Notas antieconômicas: “A Crítica da Crítica”, por Nathan Caixeta

Notas antieconômicas: “A Crítica da Crítica”[1]

por Nathan Caixeta[2]

A temática inaugural da chamada “Economia Política Clássica” instaurou-se no involucro da moral iluminista, e para tanto, debruçou-se sobre o conceito de liberdade. De Adam Smith à Stuart Mills, a temática da liberdade transpassou vitoriosa pelas investigações, nem sempre tão bem açodadas, em torno do fenômeno do trabalho assalariado, da criação de riqueza, da geração de renda e de sua distribuição no intento de construção de uma teoria do valor cujo feixe final encontra-se na formulação de David Ricardo com sua pomposa teoria do valor-trabalho como “propriedade” orgânica do modo de produção de riqueza organizado em torno do dinheiro e da revolução tecnológica dos meios de produção.

De certo, o espirito intelectual que guiou “os pais fundadores” da ciência econômica carregou sob seu corpanzil eviterno a crítica ao mercantilismo e suas desordens sobre a liberdade dos mercados, travando na dança dos “Reis sem cabeça”, a liberdade individual da escolha, eixo central da Economia Moral de Bentham. A mistura entre o espirito e o método, exigiu a mediação do cálculo diferencial Newtoniano, como bem demonstram as soluções algébricas da versão 2.0 da teoria ricardiana empreendida pelos chamados “Marginalistas”.

À moda de Jevons, Walras e outros mais, a propriedade orgânica do trabalho como gerador do valor das mercadorias foi deixada de lado, tomando forma a construção do chamado “equilíbrio geral” pelo qual, por um lado, a produção de riqueza permaneceria a cargo da substituição técnica entre capital e trabalho, assegurada pela maximização dos lucros empresariais, e das utilidades do consumo individual, formando a “poupança” necessária para a validação da acumulação de riqueza no ponto de encontro entre as vontades individuais expressas em curvas convexas “bem comportadas” e do mérito, componente de “ajuste” que garante segurança à prática cotidiana do egoísmo esclarecido como influxo gerador do bem-estar geral. A chamada “Teoria Quantitativa da Moeda” (TQM) completa o quadro, costurando as órbitas da produção e do consumo mediante a instigante relação entre o nível geral de preços e a quantidade de moeda da economia. Conclusão ainda presente nos discursos econômicos: o pressuposto da criação de riqueza futura encontra-se na abstinência racional e meritória do consumo presente.

Alfred Marshall pousou na confusão econômica como uma “aves-rara” ao incorporar à temática da concorrência empresarial os pressupostos dinâmicos do ciclo econômico, espocado e dinamitado pela concorrência voraz e paralisado pelas propriedades otimizadoras do “equilíbrio parcial”. Seus colegas de classe, os chamados “Neoclássicos” tão logo ensaiaram suas incursões newtonianas pelo processo social, inocularam pelo uso do calculo diferencial, a condição “ceteris paribus” como sentença eterna de um tempo único, o tempo da impavidez. Nada diferente fizeram os consagrados ritmistas da chamada “Escola Austríaca”, estandartes da paralisia do “tempo-espaço” como prócere da realidade econômica.

Contado assim, o percurso pela história do pensamento econômico permanece num movimento uníssono de crítica à ordem constituída pelo reinado da insensatez e corrigida pela liberação das vontades individuais de suas amarras absolutistas, permitindo a soldagem social baseada na doutrina do direito natural para dar forma  à um tipo de governo da sociedade baseado no farol luminoso do Laissez-faire. Sem desvios, o discurso econômico fechado para si, partiu da critica para inaugurar um novo status quo, submetendo o conceito de liberdade às pregas fortes e largas do paletó argumentativo, revestido pela moral imaginativa fundada por Edmund Burke.

