O avesso do mesmo lugar, por Ana Laura Prates

O avesso do mesmo lugar

por Ana Laura Prates

Há coisas na vida que não escolhemos; ao contrário, somos por elas escolhidos. É o caso da minha relação com a escola de samba Mangueira. Paulistana da gema e criada em uma cidade do interior de São Paulo, por mais que me esforce, não consigo lembrar em que momento fui invadida por esse mar verde e rosa. A Mangueira não foi um rio que passou em minha vida, como canta Paulinho da Viola sobre a Portela, e sim uma tsunami.

Consigo encontrar algumas pistas de minha paixão pelo carnaval: na verdade não sou tão paulistana assim, afinal, minha avó materna de família mineira era carioca e contava histórias sobre os carnavais antigos do Rio. Mas era o carnaval burguês, com corso, lança perfume e muita Chiquinha Gonzaga. Já minha mãe era da turma da bossa nova, mas não perdia um desfile pela TV. Foi ela quem pela primeira vez me disse que assistir ao desfile na avenida tinha sido uma experiência única em sua vida. Também me lembro dela dizendo que a combinação verde e rosa, que eu quando criança achava brega, era a da Mangueira. Há também, e talvez principalmente, a relação de meu pai com o movimento negro e com a capoeira, e o fato dele ter levado minha mãe no que então chamavam de favela. Não sei se foi na Mangueira. Será?

Lembro-me que desde muito pequena eu tentava ficar acordada para assistir aos desfiles, junto com minha mãe, embora ela não fosse mangueirense. Acho que torcia pela Beija Flor, escola com a qual também flertei depois de assistir ao extraordinário desfile Ratos e Urubus de 1989, criado pelo fantástico Joaozinho Trinta. De fato, a Portela com sua elegância azul e branca, que também me encanta enormemente, certamente teria sido mais compatível com nossos gostos e jeitos. Eu gostava também da Vila Isabel, por conta do Noel Rosa e do posicionamento político do Martinho da Vila. E da Estácio, por amor ao Luiz Melodia. Eu teria boas razões para ter escolhido essas ou outra escola, dentre tantas e com tanta história.

Mas o fato inexplicável, mesmo tendo sempre adorado as músicas de Cartola, é que a Mangueira me levou em sua onda e quando dei por mim já estava aos pés da “derradeira estação”, o “celeiro de bambas”, “onde se junta o passado o futuro e o presente, onde o samba é permanente”, “onde a cabrocha pendura a saia no amanhecer da quarta-feira”, “onde o Rio é mais baiano”. Fui escolhida e, confesso, não resisti. E foram anos, muitas vezes passando a madrugada sozinha assistindo ao desfile, outras colocando o despertador apenas para ver a Mangueira passar. Para mim ela era o resumo de nossas contradições, mesclando beleza, dor, história, tradição e revolta. E assim se foram os anos, torcendo e sofrendo, e passando tardes e mais tardes da quarta-feira de cinzas com taquicardia durante a apuração. Não era algo de que eu me orgulhasse exatamente; ao contrário, em algumas fases da minha vida, cheguei a me envergonhar por considerar essa minha inclinação uma concessão fútil e alienada.

Graças a esse ponto de vergonha – índice do desejo, é claro – é que demorei tanto tempo para decidir desfilar. Confesso que, culpada, me deixei submeter por um discurso machista, fantasiado de pensamento crítico de esquerda, lembrando constantemente das relações das escolas de samba com o tráfico de drogas e com as empresas, e de que o carnaval há muito havia se rendido ao templo do consumo que explorava a sensualidade feminina de modo vulgar, ajudando a criar a imagem do Brasil como o país das mulatas e da promiscuidade. Eu sucumbia em mente e comportamento, mas meu coração continuava batendo no ritmo dos tamborins. E ao longo dos anos, fui acompanhando e perdendo vários desfiles imperdíveis com enredos dos sonhos: Tom Jobim (“eu sou a Mangueira em Tom maior”), Tropicália (“atrás da verde e roda só não vai quem já morreu”), Chico Buarque (“hoje o samba saiu pra falar de você”), Maria Betânia (“não mexe comigo que eu sou a menina de Oyá”). Do sofá da sala, eu “batia palma com vontade”, fazendo de conta que era turista.

