No inferno de Weintraub, por Bruno Reikdal Lima

Weintraub pode até desejar o inferno para Drauzio e atiçar as hordas que exigem sacrifícios diários, mas não está em suas mãos e nem na delas decidir sobre essa "alma".

No inferno de Weintraub, por Bruno Reikdal Lima

Weintraub, que ocupa a cadeira de ministro da Educação, mas não age como tal (nem como ministro e nem com educação), mais uma vez sem qualquer postura aproveita da tática cotidiana e coordenada da extrema-direita de aproveitar factoides com alguma verdade ou não para dominar a pauta do dia, sempre com discurso moralista e apelativo. Quem vos escreve, ao que parece, também se rendeu a esse controle de pauta. Dessa vez, para comentar o uso calculado de uma imagem religiosa punitiva para voltar as forças de uma militância conservadora aguerrida contra representações liberais e contra a emissora de televisão que paga o pato colhendo o que plantou. Acirrando ânimos novamente, o desocupado ministro se expressou nas redes sociais para desejar que Drauzio Varella termine no inferno.

Claro que o destinatário da mensagem não é Drauzio, e nem a Globo, mas as hordas que querem sangue e sacrifícios. Para um médico ateu, imagino que a ameaça de inferno não tenha preocupado tanto. Mas para fieis, o conteúdo é forte. E a busca pelo apoio religioso de punição máxima e severa a toda imagem considerada “pecaminosa”, “má”, “contra nossos costumes”, “contra a ordem”, etc., tem sido uma arma potente na interminável caça às bruxas na qual se move a militância pró-governo. Querer a danação eterna de Drauzio e literalmente demonizar uma pessoa que cumpre pena por crimes cometidos dá mais uma volta no parafuso. Como crítica a essa religiosidade persecutória e punitivista que proponho essa reflexão.

Por um instante, tiremos o fato de que Weintraub se baseia em uma informação veiculada por dois grupos com quase nenhuma credibilidade e ideologicamente mobilizados para engajar internautas em pautas específicas, reforçando crenças, estereótipos e preconceitos já existentes, sem necessariamente garantir fontes e dar conteúdo. Também que pouco se importam com processos legais ou respeito a determinadas instituições, fazendo uma notícia correr mais rápido do que a capacidade de órgãos responsáveis trazerem os conteúdos necessários para sabermos quais são os fatos dentro dos ditames legais – e que depois, quando processados ou sob ameaça de processo, emitem uma nota pedindo desculpas sem alarde. Tiremos esse pequeno fato e nos voltemos para a mensagem religiosa contida no desejo por negar qualquer aproximação, cuidado ou respeito a dignidade de uma pessoa que está encarcerada por crimes cometidos. Uma mensagem que diz: apenas a quem considerarmos bom trataremos como gente.

Curioso que certa vez Jesus contou uma parábola para diferenciar quem entraria em seu reino e quem não, registrada no evangelho de Mateus. Entre os que seriam aceitos, estariam aqueles que “me visitaram quando estive preso”. Ao passo que esses escolhidos perguntariam: “e quando fizemos isso?”, ouvindo como resposta do próprio Jesus: “quando fizeram ao menor dos meus irmãos”. Do mesmo modo, ele viraria para os que não teriam permissão para entrar no reino e diria: “afastem-se de mim!”, pois fizeram exatamente o contrário, e entre os critérios, não visitaram quem estava preso. Isso posto, não seria bem Drauzio quem estaria longe da salvação…

Em outro momento, antes de contar essa parábola, no mesmo livro, Jesus afirma que “em todas as coisas façam aos outros o que vocês desejam que eles façam a vocês. Essa é a essência de tudo o que ensinam a lei e os profetas”. A essa postura, que resume todo o conteúdo de fé das leis mosaicas e das denúncias das lideranças populares judaicas nos períodos dos reis, especialmente entre os exílios, Jesus chama de difícil, daquela porta estreita, difícil de passar, um caminho que poucos são capazes de encontrar. E desse alerta, chama a atenção para a existência de falsos líderes, que por vezes falam em seu nome, mas que não são verdadeiros. E o critério para distinguir quem é e quem não é uma verdadeira liderança que esteja no mesmo espírito que o de Jesus é o fruto de suas ações: se produzem transformações boas na realidade, são de um bom espírito, se propagam violência e destruição, são de um mau espírito.

