O 22 de Julho norueguês e o interdito do Não Matarás, por Arnaldo Cardoso

22 de julho de 2011, Breivik, um norueguês de 33 anos, morador da capital, vestido com um uniforme de capitão, assassinou 77 pessoas, em sua maioria adolescentes.

O 22 de Julho norueguês e o interdito do Não Matarás

por Arnaldo Cardoso

Passados oito anos do dia em que a sociedade norueguesa viu ser escrita uma das mais tristes páginas da sua história, com sangue jovem feito jorrar brutalmente por um de seus cidadãos, Anders Behring Breivik, a data se instalou permanentemente no calendário do país e deve ser lembrada não só por eles, mas por todos nós, pois alerta sobre a gravidade da banalização do interdito legal, moral e religioso do Não Matarás.

Naquele 22 de julho de 2011, Breivik, um norueguês de 33 anos, morador da capital, vestido com um uniforme de capitão, assassinou 77 pessoas, em sua maioria adolescentes.

Atônitos, nos dias e semanas que se seguiram, os noruegueses se perguntaram por que aquilo havia acontecido. Que motivos poderiam provocar uma ação tão brutal? Por que dezenas de adolescentes, estudantes, se tornaram alvo de tanto ódio?

Com o autor réu confesso e avaliado como plenamente responsável e consciente dos seus atos, as investigações que duraram mais de um ano até a conclusão do julgamento evocaram questões profundas sobre os valores fundamentais para a existência e manutenção das sociedades.

Relembrando aqui os passos de Breivik, depois de detonar uma bomba nas proximidades do escritório do Primeiro Ministro, no centro de Oslo, matando oito pessoas, ele seguiu para Utoya, uma pequena ilha a oeste da capital, onde se encontravam centenas de jovens num acampamento que anualmente era organizado pelo Partilho Trabalhista.

O massacre em Utoya durou 72 minutos e resultou na morte de 69 pessoas entre instrutores e estudantes, ferindo também outras dezenas de pessoas.

O autor do massacre disse em depoimento que queria salvar a Noruega. Poucas horas antes do primeiro atentado, Breivik enviou um manifesto expondo precariamente sua ideologia política em mais de 1500 páginas para cerca de mil destinatários. No manifesto condenava o multiculturalismo e o “marxismo” supostamente orientadores da política em seu país. 

O término do julgamento e condenação de Breivik a 21 anos (prorrogáveis) de prisão encerraram os acontecimentos daquele fatídico 22 de julho, mas, além da profunda dor remanescente em familiares e amigos das vítimas e da estupefação diante do contraste entre a insofismável mediocridade do assassino e a enormidade do mal que produziu, o que de mais sombrio se revelou foi a indiferença dele com o valor da vida humana.

Desde a criação do conceito de banalidade do mal, pela filósofa alemã Hannah Arendt após a experiência de assistir ao julgamento do nazista Adolf Eichmann, ele é comumente invocado para explicar casos de massacres e outros atos brutais. Mas no caso de Breivik, que não operou sob o anonimato de uma burocracia, não agiu cumprindo ordens de uma organização, partido ou seita, é ainda mais perturbador. Ele mesmo invocou para si uma missão grandiosa, “salvar a Noruega” e, por extensão toda a Europa, de uma ameaça que, pela gravidade, exigia a excepcionalidade de sua ação, e para realiza-la vestiu-se como um combatente, um capitão. 

Em artigo de 2015, refletindo sobre o massacre de Utoya, o escritor norueguês Karl Ove Knausgärd lembrou que somente no meio das Forças Armadas, e sob a situação de exceção que é a guerra, o assassinato é tido como aceitável e legitimado socialmente, quando um inimigo representa uma ameaça à sociedade nacional.

Hoje é assustador reconhecer o quanto tem sido banalizado o interdito de não matar, quando indivíduos ou grupos se concedem o direito de nomear inimigos e se dispor a eliminá-los, escorando-se em símbolos mal apropriados, portadores de valores como honra, valentia e grandeza. É oportuno lembrar que o nazismo manejou ardilosamente símbolos nacionais e se serviu da tática de eleger inimigos do povo alemão, bodes expiatórios, e a partir disto, encorajar a matar.

Desde 2011, muito já se escreveu sobre o massacre de Utoya, sendo um dos trabalhos mais elogiados o minucioso livro “Um de nós” de Äsne Seierstad. Também dois filmes foram produzidos, “Utoya – 22 de julho” de Erik Poppe e “22 de julho” de Paul Greengrass (este último disponível na Netflix). Elemento destacado em todas essas produções é o desprezo de Breivik pelas vidas que pôs fim.