Testemunhei, finalmente, a libertação desta minha submissão voluntária no texto ‘Deixa a menina sambar em paz’, no carnaval de 2018. Eu já estava pronta para suportar os paradoxos da brasilidade quando tomei conhecimento, ainda em 2018, do samba que havia sido o vencedor para o desfile da Mangueira em 2019 e, através dele, do seu enredo ‘História para ninar gente grande’ concebido por Leandro Vieira. Foi comovente entrar em contato, nesse momento da história do Brasil, com algo tão impactante. A letra do samba enredo me fez escrever sobre o anonimato crônico de nossos mortos, desde as nações indígenas, os desaparecidos na ditadura, até as valas comuns para nossos jovens negros das periferias; anonimato que encobre o inominável “do que não tem governo nem nunca terá”. E mais uma vez, fui convocada pelo desejo, e desta vez, não recuei. Assim que escutei aquele samba, sabia que entraria na avenida.

A ideia de que a história oficial é escrita para adormecer a população, hipnotizando-a, revela, pelo avesso, o intuito da escola em despertá-la com seu samba: “o avesso do mesmo lugar”. Como psicanalista, não pude deixar de pensar em uma superfície topológica usada para representar o próprio inconsciente, chamada banda de Moebius. Tendo apenas uma face, ela contradiz a ideia pré-concebida e dualista de avesso e direito.

Acho que Vieira, do modo brilhante, levou para a avenida uma interpretação apofântica, da ordem da revelação. Qual um psicanalista, ele interpretou o inconsciente da nação adormecida e anestesiada por fake News e perplexa com a queda do semblante do “homem cordial” – lê-se bajulador e escravocrata sob a máscara de conciliador e tolerante. A Mangueira nos revela, ainda – através do samba composto por Deivid Domênico, Tomaz Miranda, Mama, Marcio Bola, Ronie Oliveira e Danilo Firmino – que esse lugar paradoxal é a luta e que é lá que a gente se encontra. Essa interpretação se dá através do corte e da nomeação do que foi desnomeado pela história oficial. Como podemos ler na sinopse: “o dizer que o Brasil foi descoberto e não dominado e saqueado; ao dar contorno heroico aos feitos que, na realidade, roubaram o protagonismo do povo brasileiro; ao selecionar heróis “dignos” de serem eternizados em forma de estátuas; ao propagar o mito do povo pacífico, ensinando que as conquistas são fruto da concessão de uma “princesa” e não do resultado de muitas lutas, conta-se uma história na qual as páginas escolhidas o ninam na infância para que, quando gente grande, você continue em sono profundo”.

De forma geral, a predominância das versões históricas mais bem-sucedidas está associada à consagração de versões elitizadas, no geral, escrita pelos detentores do prestígio econômico, político, militar e educacional – valendo lembrar que o domínio da escrita durante período considerável foi quase que uma exclusividade das elites – e, por consequência natural, é esta a versão que determina no imaginário nacional a memória coletiva dos fatos”.

A letra do samba cita, por exemplo, o nome de Luiza Mahin, trazida para o Brasil como escrava, pertencente à tribo Mahi, da nação africana Nagô e foi protagonista das revoltas de escravos na Bahia, nas primeiras décadas do século XIX. Recusou o batismo e a doutrina cristã, e é mãe de Luís Gama (1830-1882), poeta e um dos maiores abolicionista do Brasil. Cita também Chico da Matilde, o Dragão do Mar, pioneiro abolicionista do Ceará que se recusava a transportar escravos para os navios negreiros. E Dandara, a esposa de Zumbi dos Palmares, que se suicidou para não voltar à condição de escrava. São “histórias que a história não conta”.