Aliado aos critérios para quem está apto ou não a entrar no reino, vemos novamente alguns indícios para quem efetivamente pratica o conteúdo da mensagem de Jesus e quem não. Mas para o telhado de vidro de religiosos e de quem deseja se aproveitar da religiosidade alheia, como o ministro da Educação, para fazer valer uma agenda reacionária e persecutória, essa longa fala de Jesus sobre a regra de ouro de fazer ao outro o que gostaria que fizesse a você (por exemplo, se estivesse cumprindo uma pena por um crime cometido) é encerra com o nazareno afirmando que “no dia do juízo, muitos me dirão: ‘Senhor, Senhor! Mas nós não profetizamos em teu nome, expulsamos demônios em teu nome e realizamos muitos milagres em teu nome?’, e eu porém responderei: ‘Afastem-se de mim, vocês que desobedecem a lei!”.

Então, a quem devemos querer bem, caso sejamos religiosos como a leva de gente a quem Weintraub tem se dirigido em suas manifestações públicas e nas recentes tomadas de decisão por meio do MEC? Apenas a quem consideremos bons? Sob quais critérios? E a quem devemos desejar danação eterna, se é que devemos fazer isso? Aliás, no papel religioso de retomar os conteúdos presentes na mensagem de Jesus e nas narrativas sobre sua vida, quem mais se aproxima de cumprir com os critérios vistos acima? As hordas que rejeitam qualquer possibilidade de regeneração e transformação humana, realmente são religiosas ou fazem o papel de falar em nome de Jesus, mas de em nada cumprir com deveres estabelecidos?

Por fim, em outro evangelho, o de Lucas, logo no início da missão de Jesus, ele é criticado na narrativa por lideranças religiosas e especialistas da lei por andar com “cobradores de impostos e outros criminosos”. Em resposta, Jesus pergunta a quem um médico deve atender: uma pessoa sã ou uma pessoa doente? Do mesmo modo, ele não veio para os justos, mas para os criminosos. Utilizo a expressão “criminoso” propositalmente, aqui. No tempo de Jesus não havia distinção entre leis civis e leis religiosas: eram uma única coisa. Desse modo, o que chamamos de “pecador”, na verdade, é quem não cumpriu com os devidos mandamentos da lei mosaica. Eram, na prática, foras da lei, marginalizados, que não poderiam participar das reuniões sociais, políticas e dos rituais religiosos oficiais, pois não estavam purificados, em dia com a lei. Era com essas pessoas que Jesus andava, almoçava, para quem se dirigia.

A exclusão dessas gentes, a demonização de quem já está marginalizado, é fazer exatamente o contrário da mensagem de Jesus e seus preceitos. Negar assistência a quem precisa, cuidar sem perguntar a quem, é retornar às práticas excludentes que o próprio Jesus condenava. Tanto que encontramos ao final da narrativa do evangelho de Lucas um condenado a morte pedindo auxílio para Jesus, na cruz, que afirma sem perguntar ou saber que crime havia cometido para estar ali, sendo executado pela lei, “hoje mesmo estará comigo no Paraíso”.

Nesse sentido, Weintraub pode até desejar o inferno para Drauzio e atiçar as hordas que exigem sacrifícios diários (ainda mais de uma mulher trans, negra e encarcerada, cumprindo o estereótipo de quem “merece ser odiado” pelo moralismo de plantão), mas não está em suas mãos e nem na delas decidir sobre essa “alma”. Para um religioso, como sou, ainda bem que o juiz que vai decidir esse caso tem critérios muito mais interessantes do que a estratégia baixa e mesquinha de um homem de Estado irresponsável que tem se dado mais ao trabalho de criar e perseguir adversários do que exercer sua pasta visando uma melhora de vida das populações mais necessitadas no país mais desigual do mundo. Para estas, a vida que já é pesada faz tempo, tende a piorar nesse inferno criado por Weintraub.

Redação

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