenhum resultado macroeconômico positivo como prometido. Diagnosticou Werlang, de maneira simplória e reducionista: “o grande problema é continuarmos com o gasto desenfreado no funcionalismo”.

Depois de atacarem o sindicalismo brasileiro, o outro adversário do neoliberalismo brasileiro é a casta dos sábios-tecnocratas. A aliança desta com a casta dos trabalhadores organizados liderou a Era Social-Desenvolvimentista.

Embora a população ocupada no mercado de trabalho tenha crescido para 94,6 milhões de trabalhadores, no primeiro ano do governo da aliança entre a casta dos militares e a casta dos mercadores, houve queda de 8,25% no numero de trabalhadores sindicalizados. Reduziu para 10,567 milhões. Isso representa perda de 951 mil sindicalizados no ano passado. A reforma trabalhista dos temerosos golpistas foi decisiva para haver 3,836 milhões de sindicalizados a menos desde 2012.

No primeiro semestre do ano corrente, a força de trabalho na Administração Pública somava 564.848. A estimativa do ministério da Economia é 91.849 servidores se aposentarem até 2024, sendo 20.114 apenas em 2020. Há ainda outros 67.356 servidores com o direto à aposentadoria, mas continuam o trabalho por escolha própria.

Dados do 1º Boletim da Administração Direta, Autárquica e Fundacional, divulgado recentemente, mostram haver 10.136 cargos de DAS em junho deste ano. Desse total, 55% (5.579) eram ocupados por pessoas com vínculo, ou seja, 45% são nomeados ou prepostos da nova aliança entre castas de natureza ocupacional.

Pretendem acabar com a estabilidade dos servidores públicos, facultando a dispensa por perseguição política, sob a falsa alegação de corte de gastos públicos levar ao ajuste fiscal. Gastos públicos em investimentos produtivos levam sim à elevação do PIB e, em consequência matemática, à queda das relações déficit primário/PIB e DBGG/PIB.

Dispensa de servidores públicos na área da Saúde Pública e Educação Pública só piorará a prestação desses serviços públicos. Dispensável é a Força Armada brasileira, mas certamente o corporativismo militar a protegerá.

De maneira leviana e contra factual, Werlang afirmou sem comprovação – e sem contestação da jornalista entrevistadora: “não é fazendo obras públicas que vai recuperar o país. Nós já vimos, isso deu errado com Juscelino [Kubitschek], com os militares na década de 60 e 70, deu errado com a Dilma agora. Vamos insistir no erro?”

A bem da verdade, seria obrigação de uma profissional competente contrapor certos fatos históricos ao neoliberal. Inserido à corrente nacional-desenvolvimentista, Kubitschek trabalhava sob a perspectiva de superação do subdesenvolvimento brasileiro através do “50 anos em 5 anos de mandato”. Houve ruptura com o modelo agrário-exportador e a oligarquia latifundiária. Os descendentes de Eugênio Gudin, na EPGE-FGV, não o perdoam até hoje. Parece ainda defenderem a anacrônica exclusividade da “vocação agrícola” do país.

Exportando apenas matérias-primas, a economia brasileira estava (e está) fadada a lugar inexpressivo no comércio exterior, estabelecido pela divisão internacional do trabalho. Logo, para os nacionalistas, a solução econômica para o país era a de substituir a “vocação agrária” por um processo de industrialização, inclusive em agroindústria.

JK deixou como herança da indústria nascente a condição para o “milagre econômico” no fim da década seguinte. Subdividido em setores, o Plano de Metas de Juscelino Kubitschek era marcado por investimentos em estradas, siderúrgicas, usinas hidrelétricas, marinha mercante e pela construção de Brasília.

O II PND do desenvolvimentismo militar foi uma resposta à crise econômica decorrente do primeiro choque do petróleo, no fim do chamado “milagre econômico brasileiro”, período de 6 anos consecutivos com taxas de crescimento superiores a 10% ao ano. Foi o último grande plano econômico do ciclo desenvolvimentista.

Fez investimento em fontes alternativas de energia, como o álcool e a energia nuclear. Buscou completar toda a cadeia produtiva industrial ao investir na produção de insumos básicos e bens de capital, ou seja, na indústria pesada. Deixou a Itaipu, a segunda maior usina hidrelétrica do mundo, como legado simbólico.

Lula e Dilma deixaram como legados não só a melhoria da distribuição da renda, mas também o maior programa de habitação de interesse social já realizado no país com o MCMV. De 2010 a 2014, a taxa de investimento esteve em torno de 21% do PIB, resultando na menor taxa histórica de desemprego em 2013-2014. O PAC (Programa de Aceleração Econômica) resultou em grandes projetos de hidrelétricas na Região Norte, novas fontes de energia (eólica e solar), novas tecnologias em telecomunicações, construção e ampliação de aeroportos e portos, obras relacionadas à Copa do Mundo e às Olimpíadas 2016, investimentos em saneamento e mobilidade urbana.

Qual a infraestrutura propiciou a primeira Era Neoliberal (1988-2002) e a segunda (2015-…)? O obsessivo ajuste fiscal só visa, na verdade, garantir o pagamento dos juros aos rentistas improdutivos e evitar o aumento da carga tributária progressiva para ricos.

Esse neoliberalismo, através de um jornalismo econômico não plural, martela cotidianamente sua doutrina sobre as mentes dos leigos e incautos. Sempre aponta o problema do endividamento. Ora, ciclos de alavancagem financeira são inerentes e indispensáveis em uma economia de mercado capitalista.