Após observar o quão perturbador foi para a sociedade norueguesa a descoberta de que em seu interior tenha se desenvolvido uma mentalidade tão indiferente à vida humana, somos levados a refletir sobre a gravidade da situação de sociedades onde a inimizade, o ódio e a perseguição estão sendo estimuladas por governantes que alcançaram o poder explorando esses vis sentimentos em seus discursos, dos quais são notórios os casos de Estados Unidos, Itália, Brasil, entre outros.

No tribunal em Oslo, Breivik adentrou no recinto fazendo uma conhecida saudação de extrema-direita e se desculpou aos supostos apoiadores de seu ato, por não ter “matado mais”, o que provocou a ira de uma promotora e a proibição de continuar seu discurso de ódio.

Quando deslocamos o olhar para avaliar a situação de sociedades como a brasileira, onde fato amplamente veiculado na campanha eleitoral de 2018 foi a semelhante frase proferida pelo candidato, hoje presidente do país, ao elogiar a ditadura que perseguiu, torturou e matou milhares de brasileiros entre os anos de 1964 e 1985: “Deveria ter matado mais” e usou como principal símbolo de sua campanha o gesto de uma arma em punho, o problema ganha outras proporções e nos sugere o conceito de necropolítica para sua interpretação, desenvolvido pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, define a necropolítica como “formas contemporâneas que subjugam a vida ao poder da morte”. O autor diz ter buscado dar conta “das várias maneiras pelas quais, em nosso mundo contemporâneo, as armas de fogo são dispostas com o objetivo de provocar a destruição máxima de pessoas e criar ‘mundos de morte’”.

Em recente artigo assinado pelas pesquisadoras Débora Diniz (brasileira) e Giselle Carino (argentina), publicado pelo El País, as autoras utilizam o conceito de necropolítica para tratar da ameaça permanente sofrida por ativistas, especialmente mulheres, que atuam na defesa de direitos humanos na América Latina onde “as relações de inimizade se movimentam pelo direito de matar, ‘estabelecem cortes de aceitabilidade para tirar uma vida’, instaurando os regimes de medo e precariedade.” As autoras concluem o referido artigo denunciando a instauração das táticas de exclusão e perseguição no próprio funcionamento do Estado e a necropolítica como regime de governo.

O colapso de toda a humanidade pôde ser visto no sorriso com que Breivik ouviu sua sentença de condenação no tribunal em Oslo. O mesmo desprezo com a vida humana está presente em políticas de perseguição de minorias e populações vulneráveis, de abandono e expulsão de imigrantes, de corte de recursos para a saúde, a educação e a seguridade social como ocorrem hoje em diferentes graus no Brasil, Estados Unidos, Itália e outros países onde avançam variantes da necropolítica, com líderes medíocres e autoritários invertendo mecanismos sociais que normalmente impediam o assassinato, passando agora a promovê-lo.

Esses líderes e seus apoiadores parecem incapazes de compreender que a segurança de uma sociedade depende primeiramente da preservação dos laços entre as pessoas, que permitem nos reconhecermos no outro e reafirmar o maior dos mandamentos: Não matarás!

Arnaldo Cardoso, cientista político, pesquisador e professor universitário.

Redação

1 Comentário

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  1. Professor, a Democracia e não apenas a esquerda PT, perdeu e continua perdendo para Fakes New e um exército de robôs nas redes sociais, como já ficou provado por várias investigações.

    A Democracia perdeu com a facada Fake.
    A Democracia perdeu com a mamadeira de piroca e kit gay.
    O Presidente vem até hoje postando Fake New, que é reproduzido por um exército de robôs. No carnaval foi o tal ” mijo dourado”.
    O Presidente reproduz cenas de filmes como se fosse alguma coisas “vazada comprometedora”

    Recentemente surgiu a figura do pavão misterioso, espalhando uma série de mentiras que eram reproduzidas em massa por robôs.
    Fazer uma análise das esquerdas sem levar esses fenômenos em consideração, não considero justo.
    Na realidade, todos que não tem simpatia por Bolsonaro estão anestesiados e desarticulado, sem saber bem o que fazer. E não é apenas as esquerdas.
    Não estamos lutando uma luta igual.
    Mas se Deus quiser a Democracia vai sair desse “transe robótico” e vamos vencer essa batalha.

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