Mas, além da canção e da letra extraordinária do samba enredo, posso testemunhar que o desfile em si, com as alegorias, a comissão de frente, a dupla de mestre sala e porta bandeira, as fantasias, bem como a bateria compuseram um espetáculo com uma dimensão que transcendeu a brilhante intelectualidade histórica do enredo. Quem assistiu ou participou do desfile, a ele emprestando o corpo, pôde viver uma experiência cênica com uma dimensão trágica, no sentido do teatro grego, uma encenação da ordem a mostração da Outra cena do Brasil: aquela que não queremos ver. De novo, encontramos na avenida “o avesso do mesmo lugar”. Um lugar interno e externo ao mesmo tempo, que desnudou nossas vísceras e nossas “vergonhas”, que certamente não passam pela genitália desnuda de outros carnavais. A Mangueira escancarou que o mais obsceno no Brasil não é a mulata exportação, mas antes o genocídio de índios e negros e os assassinatos de mulheres e mulatos com o qual mantemos uma plácida conivência.

Os carros alegóricos eram de uma força violenta: um deles trazia os heróis emoldurados como Padre Anchieta e Duque de Caxias pisando no sangue dos índios e negros. Outro, uma réplica do Monumento às Bandeias ensanguentado, em clara alusão a uma manifestação em defesa dos Guarani Kaiowá em 2013, quando a estátua de Brecheret em São Paulo foi tomada, pintada de vermelho e pichada com os dizeres “bandeirantes assassinos”. No carro sobre os “anos de chumbo”, encontramos os dizeres “ditadura assassina” – aqui não há espaço para meias palavras – e a presença comovente de Hildegard Angel, filha de Zuzu Angel, que desfilou com a réplica de um vestido da mãe e o colar original feito com crucifixos, usado por ela para manifestar seu luto e sua luta pelo reconhecimento do Estado da morte de seu filho Stuart Angel Jones nos porões da ditadura. E o que dizer quanto ao dizer magnífico da bateria comandada pelo mestre Wesley, que toca uma marcha enquanto a letra diz “quem foi de aço nos anos de chumbo” e, como observou ainda Luiz Antônio Simas, responde com os atabaques típicos do candomblé. A bateria conta também com os timbales, instrumentos tradicionais do axé da Bahia. É a música negra vencendo a marcha militar, não sem a parada que quase faz parar o coração, enquanto toda a avenida canta junto: “Brasil chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês”! Como o próprio mestre Wesley comenta em uma entrevista a Romulo Tesi: “É como um manifesto da bateria”.

Finalmente, a menção explícita à vereadora Marielle Franco, assassinada em março de 2018, com fortes indícios de envolvimento de milicianos não é apenas um detalhe; ao contrário, aponta para a continuidade dos processos de exclusão e massacre daquelas que insistem em levantar a voz contra uma sociedade machista, racista e injusta. Em um momento tão delicado da história de nosso país, com inúmeros retrocessos em relação a políticas públicas de inclusão social e de combate à desigualdade, em um momento de proliferação do discurso do ódio e da intolerância, a coragem da Estação Primeira de Mangueira nos despertou e nos fez levantar do berço esplêndido, lavando com lágrimas a nossa alma. Como último ato deste desfile histórico, encontramos nossa bandeira, aquela que alguns gritaram que jamais seria vermelha, colorida de verde e rosa, cumprindo a profecia de Caetano Veloso quando chamou a Mangueira de “estação primeira do Brasil”. No lugar do ufanismo tacanha ou do “sangue retinto pisado” do nosso povo, as cores e os sons da nossa origem e da nossa alegria, aonde se lia: ÍNDIOS, NEGROS E POBRES. O país que não está no retrato, enfim revelado publicamente na avenida. Afinal, “são verde e rosa as multidões”.

Não posso dizer que tenha realizado um sonho de infância, porque a realidade foi muito melhor. Ou talvez sim, lembrando que Freud dizia que os melhores sonhos são os que nos fazem despertar: o avesso do mesmo lugar. A Outra cena do sonho! De fato, posso dizer que a Mangueira me acordou de certa letargia covarde, impulsionando os pés para voltarem às ruas.

E, bem mais do que isso, a Mangueira convocou a Brasil a acordar desse pesadelo!

(Ana Laura Prates, março de 2019)

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