O 18 de Brumário de Jair Bolsonaro, por Raul Milliet Filho

Victor Hugo foi um dos que não deram trégua ao sobrinho de Napoleão. Dizia ele: "Como é possível que a França tenha caído num golpe pelas mãos de um homem tão idiota, como é possível isso?"

do Deixa Falar

O 18 de Brumário de Jair Bolsonaro

por Raul Milliet Filho

Não é usual mesmo para um gênio como Marx, antever em cerca de 170 anos um perfil como o de Jair Bolsonaro. Entretanto o filósofo alemão conseguiu o que se supunha impossível. Nada mais parecido com Luis Bonaparte, sobrinho de Napoleão, que Messias Bolsonaro. Este último, psicopata, charlatão, idiotizado, querendo recriar uma invenção fantasmagórica que seria a ressurreição de Emilio Garrastazu Médici e de Carlos Alberto Brilhante Ustra. O mandante e o torturador, autor do livro de cabeceira do capitão presidente.

Em 1848 cai a Monarquia Francesa e o governo provisório organiza um processo político eleitoral, sendo eleito Luis Bonaparte, que vence as eleições por 5.434.226 votos contra 1.448.107 votos conferidos ao General Cavaignac. Em dezembro de 1851 Luis Bonaparte decreta o estado de sítio e lança o terror em Paris e outras cidades francesas.

“O 18 de Brumário de Luis Bonaparte” foi um artigo encomendado e publicado pela revista alemã Die Revolution.

Entre dezembro de 1851 e março de 1852, no calor dos acontecimentos, Marx escreveu o que lhe fora encomendado.

O 18 de Brumário, entra para a história da bibliografia do autor de O Capital como um livro de grande envergadura. Nele, Marx desenvolve, com um estilo próprio dos escritores e pensadores notáveis, uma análise de conjuntura que abre caminho para o conceito de bonapartismo, antecipando o que Gramsci viria a cunhar como cesarismo, numa situação de ausência de hegemonia das classes dominantes/dirigentes.

 

A burguesia tem frações que convivem em concorrência muitas vezes severas. E em determinados momentos não consegue afirmar a sua própria dominação.

Nesse trabalho, são desenvolvidas teses fundamentais do materialismo histórico: a teoria da luta de classes e da revolução proletária, a doutrina do estado e da ditadura do proletariado. Destaca-se a conclusão de Marx sobre a questão da atitude do proletariado com relação ao Estado burguês: “Todas as revoluções aperfeiçoavam essa máquina ao invés de destruí-la”. A questão do campesinato, o papel dos partidos políticos e a caracterização profunda da essência do bonapartismo são outros pontos integrantes dessa obra.

18 de Brumário representa a alteração dos meses do ano, levada a termo pelos jacobinos no apogeu da Revolução Francesa, alterando o calendário.

Luis Bonaparte assume como presidente da Segunda República de 1848 a 1851 e imperador de 1852 até 1870.

Com a derrota na batalha de Sedan, durante a Guerra Franco-Prussiana, em setembro de 1870 chegou ao fim o império do sobrinho de Napoleão. Napoleão III parte para o exílio na Inglaterra, onde morre três anos depois. Cunhado pelo consagrado literato Victor Hugo como “Napoleão, o Pequeno”, a estrela desse personagem tinha seu destino definido para a posteridade.

Comuna de Paris, 1871: O assalto ao céu (segundo Marx)

Como resultado da derrota francesa na Guerra Franco-Prussiana e da organização do proletariado parisiense, ocorre a implantação da primeira tentativa de criação de um governo socialista: a Comuna de Paris, que atingiu outras cidades francesas como Toulouse, Marselha e Lyon.

Mesmo tendo uma breve duração, de 18 de março a 28 de maio de 1871, a Comuna de Paris permaneceu na memória coletiva do movimento operário internacional, sendo sua experiência evocada na Revolução Russa, na Revolução Alemã e em várias outras subsequentes.

