O Comício da Central em 1964 e o panorama político atual, por Roberto Bitencourt da Silva

O Comício da Central em 1964 e o panorama político atual

por Roberto Bitencourt da Silva

Dia 13 de março. Completaram-se mais de 50 anos da realização do Comício da Central, no Rio de Janeiro, em 1964. Tratou-se de grande evento político e popular promovido pelas esquerdas nacionalistas (PTB, PCB, PSB etc.) e conduzido pelo então presidente João Goulart. O Comício consistiu em símbolo da soberania popular que se almejava exercer também fora das instituições políticas convencionais, representando igualmente a reverberação de um projeto de Nação emancipador do País e do Povo Brasileiro: as Reformas de Base.

As Reformas de Base envolveram propostas e ações defendidas pelo governo trabalhista, segmentos legislativos e movimentos sociais, em torno da reforma agrária; da industrialização autossustentada, com tecnologia e recursos autóctones; da reforma urbana; do controle sobre o capital estrangeiro; e, entre outros, da ampliação da participação e fiscalização popular no exercício do poder político. Eis alguns dos temas centrais das Reformas de Base.

Esse leque reformista tinha em vista abrir o caminho para a construção de um País econômica e tecnologicamente autossustentado, socialmente justo, soberano e altivo nas relações internacionais, bem como dotado de uma democracia com participação mais dilatada nos processos decisórios. O golpe civil-militar de 1964, a Nova República e o golpe judicial-parlamentar de 2016, em sequência histórica, revela(ra)m a empedernida dedicação das classes dominantes internas e externas em expurgar e bloquear qualquer debate público a respeito que resvale no assunto. Elas têm alcançado êxito.

No entanto, as antigas Reformas de Base precisam ser submetidas ainda hoje à reflexão e em boa medida recuperadas e mobilizadas pela opinião pública. Estas Reformas configuram importantes respostas potenciais aos conflitos distributivos entre as classes sociais e ao leonino padrão de inserção brasileira na divisão internacional do trabalho. É claro, observadas não poucas especificidades do mundo e do Brasil contemporâneos. Mas, para isso, é fundamental termos clareza sobre o terreno político em que nos encontramos, as disputas de projetos, interesses de classes e visões de País, em choque.

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Trecho do discurso do presidente Goulart no Comício da Central

Independentemente das conjunturas, das diferentes siglas partidárias, na história das ideias políticas e econômicas e das instituições e práticas políticas republicanas brasileiras, ao menos desde 1945, existem três grandes visões e orientações com forças ambivalentes e desiguais de incidência na orientação de governos, representantes políticos, entidades da sociedade civil:

1. Liberalismo. Hegemônico, há décadas, nos veículos massivos de comunicação e em amplos setores do grande capital gringo e interno. Desde a ruptura política de natureza golpista, entre 2015 e 2016, dominou completamente o poder político e econômico no Brasil de hoje. Em boa medida, o condomínio oligárquico e burguês de dominação no Brasil incentivou e respondeu às mutações ocorridas no perfil da economia brasileira das últimas décadas. A desindustrialização e a ênfase na exportação de bens primários reforçaram o poder do grande capital do campo. Estimularam a compradorização de estratos burgueses, que revendem bens manufaturados de outras praias. A desnacionalização, sobretudo na parca faixa industrial existente, submeteu relevantes meios de produção a abertas injunções externas. A financeirização estimulou frações burguesas ao deslocamento para a especulação imobiliária e o rentismo, seja como acionárias de empresas, de capital interno ou gringo, seja de títulos do governo. O liberalismo, recauchutado e com poderosos suportes, traduz e turbina o velho entreguismo privatista, neocolonial e altamente espoliativo sobre a nossa gente trabalhadora.

2. Desenvolvimentismo. Mais tímido do que a teoria, refinada pela escola cepalina nos idos dos anos 1950, a prática política desenvolvimentista aposta na mitigação das desigualdades e das contradições sociais por meio do crescimento econômico. Demanda para isso um Estado com capacidade mínima de indução do crescimento, com crédito subsidiado, empresas estatais que façam compras e demandem serviços da iniciativa privada, estimulem a geração de empregos, forneçam infraestrutura para a promoção de obras etc. Acolhe folgadamente as multinacionais, visando aquecer a economia, “complementar” a “poupança” e os “investimentos internos”. Tende a envolver uma ampla aliança interclasses em prol do crescimento, via ampliação de lucros e geração de emprego, estendendo o consumo. Possui um prazo de validade curto, já que os meios de sustentação, em uma economia capitalista dependente, são frágeis. Com o tempo é o trabalhador que paga a conta… No momento, o desenvolvimentismo encontra-se criminalizado pelo discurso e atores políticos dominantes, que defendem a alienação de qualquer centro decisório nacional, modesto que seja. E suas estruturas mínimas desmontadas.

