Nos rastros dos déspotas, por Arnaldo Cardoso

Em mais esse deplorável assassinato de um homem negro por policiais brancos nos EUA, Trump usou suas redes sociais para disparar suas infames opiniões atentatórias aos direitos humanos e à liberdade

Nos rastros dos déspotas

por Arnaldo Cardoso

Se a crueldade com que George Floyd foi imobilizado e sufocado até a morte na ação policial ocorrida na tarde do último dia 25 em Minneapolis/EUA explicitou que o racismo norte-americano continua vigoroso e, possivelmente, revigorado, a prisão na manhã de 29/05 do repórter negro Omar Jimenez da equipe da CNN em meio a cobertura ao vivo dos protestos em Minneapolis não só reforçou as denúncias quanto ao racismo operante como também deu mostras de que a liberdade de imprensa se encontra sob ameaça nos Estados Unidos, como costuma ocorrer onde o despotismo avança.

Enquanto a câmera da CNN registrava ao vivo o repórter sendo algemado e perguntando aos policiais por que estava sendo preso, sem receber resposta, a jornalista que comandava o noticiário no estúdio da CNN manifestava assombro com a situação ao exclamar “Eu nunca vi nada como isso!”. Na sequência, também o produtor e o cameraman foram detidos e levados pelos policiais.

Após o episódio diversos veículos de comunicação lembraram que a liberdade de expressão e de imprensa estão asseguradas pela Primeira Emenda da Constituição dos EUA. Mas a exemplo do que ocorre no Brasil, em que jornalistas tem sido atacados e perseguidos, maliciosamente o Presidente da República dos EUA tem invocado a liberdade de expressão, não para garantir o livre trabalho do jornalismo na cobertura de fatos e produção de informação, mas para assegurar o livre fluxo de fake news favoráveis ao seu governo e, especialmente ao seu projeto de reeleição.

Em mais esse deplorável assassinato de um homem negro por policiais brancos nos EUA, Trump usou suas redes sociais para disparar suas infames opiniões atentatórias aos direitos humanos e à liberdade, para atacar políticos da oposição e tentar capitalizar a seu favor uma situação de crise. Na madrugada de quinta-feira Trump escreveu no Twitter mensagem insultando o prefeito de Minneapolis  Jacob Frey, do Partido Democrata, chamando-o de esquerdista radical, fraco e sem capacidade de liderança, e dizendo que se o prefeito não controlasse os protestos mandaria a Guarda Nacional resolver a situação e, num segundo tweet propôs que contra manifestantes e saqueadores a polícia deveria atirar. Sobre essa segunda mensagem de Trump o Twitter a cobriu com um aviso de que ela violava “regras do Twitter sobre glorificar a violência”. A mesma rede social também produziu alertas contra postagens de Trump em que lançava suspeitas sem fundamentação contra o sistema de votação pelos correios.

Com a intensificação dos protestos em Minneapolis e em outras cidades pelo país, Trump reagiu com novas manifestações violentas contra os manifestantes e contra os veículos de comunicação. Ao invés de condenar a violência racial que se repete mais uma vez pelas mãos da polícia critica os manifestantes cansados da violência e da opressão.

Coisas semelhantes os brasileiros também tem visto acontecer, quando mensagens do Presidente da República em meio a pandemia foram ocultadas pelo Facebook, Twitter e Youtube por serem consideradas fake news. Também já se tornou rotineira a aposta do presidente e de seus apoiadores na distorção da informação e do sentido da cobertura da mídia.