Nunca é demais lembrar das medidas tomadas pela Comuna de Paris:

– controle de preços de gêneros alimentícios;

– ampliação dos prazos para o pagamento dos aluguéis;

– fixação de remuneração mínima dos salários dos trabalhadores;

– medidas voltadas para a melhoria nas condições de habitação popular;

– adoção de medidas de proteção contra o desemprego;

– criação do Estado laico, através da separação entre Estado e Igreja;

– administração das fábricas da cidade feita pelos operários (autogestão);

– administração do governo municipal de Paris feita pelos próprios funcionários públicos (autogestão);

– estabelecimento de ensino gratuito para todos.

Agora, não é difícil depreender como o capitão Bolsonaro se encaixa nesta trama.

Luis Bonaparte causou espécie não somente na França, mas em vários países da Europa e nos EUA.

Colecionou desafetos e apelidos. Como já dissemos, Victor Hugo foi um dos que não deram trégua ao sobrinho de Napoleão. Dizia ele: “Como é possível que a França tenha caído num golpe pelas mãos de um homem tão idiota, como é possível isso?”

“Um louco tomou o poder na França, mas não se sabe por quanto tempo.” Muitos franceses riram de Luis Bonaparte, seguindo a seara das observações de Victor Hugo.

Marx escreve acompanhando a conjuntura, antecipando o que viria a acontecer. Em dezembro de 1852, Luis Bonaparte levanta o estado de sítio, efetuando logo após um golpe que restaura a monarquia.

O primeiro parágrafo do “18 Brumário de Luis Bonaparte” é conhecido: “Em alguma passagem de suas obras, Hegel comenta que todos os grandes fatos e todos os grandes personagens da história mundial são encenados, por assim dizer, duas vezes. Ele se esqueceu de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa (…) Os homens fazem a sua própria história; contudo não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram. A tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem estar empenhados em transformar a si mesmos e as coisas, em criar algo nunca antes visto, exatamente nessas épocas de crises revolucionárias, eles conjuram temerosamente a ajuda dos espíritos do passado, como emprestando seus nomes às suas palavras de ordem, o seu figurino, a fim de representar, com essa venerável roupagem tradicional, e essa linguagem tomada de empréstimo às novas cenas da história mundial. (…) A Revolução de 1848 não descobriu nada melhor para fazer do que parodiar, de um lado, o ano de 1789, e, de outro, a tradição revolucionária de 1793-95.”

Marx estabelece uma relação do sobrinho com o tio.

Voltemos ao corifeu da filosofia da práxis (como o chamou Gramsci nos Cadernos do Cárcere): “Mas o que rondou de 1848 a 1851 foi tão somente o fantasma da antiga revolução (…) Indo até o aventureiro que ocultou os seus traços triviais e repulsivos sob a férrea máscara mortuária de Napoleão.”

Uma população que supunha ter alcançado as alavancas necessárias para avançar sofre, repentinamente, um baque, vendo ressurgir antigas nuvens, velhos calendários, e diante de tamanho retrocesso voltam velhos protagonistas, antigas lideranças, que pareciam ter se decomposto há muito tempo.

Herbert Marcuse num prólogo a esta obra é ferino: “Isso é cômico, mas a própria comédia já é a tragédia, na qual tudo é jogado fora e sacrificado. Tudo ainda é século XIX: passado liberal, pré-liberal. A figura do terceiro Napoleão, que Marx ainda acha ridícula, há muito já deu lugar a outros políticos ainda mais terríveis; as lutas de classe se transformaram e a classe dominante aprendeu a dominar.”

Nada mais parecido com o sobrinho do séc. XIX na França do que o capitão no séc. XXI no Brasil.

O que é o bonapartismo?

Em determinados momentos a burguesia não consegue afirmar a sua própria dominação, não dando sequência aos seus próprios interesses. Assim pode-se dizer que Luis Bonaparte deu um golpe contra a burguesia para salvar o capitalismo.

A classe burguesa, quando necessário, terceiriza o poder.

O estado de compromisso analisado por Marx pode ser identificado em várias conjunturas históricas. Um compromisso muitas vezes a contragosto para as classes dominantes e dirigentes, mas necessário para seus interesses econômicos e políticos.

O golpe de Luis Bonaparte cria as condições para a construção do bloco histórico da burguesia.