3. Nacionalismo. Desdobra(va)-se em tentativas de forjar um capitalismo nacional e autônomo e/ou em uma via socialista. A primeira via, cujo adepto explícito foi precisamente o presidente Jango, diferentemente de importantes setores das esquerdas nacionalistas do pré-64, cuja perspectiva socialista era esboçada explícita ou tangencialmente, foi pro beleléu. Se não com o golpe de 1964, já muito representativo da posição subalterna a que era induzida ou escolhida pela burguesia local em relação aos interesses de fora, definitivamente, é carta fora do baralho nos últimos anos, devido à reconfiguração da chamada burguesia nacional. Está mergulhada no vende patrismo descarado e no parasitismo. A Nação como mero território de exploração da maioria e satisfação de privilégios. Em todo caso, o nacionalismo distingue-se do desenvolvimentismo, fundamentalmente, na crítica ao papel desempenhado pelo capital estrangeiro – uma “bomba de sucção” das riquezas nacionais –, e na defesa da dilatação da participação política popular nos rumos, decisões e destinos do País. Esta, por princípio e também por necessidade de levar a cabo reformas que afetam diametralmente poderosos interesses domésticos e estrangeiros. Desde 1964 virou anátema entre as classes dominantes e em boa parte dos intelectuais alheios à realidade nacional.

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João Goulart aborda a questão do capital estrangeiro na ONU

Desse modo, se houver eleição presidencial esse ano, o quadro esboça-se entre candidaturas de direita flagrantemente liberais, entreguistas, visando aprofundar a espoliação aberta e em curso sobre a pequena burguesia, as camadas altas e médias dos trabalhadores e, sobretudo, encima dos trabalhadores humildes, subempregados e, nos termos da organização econômica de nossos dias, inempregáveis. Por meio do ritual eleitoral, dificilmente alguma dessas candidaturas terá condições de sagrar-se exitosa. O liberalismo, a despeito da propaganda e do pseudojornalismo dos principais veículos de comunicação, ofende a racionalidade política e o cotidiano da maioria, que sofre com a crise do desmonte do País.  

A dita centro esquerda, PT e PDT, em especial, denota profundo viés desenvolvimentista. Ciro e quem o PT indicar, Lula, se tiver chance, ou outro, possuem condições eleitorais salientes. Mas, uma eventual consagração nas urnas demandará um deslocamento ao liberalismo ou à radicalização nacionalista. A fuga para a frente da compatibilização de interesses contraditórios e altamente assimétricos, típica do desenvolvimentismo, não possui adeptos entre as classes dominantes.

Por outro lado, o PSOL e o PCB lançaram uma candidatura, de Boulos, sob a alegação de estreitar a fala com o Povo. Mas, se permanecer sem projeto portador de contornos mínimos, afinada como está com o petismo, inevitavelmente resvalará no desenvolvimentismo (prático, sem advogar reformas, ou teórico-cepalino, preconizando a reforma tributária), porque é o que se tem à mão, o instrumento mais conhecido e usual no terreno. O pequenino PPL lançou João Vicente Goulart, que por trajetória, inclusive familiar, propicia sensibilidade a temas caros às Reformas de Base. A limitação aí incorre particularmente no escasso espaço à disposição.

Para variar, desde a partida de Leonel Brizola, o que não se tem é uma aberta candidatura nacionalista, ao menos com capacidade de voz. O tempo presente exige a recuperação de itens importantes das Reformas de Base e do nacionalismo com orientação socialista. Nenhum setor das classes dominantes tem interesse em conciliar aspirações mínimas interclasses. Somente destruir o País e avassalar o Povo Brasileiro. Por essas e outras razões, as Reformas de Base, acaloradamente defendidas pelos nacionalistas no Comício da Central do longínquo 13 de março de 1964, adaptadas ao nosso tempo, servem ainda como relevante bússola e diagnóstico para os grandes desafios e dilemas nacionais.