Ao esconderem a filosofia moral implícita aos conceitos de liberdade e justiça, noções fundamentais que embalaram a critica ao mercantilismo, os economistas da chamada “corrente principal” desvirtuaram à paixão newtoniana da Economia Política Clássica, aprisionando os determinantes político-sociais dos fenômenos econômicos nas paredes dos eixos cartesianos dos quais saem apenas os resultados exigidos nas hipóteses assumidas para que dado “x”, se obtenha “y”. Não por outro método, os Monetaristas e Novo-Clássicos se esforçaram tanto para dobrar as barreiras psicológicas que induzem as ações individuais e retirar da interação social a presença da incerteza, resumindo esta ultima à um erro aleatório, provavelmente experimentado pelo abandono da razão econômica.

Desse modo, o “mainstream” econômico, nele incluso os novo-keynesianos, tão bastardos quanto os antigos, fechou-se em torno das próprias elocubrações teóricas, negando qualquer contraprova em relação à “realidade real” pela submissão do “conceito” à “forma”, revelando o fundo Kantiano e positivo da razão econômica que se impõe como imperativo categórico abstrato para guiar o fantasma do egoísmo auto esclarecido pelo bom caminho da liberdade, terminando por encarnar no corpo social como culto à concorrência predatória, antessala da fábrica do mérito, pressuposto do bem-estar geral. A cicuta diária dos economistas é engolida com sabor tão azedo, quanto adicto, pois quanto mais verificam a distância de suas teorias em relação aos fenômenos reais, mais fé na “ciência” adquirem. Não à toa, a Economia enquanto “ciência” tornou-se a religião do capitalismo mediante a falsa sensação de que a moral imaginativa poderia ser colada à uma razão construída e bem juramentada nas instituições politicas que ao permanecerem como promotoras da livre concorrência, permitiriam o “gotejar” da riqueza e do progresso técnico sobre a sociedade, distribuindo ao sabor da vontade individual, as carniças do individualismo ególatra, fruto e alimento do indivíduo moderno.

Marx faz a crítica à economia política se embrenhando no esgueiro e pantanoso caminho da dialética para oferecer à contraprova em relação à teoria do valor-trabalho, dela partindo, para depois desabona-la sob a refinada e pouco compreendida interpretação do capitalismo como um processo sistêmico de mutação social, refogado nas porções feiticeiras do desenvolvimento logico-genético do capital que assume expressão concreta na sua forma mais avançada, e por isso mesmo, “real”, a forma fictícia da riqueza. O fetiche do capital golpeia as incursões progressistas da moral que embala a concorrência capitalista, fomentando a acumulação ilimitada e desigualmente distribuída de riqueza, “derretendo os sólidos” valores e costumes da sociedade ocidental para absorve-los e regurgita-los como ópio para o ego humano, fervido e servido quente à sociedade de massas. O fetiche da liquidez, denunciaria Keynes, impera no sentido de ativar o comando das pulsões de morte sobre as pulsões de vida, no eterno comando das decisões de gasto pelas decisões de alocação da riqueza, estas ultimas desde logo, monopolizadas pela classe que detém os meios de produção e de subsistência. Havendo tal condição congênita à economia monetária da produção, “vai para as estrelas” a primeira pedra da “coroa econômica”, a moral imaginativa segundo a qual os indivíduos nascem livre e iguais, confeccionando sua própria sorte e amealhando sua propriedade pela via do trabalho e da concorrência. A segunda pedra dessa coroa de pressupostos morais, a tal “razão econômica” é desgrudada desde logo da realidade, pois tão racional que embasa seus cuidadosos exercícios de cálculo entre “prazer” e “dor” na justaposição do passado como “farol” e do presente como sala de espelhos cujos reflexos se autocompensam, revelando as angustias e delicias do futuro, cabendo à onipresente evidência das probabilidades fornecer o “cardápio de opções” para o proceder individual.

Keynes, embora fosse liberal político, esteve longe de realizar à critica ao status quo. Na verdade, opera como Marx, uma critica da critica do “status quo” ao mundo anterior à fabula das abelhas de Mandeville e equidistante em relação à ilha de Robinson Crusoé.

