O caso do livro didático: e se fosse o Lula?, por Roberto Bitencourt da Silva

O caso do livro didático: e se fosse o Lula?

por Roberto Bitencourt da Silva

Em mais uma de suas manifestações grotescas contra a educação, o presidente Jair Bolsonaro reverberou ácidas críticas ao livro didático brasileiro. Alegou que “os livros hoje em dia, como regra, são um montão de amontoado de muita coisa escrita. Tem que suavizar aquilo”.

Talvez o presidente almeje adotar um álbum de figurinhas como recurso didático exclusivo para o ensino da juventude. É só um chute. Vá lá saber o que se passa, a respeito, na cabeça de um sujeito tão desqualificado, emocionalmente perturbado e politicamente incompatível com o cargo de presidente como esse sr. Bolsonaro…

Interessante no caso do livro didático é que esse tipo de observação feita pelo reacionário e entreguista presidente tende a não alterar, em absolutamente nada, a opinião formada pelas classes dominantes e por significativas faixas dos estratos médios da nossa sociedade.

No mínimo concebido como um representante instrumental, que realiza as aspirações maiores daqueles segmentos sociais: avassalar o Brasil ao capital estrangeiro e aos EUA; aumentar a ultraespoliação das classes trabalhadoras; oprimir os amplos estratos populares precarizados, subempregados e desempregados; satanizar as esquerdas etc. Qualquer “bobagem” dita fora desse roteiro, pelo “capitão”, torna-se folclore político. Uma “grosseriazinha sem maiores consequências”.

Fico me perguntando: e se fosse o ex-presidente Lula? O que diriam, como reagiriam as vestais do “bom gosto”, da “elite pensante” das mídias massivas e aquelas elites pretensiosas que se arrogam a condição de “fazer o Brasil andar para a frente” – do alto de suas preocupações negocistas, com investimentos em títulos da dívida pública, especulações imobiliárias, subserviência ao imperialismo, entrega da economia ao capital internacional? O que essas classes dominantes diriam?

Me transporto para os anos eleitorais de 1989 e de 1994. Te convido leitor a esse retorno imaginativo no tempo. Um dos atributos mais anatematizados de Lula, sobretudo nessa época, na condição de candidato presidencial, girava em torno da sua escolaridade abaixo do padrão dos políticos do “alto clero”.

Era comum, particularmente entre os setores mais altos da hierarquia social e econômica do país, alegar que se tratava de um “analfabeto”, “incompetente”, “incapaz”, desapossado de meios e atributos intelectuais, que iria “destruir o Brasil com sua ignorância”, sua “falta de esclarecimento e saber”.

Agora, imaginem, somente imaginem, o sr. Luiz Inácio Lula da Silva, o ex-líder operário e sindical, então candidato – e mesmo posteriormente, como presidente – anunciar, com estridência, hipotéticos descontentamentos com os livros escolares “por apresentarem demasiadamente textos”!

Dizer que seria motivo de chacota entre as burguesias internas e razão para enorme preocupação entre as faixas mais humildes, populares ou altas dos trabalhadores e mesmo entre dilatas franjas da pequena burguesia, seria dizer o mínimo.

O que teria mudado? O tempo? O comportamento dos grupos sociais? Seguramente, do final dos anos 1980 para cá muita coisa mudou. Mas, o que não modificou foi o reacionarismo e o vendepatrismo renitente das classes dominantes brasileiras. Nunca se preocuparam com a educação! Pelo contrário, à época, desciam a lenha contra Brizola e seus Cieps!

Essas burguesias internas vivem do tráfico, com o exterior, das riquezas nacionais e do suor e desespero do Povo Brasileiro – não as chamo de nacionais, pois essas burguesias são vassalas e testas de ferro do capital estrangeiro. Ademais, são incultas, ignorantes, prezam o dinheiro acima de qualquer coisa! Viajam para a Europa e os EUA e nada aprendem!