No embate com o Twitter e outras redes sociais Trump ameaçou fechá-las nos EUA, acusando-as de cercearem a liberdade de expressão de grupos conservadores (incluídos supremacistas brancos e outros tantos extremistas) que o apoiam. Trump ameaça também cortar todas as verbas publicitárias do governo junto a veículos que lhe façam oposição. Também nesse tema, o timing (com algum retardo) do  presidente brasileiro parece ditado pelo norte-americano. No centro da arena hoje o presidente brasileiro e seus auxiliares investem na tentativa de suspender as investigações do inquérito no STF sobre as fake news, com isso pretendendo acorbertar ações criminosas como a da líder do grupo neonazista que com tochas durante a noite de sábado (30) marchou diante do prédio do STF em Brasília reproduzindo a estética de grupos supremascistas brancos como a Ku Klux Klan. Aqui esses grupos produzem um bizarro patchwork juntando o pior do racismo norteamericano, do fascismo italiano e do nazismo alemão.

E, quanto a persistência de Trump na tática do ataque a governadores, imprensa, organizações internacionais, pela sua incapacidade de liderar um movimento de união para enfrentar a crise, tem se mostrado desastrosa, com pesquisas mostrando que sua popularidade caiu 10 pontos durante a pandemia. Sinais semelhantes podem ser encontrados também no caso brasileiro, embora o 1/3 de seguidores fiéis de Bolsonaro se mostrem mais impermeáveis à realidade dos fatos.

Ainda que as instituições democráticas nos EUA se mostrem mais fortes e capazes de frear os arroubos autoritários de Trump que as de outros países como o Brasil onde populistas de direita também governam, os estragos que esses governantes causam nunca são pequenos. A radicalização e divisão nessas sociedades se irradiam por todas as instâncias da vida social.

No Brasil onde pobres e negros são os alvos preferenciais da violência policial como disto foi exemplo o recente assassinato do adolescente João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos, alvejado por uma bala de fuzil dentro de sua casa (alvo de mais de 70 tiros) no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo-RJ, as instituições se mostram mais permeáveis à intervenção política de governantes corruptos e autoritários e o vigor para uma revolta popular ainda parece anestesiado. (Nos últimos dias não foram poucas as comparações feitas entre a reação que o assassinato de Floyd produziu nos EUA e a falta de reação ao assassinato de João Pedro. É ainda mais contrastante se considerarmos que nos EUA a proporção da população de afrodescendentes é de cerca de 12% e no Brasil cerca de 50%!).

Racismo, violência policial, desigualdade social, serviços públicos precarizados, jornalismo sob ataque, grupos extremistas e milícias digitais promovendo desinformação e perseguições a serviço de déspotas com torpes projetos de poder são alguns dos elementos que aproximam hoje Brasil e Estados Unidos da América.

A batalha diária que os brasileiros tem assistido nesse momento, com o STF mais unido na missão de impedir a escalada autoritária do governo, e setores da imprensa – com destaque às mídias alternativas – fazendo o necessário contraponto aos propagadores do ódio tem animado alguns analistas quanto aos possíveis desfechos desse grave momento da vida nacional, mas não são poucos os que a cada dia ficam mais tememoros quanto ao risco da materialização do pior cenário acontecer.

É certo que no horizonte das duas maiores nações do hemisfério americano há nuvens bastante carregadas. A eleição presidencial norte-americana de novembro próximo será um acontecimento político de repercussão mundial e que terá para o Brasil forte significado político. Até novembro importantes lances serão jogados no jogo político brasileiro que, no presente momento além de ter de vencer a pandemia do coronavírus que também se agrava em meio ao desgoverno, precisará através de suas instituições democráticas inviabilizar os conluios que conspiram contra a democracia.

O que a gravidade da situação requer de todos que prezam pela democracia e acreditam na possibilidade de seu aprimoramento constante é que estejam atentos e fortes para o que vier, e desejar que viradas essas recentes páginas sombrias da história do Brasil – bem como da maior democracia do hemisfério americano – ensinamentos sejam extraídos sobretudo quanto as armadilhas da democracia quando diferentes atores sociais irresponsavelmente se engajam e declaram apoio a aventuras revanchistas e vazias de futuro lideradas por sujeitos desprovidos de qualidades mínimas para a promoção da cidadania, e que só podem deixar em seus rastros sofrimento, retrocesso e vergonha.

Arnaldo Cardoso, cientista político

Redação

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