Schumpeter, Kalecki, Minsky e outros acompanham à turma dos desordeiros, visitados, vez ou outra, pelos interessados colegas da sociologia política, em especial, Simmel, Weber e Sombart. Ora, se a Economia Política se propõe à crítica, não estranha, nem deve espantar, as desafiantes bagunças que a dialética negativa, ou a biopolítica de Foucault geraram no bojo das noções econômicas de liberdade, sociedade, trabalho, etc.

  Exemplo lucido é dado pela tese de Luiz Gonzaga Belluzzo, “Valor e Capitalismo”, no qual o autor desfere poderosos golpes no marxismo de proveta, insistente defensor da teoria do valor-trabalho “Neo-Ricardiana”. Não ficam para trás, os franceses Pierre Dardot e Charles Laval que interpretam o “lado b” da modernidade como uma “nova razão do mundo”. Igualmente desafiadoras são as considerações de Jose Carlos Braga, Aglietta e George Shackle ao relembrarem a ululante presença do tempo, do conflito político-social e das feições anti harmônicas do sistema capitalista.

Esse novo passeio pela história do pensamento econômico fornece uma volta pelo avesso ao debate moral que envolve o método econômico. Desde logo, o método deve ser a crítica da crítica, o contorno inacabado da tese pela antítese, a suave e delicada lembrança de Weber de que o trabalho intelectual nasce para ser superado, pois o que sobra da labuta do pensamento são as dúvidas, essas sim, eternas.

Ao se proporem à critica do status quo, os economistas desembalam as teorias, vestindo-as com novas armaduras, bijuterias algébricas, ou argumentações logicas que não sobrevivem nem ao simples contato com a história, derretendo “por dentro”, como quem pisa no pé de apoio ao caminhar. Não foi diferente, o animo provocado pelo modismo atual da moderna teoria monetária. Como teoria, a chamada MMT provou-se melhor por colcha de retalhos, enquanto alucinógeno dos “policy makers” provou-se tão imediatamente enganosa, quanto as incursões de Piketty sobre os conceitos de Riqueza e Capital em seu tão falado livro “O Capital no Século XXI”.

Sem criatividade, os economistas repisam em seus conceitos, fazendo da sociedade seu laboratório alquímico e do cotidiano sua retorta mágica pela qual o “auto-engano” enobrece as rodadas de testes econométricos exigidos pela academia para dar força ao discurso, inexprimível em palavras, ininteligível até pelos próprios colegas da “classe”. Valem sim, para si, os títulos e distinções que tornam “O Economista”, oráculo fundamental de tudo aquilo que se possa explicar, desde que “ceteris paribus”.

Carlos Lessa em momento de brilho no documentário  “Um Sonho Intenso”, bem resume o papel acessório do “fato econômico” para a analise da sociedade, quando diz: “estou dando a cultura, porque a economia sozinha não anda para lugar nenhum”. Não há que se complementar, nada explica mais os fenômenos econômicos do que a cultura e a história. Dostoievski, Machado de Assis e Honoré Balzac são exemplos literários tão mais ricos do que as teses econômicas empoeiradas cuja escrita pobre espanta qualquer autodidata diligente que encontra mais “Economia” em “Ilusões perdidas” do que nas milhões de páginas dos trabalhos que concederam prêmios Nobel aos economistas.

Nem perturba os sentidos, o fato de que o verso final da composição “Cotidiano 2°” de Vinicius de Moraes, cantada por Toquinho explique mais sobre a desindustrialização Brasileira do que a descuidada “Macroeconomia Novo-Desenvolvimentista”. Verso esse que desbanca, inclusive, todas as linhas escritas pelos analistas políticos do “Lulismo”, ao fornecer poética explicação para dissolução da alma ante ao cotidiano, tal qual ocorre com a constituição de 1988, despedaçada e remendada por medidas provisórias de ajuste fiscal que se tornaram eternas.