Viagens que servem para regozijo, reforço de prestígio e, principalmente, para contrastar o subdesenvolvimento e demais mazelas brasileiras com a prosperidade e outras virtudes de outras sociedades. Nunca se responsabilizando pelas limitações e mesmo desgraças nacionais, no contraste feito atribuem a causa do nosso “atraso” à “falta de educação do brasileiro”, à virtual “incompatibilidade inata” com as luzes da civilização. Dizer que são elites econômicas iletradas e racistas é dizer pouco. Umbigocentrismo e incapacidade de contextualização são alguns traços intelectuais que as peculiariza.

Bolsonaro é o espelho das classes dominantes domésticas e de frações da pequena burguesia brasileira: apátridas, incultas, grotescas, colonizadas, submissas aos interesses do imperialismo estadunidense, que desprezam a cultura nacional e têm verdadeiro horror ao Povo Brasileiro.

O antigo receio ao pretenso “analfabeto” Lula era retórica vazia. Para embelezar a si próprias, investirem-se de uma capa iluminada. Na verdade, as classes dominantes brasileiras nunca ligaram para a educação. Como atesta o franco apoio que conferem a Bolsonaro. Diga-se, do ponto de vista técnico-formativo educacional, um sujeito completamente despreparado, obscuro. Nunca se viu alguém assim na cadeira presidencial do País. Ele ajuda a evidenciar a imoralidade e a miséria cultural, política e espiritual das nossas burguesias.

Para essas classes dominantes internas se preocuparem, efetivamente, com a educação, teriam que se reconstruir. Virar outra coisa. Por óbvio, algo impossível. Num mundo contemporâneo em que a civilização está assentada no saber metódico, na ciência e na tecnologia, os povos que possuem o domínio de seus processos e frutos encontram-se no centro de ação que rege o planeta e desbrava os caminhos futuros.

Uma civilização que dispõe já de amplas condições para promover a felicidade e a solidariedade humanas, com reduções significativas de jornadas de trabalho, de elevação da capacidade de exercício da cidadania e de emprego qualificado e não alienado, de familiaridade estendida com a produção cultural diversificada e a valorização espiritual.

Precisamente nessa civilização, em que impera um atroz e nefasto imperialismo, o capitalismo embota as possibilidades alvissareiras e incrementa relações espoliativas e hierarquizantes entre povos que permanecerão e aprofundarão o mergulho no vale de lágrimas da exclusão social crescente e da produção de bens primários e essenciais para a vida. Enquanto outros povos, a minoria – em boa medida, a “Tríade imperialista” (EUA, União Europeia, Japão), a que faz referência o economista Samir Amin –, talvez tenha possibilidades de alargar seus horizontes de vida, perseguindo expectativas já imateriais.

Nesse sentido, nos chumbar em condição absolutamente marginal nessa civilização, chamada por muitos de “sociedade do conhecimento”, destituídos de qualquer poder de ingerência nos rumos daquela e sobre nossos próprios destinos nacionais, eis a agenda de Bolsonaro e de seus adeptos – fervorosos ou mais tímidos – das classes dominantes antinacionais, incultas, cujo deus é a grana, conquistada com a entrega da Nação para a “Tríade”.

Pensando bem, Bolsonaro e sua trupe são coerentes: para o projeto destrutivo e socialmente desintegrador que possuem, saber ler e escrever arrisca até a ser habilidade cognitiva sobremodo improdutiva. A dúvida é se a adoção de um modelo educacional que priorize somente a percepção sensorial sobre figuras e imagens é capaz de gerar, ao menos, um perfil de gente com habilidade para consumir artefatos sofisticados provenientes do exterior. Promover a intensificação dos processos de marginalização do Brasil na civilização técnico-cientifica aplicada é o alvo do condomínio de poder transnacional associado e de seu títere, Bolsonaro.

Nessa perspectiva lesa pátria, como produtores não servimos. Seria autonomia demais nos assegurar condição economicamente criadora e politicamente projetiva. Com as ideias que imperam no governo e entre seus poderosos artífices e apoiadores, talvez nem para cumprir o papel de consumidores de bens prontos e tecnologicamente sofisticados prestarão as gentes brasileiras. Urge romper com as causas desse indigno horizonte.

Roberto Bitencourt da Silva – historiador e cientista político.

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