Roberto Bitencourt da Silva – historiador e cientista político.

 

Redação

4 Comentários

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  1. Feliz 1963!

    O texto é bem razoável, só que está uns 55 anos atrasado.

    A esquerda tem que parar de acreditar que há luz no fim do túnel (algum tipo de possibilidade política de reformar o capitalismo em suas zonas periféricas). A esquerda tem que aprender a nadar no escuro!

    Parece claro que a chamada industrialização atingiu um patamar de sofisticação que nos coloca um impasse, ao meu ver intransponível:

    – Como inserir um país de industrialização de quinta categoria (no quesito tecnológico e produtividade, salvo raras exceções), quando o mundo central do capital já está na fase de uma pós-industrialização que prescinde cada vez mais do trabalho?

    Parece óbvio citar, mas na História a questão do tempo é central.

    Estamos cem ou cento e cinquenta anos atrás. Nem experimentamos todos os aspectos e fases da segunda revolução industrial.

    Não adianta tentar arrumar o jogo dentro de premissas que não existem mais.

    O capitalismo atual deixa claro que pode funcionar (quase) sem trabalhdores como os conhecíamos, e mais, sem aquilo que chamávamos de Democracia.

    Atenção: Isso não quer dizer que é o fim da luta de classes, nada disso! Ela só ficou (muito) mais complicada e sofisticada, trazendo elementos novíssimos, e enquanto ainda estamos procurando “uma luz no fim do túnel”, eles andam no escuro e dominam a escuridão.

    É a inversão total do Mito da Caverna, ou sua exacerbação a uma louca condição de que existam sombras sem objetos que as projetem!!!

    Pode parecer chavão (e é, mas nem por isso deve ser desconsiderado), mas as chances de repactuar a estrutura do capitalismo brasileiro, que tentamos com Lula e Dilma foram para “as cucuias”.

    Fica claro que o curto espaço de manobra que qualquer “presidente nacionalista” (o que será isso?) teria já não existe!

    Não há nem mais sentido em falar em nacionalismo, senão como um capricho sentimental da memória.

    A defesa dos chamados interesses nacionais passou a defesa dos interesses corporativos do Estado-finança, nem os EUA conseguem mais situar um projeto estratégico que possa ser chamado de “nacional”.

    Suas ações geopolíticas se prestam unicamente a alimentar o enorme complexo bélico-militar-petrolífero-financeiro!

    Como já disse, os “nacionalismos” e “xenofobias” se prestam apenas a dar coesão a subgrupos e fragmentos de bases sociais de apoios.

    Isso não quer dizer que não corramos o risco de que estes segmentos se corporifiquem em novas formas de autoritarismo, mas com certeza, o formato dos abusos e da exceção serão bem mais complexos dos anteriores, que primavam pela imposição da violência física como principal “argumento”.

    Teremos autoritarismo, violência (real e simbólica), teremos todos os ingredientes, mas o que mudará será a nossa percepção sobre eles, como vem acontecendo agora!

    Já era! Ou melhor, já é… 

    A brecha (a janela histórica) foi o enorme balano sofrido em 2008 pelo centro do capital! Infelizmente, eles foram mais rápidos em se regenerar que nós para aproveitarmos a deixa.

    E cada vez que a roda da História (e da história do capitalismo) dá mais uma volta, apertam os torniquetes na periferia de lá, e na periferia daqui.

    Outra chance, só com outra crise colossal ou uma guerra intercontinental entre os eixos centrais do poder mundial, mas ainda assim, teríamos que estar preparados para agir com oportunismo nessa oportunidade!

    E não estaremos.

    Nem se Lula concorrer e ganhar.

    Não se coloca a rolha de volta na garrafa de “champanhe”.

     

  2. o…

    Cachorro atrás do rabo fossilizado em 1964.  A mesma elite parasitaria e ideológica trouxe 1964 até 2018. E dizem não entender este país nos dias de hoje? Até URSS, Cuba e China, acordaram deste pesadelo.  

  3. 64-18

    Acho até que visto o buraco negro (lembrança ao Stephen Hawking) em que o Brasil esta indo acelaradamente, nos vamos ter gente pedindo as reformas de bases que ha mais de meio século ja deveriamos ter feito. Quem sabe, enfim, tenhamos algo proximo à uma revolução?

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