No entanto, os banqueiros de negócios se aproveitam muito bem da captura privada do Estado brasileiro para atender seus interesses exclusivos. Um juiz de Comarca do Rio de Janeiro determinou o GGN “retirar do ar” uma série de reportagens e artigos exclusivos, assinados por Luís Nassif e pela repórter Patrícia Faermann, sobre o banco BTG Pactual.

A reação dos sindicalistas e a divulgação no GGN, justamente, obrigaram o Banco do Brasil divulgar nota à imprensa (Valor, 28/07/20), dando mais detalhes sobre a venda de uma carteira para um fundo de investimento em direitos creditórios não- padronizados e exclusivo (FIDC-NP), administrado pelo BTG Pactual. A transação tinha sido anunciada em 1º de julho. A carteira tinha um valor contábil de R$ 2,9 bilhões e o o BB receberia de R$ 371 milhões.

Segundo o BB, a cessão da carteira ocorreu após processo de concorrência entre quatro empresas especializadas neste mercado. Quais? “O cessionário escolhido foi aquele que apresentou a maior oferta de pagamento à vista e o maior percentual do rateio de prêmios futuros”, diz o banco sem comprovar quais foram as demais ofertas.

O BB afirma ainda a precificação da operação, a avaliação de riscos e a evidenciação da vantagem econômica terem contado com o acompanhamento de consultoria externa, realizada pela Pricewaterhouse Coopers. Os créditos cedidos referiam-se a operações inadimplentes, em média, há mais de seis anos. Do total, 98% estavam lançados em prejuízo e os 2% restantes contavam com provisões. Além disso, o BB afirma ser “um portfólio de operações ajuizadas, com processos judiciais iniciados há até 15 anos”.

Cabem duas observações. A primeira é típica de “mineiro desconfiado”: se o negócio era assim tão ruim, porque a contraparte – o Banco BTG-Pactual, origem de diversos próceres da casta dos mercadores-financistas instalada no atual governo militar e conhecido por contumaz promiscuidade privada-pública – o adquiriu? Dizem: o mineiro não faz negócio por essa desconfiança atávica…

A segunda é “à mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta”. A palavra reputação tem etimologia latina no verbo putare com significado de supor. O adjetivo putativo significa algo ser suposto, mesmo quando em virtude apenas de uma aparência enganosa.

Reputação é uma avaliação social difusa e espontânea. Esse papel-chave do jornalismo, de modo algum, se confunde com sentença condenatória transitada em julgado. Esta, no regime da presunção da inocência, é essencial para se atribuir (ou não) o delito ao agente. Mas não é ela a definidora de sua reputação. Cabe ao GGN desconfiar e “levantar a lebre”, cabe ao MP investigar e à justiça julgar.

“Levantar a lebre” significa “trazer à luz o que estava escondido”. É papel do jornalismo.

Fernando Nogueira da Costa – Professor Titular do IE-UNICAMP. Autor de “Golpe Econômico: Locaute ou Nocaute da Economia Brasileira” (2020). Baixe em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/
E-mail: fernandonogueiracosta@gmail.com

Fernando Nogueira da Costa

Fernando Nogueira da Costa possui graduação em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG (1974), mestrado (1975-76), doutorado (1986), livre-docência (1994) pelo Instituto de Economia da UNICAMP, onde é docente, desde 1985, e atingiu o topo da carreira como Professor Titular. Foi Analista Especializado no IBGE (1978-1985), coordenador da Área de Economia na Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP (1996-2002), Vice-presidente de Finanças e Mercado de Capitais da Caixa Econômica Federal e Diretor-executivo da FEBRABAN - Federação Brasileira de Bancos entre 2003 e 2007. Publicou seis livros impressos – Ensaios de Economia Monetária (1992), Economia Monetária e Financeira: Uma Abordagem Pluralista (1999), Economia em 10 Lições (2000), Brasil dos Bancos (2012), Bancos Públicos do Brasil (2017), Métodos de Análise Econômica (2018) –, mais de cem livros digitais, vários capítulos de livros e artigos em revistas especializadas. Escreve semanalmente artigos para GGN, Fórum 21, A Terra é Redonda, RED – Rede Estação Democracia. Seu blog Cidadania & Cultura, desde 22/01/10, recebeu mais de 10 milhões visitas: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/

Fernando Nogueira da Costa

Fernando Nogueira da Costa possui graduação em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG (1974), mestrado (1975-76), doutorado (1986), livre-docência (1994) pelo Instituto de Economia da UNICAMP, onde é docente, desde 1985, e atingiu o topo da carreira como Professor Titular. Foi Analista Especializado no IBGE (1978-1985), coordenador da Área de Economia na Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP (1996-2002), Vice-presidente de Finanças e Mercado de Capitais da Caixa Econômica Federal e Diretor-executivo da FEBRABAN - Federação Brasileira de Bancos entre 2003 e 2007. Publicou seis livros impressos – Ensaios de Economia Monetária (1992), Economia Monetária e Financeira: Uma Abordagem Pluralista (1999), Economia em 10 Lições (2000), Brasil dos Bancos (2012), Bancos Públicos do Brasil (2017), Métodos de Análise Econômica (2018) –, mais de cem livros digitais, vários capítulos de livros e artigos em revistas especializadas. Escreve semanalmente artigos para GGN, Fórum 21, A Terra é Redonda, RED – Rede Estação Democracia. Seu blog Cidadania & Cultura, desde 22/01/10, recebeu mais de 10 milhões visitas: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/

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