De igual valia, as Sete Facas do poema de Carlos Drummond de Andrade cortam sem serra o peito de quem vive “no mundo vasto mundo”. De raridade apreciável, são os versos cantados pelo grupo Racionais MC sobre o massacre do Carandiru em “Diário de um detento”, discurso bem mais límpido do que qualquer aventura pelas construções hipotéticas do tal “produto potencial”, bem classificadas por Belluzzo como “jogo de futebol sem bola”, por eliminarem da Economia Capitalista seu caráter cíclico, aspecto de um Carandiru sistêmico em que as pessoas são presas e libertas pelo dinheiro, encerrando no banho diário de sangue na “ciranda” da materialização da felicidade desde doses crescentes de consumo, antidepressivos e calmantes que presenteiam o sujeito moderno com um forte sossega leão, prometido por Carmen Miranda ao mulherengo da música “Camisa Listrada”.

Deve-se lembrar, pois, que o “fato econômico” estilizado pelos dados analisados pelos economistas são impressões pouco fieis da realidade social, tão míopes quanto confusos, tais fatos acenam para a ocorrência de fenômenos sociais cuja compreensão é impossível sem a história e a cultura. É impossível entender o Brasil se deixado ausente da análise Gilberto Freyre, Florestam Fernandes, ou Sergio Buarque de Holanda. É de todo inútil verificar as marcas tristes da pobreza no nordeste, sem colecionar o relato de Graciliano Ramos em “Vidas Secas”. Não há sentido em falar de “favela”, “periferia”, se não forem visitados os filmes “Central do Brasil”, ou “Cidade de Deus”.

O que querem os senhores da “Ciência triste” quando envolvem seu embolado discursivo na explicação do “atual”, sem passear por “Macunaíma” de Mario de Andrade, ou “Menino Mimado”, música do rapper e sambista “Criolo”? O que conta melhor o cotidiano, a álgebra pouco preocupada dos Economistas na construção dos índices de desigualdade, ou “Menor Abandonado” de Zeca Pagodinho? Além disso, quem lê a Economia dos economistas? Senão o financista preocupado de que sua opinião seja reafirmada pelo jornalista no periódico cotidiano?

Um fato ilustra as rancorosas intenções dos economistas, investindo contra a realidade, marcando à mercado um “elogio à loucura”, do que os discursos durante o ano pandêmico. Nada tão econômico quanto a contagem das vítimas do vírus mortal em termos do déficit e da dívida pública. Nada mais humano do que as falhas renitentes do saber econômico em adivinhar o futuro. Tão logo, muito humano o desejo por uma “Economia Popular” que se proponha ao retorno às raízes de uma “Critica da Crítica”. Quem poderia imaginar, na aturdida sinfonia da metrópole moderna que a religião do capitalismo teria apóstolos tão infiéis? Os economistas desconfiam de suas teorias até que essas estejam bem longe da realidade, guardadas no olimpo do saber, afastadas do mundo concreto, aprisionadas no Jardim dos Deuses de Epicuro.

A razão econômica apodrece feito escada velha, caindo pelas tabelas, enquanto o mundo explode de humanidade, tão fatalista, quanto improvável. Real e inacreditável! São pulsantes as exigências sociais, as controvérsias políticas, o esmagamento do espaço pelo tempo. E tem gente “econômica” que ainda se preocupa com os desvios da inflação em relação à meta. O que isso diz além de nada?

A escassez distributiva de riqueza medra e abunda, enquanto os apóstolos da razão econômica permanecem aflitos quanto aos desvios pouco ordenados da realidade em relação à distribuição “anormal” dos frutos da propriedade e do progresso técnico, “naturalmente” privatizada pela via da violência do dinheiro, opúsculo do animal social capitalista.


[1] Originalmente publicado pela Revista Contrassenso do DCE da FACAMP

[2] Graduado em Economia pela FACAMP, Mestrando em Desenvolvimento Econômico pelo IE/Unicamp e Pesquisador do Núcleo de Estudos de Conjuntura da FACAMP (NEC/FACAMP)

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