O bolsonarismo e a ausência da perspectiva histórica dialética, por Cesar Calejon

A relação dialética significa que o ambiente, o organismo e os fenômenos físicos tanto modelam os animais irracionais e racionais, sua sociedade e cultura, quanto são modelados por eles.

O bolsonarismo e a ausência da perspectiva histórica dialética

por Cesar Calejon

Uma característica inata ao bolsonarismo, que permitiu a ascensão desta filosofia na sociedade brasileira porque também encontra respaldo entre as classes mais abastadas do país, é a ausência de uma compreensão ampla e histórica de como as sociedades civis modernas vêm se organizando desde a primeira revolução industrial.   

Explicada de forma simples e sem citar quaisquer teóricos, biólogos, neurocientistas ou filósofos nominalmente, esta visão histórica e dialética permite ao sujeito entender o desenvolvimento da vida (e a formação dos indivíduos e da sociedade em geral) como o resultado de uma interação complexa e dialética entre os seus próprios genes e o funcionamento da sua estrutura social (cultura, neste contexto). 

Ou seja, a relação dialética significa que o ambiente, o organismo e os fenômenos físicos tanto modelam os animais irracionais e racionais, sua sociedade e cultura, quanto são modelados por eles. Uma simples bactéria, por exemplo. Caso você coloque-a em uma gota d’água e depois adicione um pouco de açúcar na água, ela vai nadar em direção à parte doce da gota. Portanto, ela escolhe, em um nível muito básico, um ambiente e evita o outro. Ao escolher o ambiente, ela também o altera e é alterada por ele. Desta forma, existe uma relação dialética neste sentido. 

Isso se aplica para bactérias, ratos ou humanos. É a forma como a vida se organiza socialmente no planeta em basicamente todos os níveis em que se apresenta: nós temos genes e fazemos escolhas que orientam a formação de paradigmas sociais e de condições materiais (de produção da vida) que também influenciam, na mesma medida e de forma muito complexa, a nossa carga genética e o uso que fazemos do nosso arbítrio. 

Assim, a cultura é o principal elemento constituinte dos cidadãos por meio da relação dialética que existe entre a atuação de cada pessoa, o ambiente no qual esta vive (e se desenvolve) e o seu destino final. Ninguém é “de bem” ou “do mau” antes de interagir com a carga cultural que recebe ao longo de toda a vida.  Fundamentalmente, durante os primeiros anos do desenvolvimento infantil e da adolescência. 

Vulgarmente, afirma-se que “bandido bom é bandido morto”, por exemplo, porque esta visão de mundo avança a ideia de que existem seres humanos inferiores por natureza, basicamente. Ou seja, essas pessoas podem e devem ser eliminadas, portanto. Esta forma de perceber o mundo caracteriza o que eu chamo de Visão Biologizante. Ela sintetiza o extremo oposto da Visão Histórica, Materialista e Dialética.

Por exemplo, principalmente desde o século XVIII e o início da industrialização inglesa, os estímulos que orientaram a formação das sociedades ocidentais foram absurdamente racistas, homofóbicos e misóginos. Entre 1525 e 1866, em toda a história do tráfico de escravos para o Novo Mundo, de acordo com o Banco de Dados Transatlântico de Comércio de Escravos, 12,5 milhões de africanos foram embarcados para as Américas. Por volta de 10,7 milhões sobreviveram à temida viagem e foram desembarcados na América do Norte, Caribe e América do Sul. 

Deste total, aproximadamente metade veio para o Brasil. O site Slave Voyages (slavevoyages.org) tem os registros de milhares de viagens com os nomes das embarcações e seus capitães, datas, país de origem, local de desembarque, numero de escravos etc.  

O Brasil foi uma colônia e um império antes de se tornar uma república. Como ressalta com clareza a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz, em sua obra intitulada Sobre o Autoritarismo Brasileiro, estes parâmetros coloniais e imperiais forjaram práticas de racismo, elitismo, mandonismo, patrimonialismo, corrupção e desigualdade social em nossa atual república. Desconhecer ou simplesmente ignorar esta visão histórica, que permeou o desenvolvimento da nossa atual nação, implica se tornar alvo fácil para discursos de ódio ou meritocratas.

Cesar Calejon é jornalista com especialização em Relações Internacionais pela Fundação Getúlio Vargas e escritor, autor do livro A Ascensão do Bolsonarismo no Brasil do Século XXI

 

Redação

4 Comentários

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  1. Muitos países foram colônia ou monarquias absolutotistas e isto não moldou um atraso , até Portugal se livrou de sua “herança portuguesa”.
    Deve ser algo na água …

  2. Fundação Getúlio Vargas? GV foi Ditador Caudilhista Assassino Censurador Fascista que ascende ao Poder num Golpe Civil Militar. Explica muito sobre a visão do Articulista.

  3. O artigo começa muito bom mas é anulado pelos três u’ltimos para’grafos. Nota-se que o autor, apesar de utilizar-se do materialismo histo’rico dialético, tem uma visão limitada do marxismo e da ciência Histo’ria, e, ao mesmo tempo, alienada ao etnicismo e ao culturalismo exportados pelos EUA e Europa com o intuito de defender o capitalismo, o status quo. Em nenhum momento ele é capaz sequer de mencionar a dinâmica do capitalismo como bojo condutor da necessidade e consequente busca da mão-de-obra na Africa. Se assim fizesse, ele saberia que a desgraça brasileira -e mundial- é o capitalismo, não o racismo; não o fosse, a A’frica subsaariana seria um parai’so, e não o prova’vel pior continente a se viver no mundo.

    1. Obrigado, Marcio. Contudo, o racismo e o elitismo histórico são parâmetros muito mais antigos do que traduz a atual definição de capitalismo. Ou seja, estes conceitos ajudaram a formar o capitalismo e não o contrário.

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