No estado de compromisso, verifica-se uma autonomia na qual o representante dos interesses das classes dominantes, de maneira conflitante, salvaguarda as estruturas sociais em presença.

Engels, em seu livro A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, afirmou que o meio social degradado gera uma consciência social igualmente degradada.

Cabe uma pergunta: O que é o governo de Jair Bolsonaro, senão isto?

Como no nazifascismo, forma-se uma tropa de choque baseada no lumpesinato, bastante semelhante às milícias, militares de baixa patente e segmentos fanatizados de cultos religiosos, sem falar na classe média temerosa de seu empobrecimento.

A burguesia governa sem os trabalhadores, mas claramente contra eles. Luis Bonaparte e Jair Bolsonaro representam os interesses da burguesia financeira e do grande capital advogando princípios pseudonacionalistas e populistas de direita.

O epitáfio de Luis Bonaparte e Jair Bolsonaro

Luis Bonaparte, Napoleão III, já teve o seu epitáfio escrito por Victor Hugo e por Karl Marx.

Seu lugar no lixo da história não poderia ser escrito com maior competência.

Para Marx, os atos individuais não ocupam papel central no motor da história e sim a luta de classes, responsável por produzir as transformações mais importantes.

A ironia de Marx está presente até no título do “18 Brumário”. Em 9 de novembro de 1799, Napoleão, o tio, também havia dado um golpe de Estado. Essa data correspondia ao 18 do mês de Brumário, uma alteração levada a efeito pela Revolução Francesa de acordo com a vontade dos jacobinos.

Ao denominar a obra de 18 de Brumário de Luis Bonaparte, Marx, ironicamente, indica que o golpe dado por Napoleão III foi apenas uma cópia canhestra daquele encetado por seu célebre tio.

Mas qual será o epitáfio de Messias Bolsonaro? E por quem será feito?

Enquanto Luis foge, com o rabo entre as pernas, para a Inglaterra, escapando por pouco da Comuna de Paris, que certamente não o pouparia; Jair Messias, psicopata genocida, não está livre de enfrentar revoltas populares do peso da Comuna de Paris e as penas afiadas e talentosas de escritores e compositores brasileiros.

Lembrando apenas do mestre Paulinho da Viola, que, em resposta ao racista de plantão, retrucou afirmando que os negros devem ser avaliados pelos seus batuques, letras e melodias e não em arrobas.

Quem viver, verá, pois como disse Daniel Bensaïd, no mesmo momento, na experiência da derrota, Gramsci soube em seus Cadernos do cárcere, tirar as consequências da decisão intrinséca do conflito: “Só se pode prever a luta”. Dai resulta uma noção da política como estratégia e uma noção do erro como risco inelutável da “decisão”.

Em seu voto pelo impeachment de Dilma Rousseff, Bolsonaro não poupou elogios a Eduardo Cunha e ao torturador Ustra que massacrou na cadeia a presidenta Dilma, vítima do golpe que se seguiu.

Raul Milliet Filho é Historiador, criador e editor responsável deste blog, mestre em História Política pela UERJ, doutor em História Social pela USP. Como professor, pesquisador e autor prioriza a cultura popular. Gestor de políticas sociais, idealizou e coordenou o Recriança, projeto de democratização esportiva para crianças e jovens. Autor de “Vida que segue: João Saldanha e as copas de 1966 e 1970” e do artigo “Eric Hobsbawm e o futebol”, dentre outros. Dirigiu os documentários: “Quem não faz, leva: as máximas e expressões do futebol brasileiro” e “A mulher no esporte brasileiro”.

Redação

1 Comentário

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  1. Muito bom artigo. Apenas gostaria de contribuir:
    1. Foi preciso uma tragédia pra Napoleão III cair, no caso uma guerra. Pelo visto vamos no mesmo caminho, mas com uma catástrofe sanitária;
    2. Considero um erro terrível subestimar o Mito. Tenho pra mim que ele pode ser tudo, menos burro. A resiliência da sua base de aprovação é a minha prova. Faça o que fizer Bolsonaro ainda segura essa gente;

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