O concerto no ovo da microuniversidade, por Eliseu Raphael Venturi

Microuniversidade é, por ironia, um centramento de poderes para, a partir da prerrogativa ampla, concentrar poderes (político, econômico e epistêmico) em pontos muito específicos de uma malha frágil, deslocada e descolada das comunidades.

Hieronymus Bosch, Concert in the egg. 1561.

O concerto no ovo da microuniversidade

por Eliseu Raphael Venturi

“Eis a norma da sentença

Que no tribunal se observa:

Pelo cabelo de Minerva

O lobo não mata lobo.”

Microuniversidade, um recanto imaginário povoado por seres míticos e quiméricos, é uma instituição muito peculiar que reúne em sua gênese uma contradição em termos, dentro da palavra: um universo microscópico das práticas daquilo que deveria ser uma amplidão do olhar.

Se no campo das proporções a relatividade é importante para se dimensionarem as escalas, a Microuniversidade é, por ironia, um centramento de poderes para, a partir da prerrogativa ampla, concentrar poderes (político, econômico e epistêmico) em pontos muito específicos de uma malha frágil, deslocada e descolada das comunidades.

Ironias, aliás, não faltam na Microuniversidade, reino das contradições performativas: dedo reto apontado a diversas instituições, seu coração é sístole de arbitrariedade e diástole de incapacidade de se ser impessoal. Desde o ingresso até o fim do pós-doutorado, ela nada mais fará do que emular em seus procedimentos todo o “mal do mundo” ante o qual se julga imune e do qual é mais um braço imundo. Desconhecerá qualquer noção de direito fundamental subjetivo público ou qualquer noção de princípios e regras de processo administrativo para se centrar no gentil despotismo do gestor celebrado: sim, os sujeitos se julgam acima das normatividades, e por mais que falemos em milhões de hermenêuticas, o que valerá é o voluntarismo personalista, a posição na zona de guerra intrainstitucional e, no final das contas, o grau de subserviência que se soube administrar em longas durações de convivência. É uma espécie de cultivo: o de uma horta humana.

Infelizmente a Microuniversidade se tornou um retiro de autocelebração em que, ao invés de se recorrer aos autores e produções substanciais e de contribuição à construção do estado da arte dos temas de interesse, insiste-se em micropolíticas localíssimas com sonhos de universalidade, somada ao combate constante da propriedade definitiva dos pensadores consagrados e das metodologias verdadeiras.

Com isso, superfaturam-se autores insignificantes do quintal, compiladores fraturados de ideias, afamados e exaltados nos microcírculos de autorreferenciação recíproca; lança-se sua leitura goela abaixo impondo sua inserção em processos seletivos e arrebanham-se alunos cativos em torno destes castelos de areia teóricos, mistura de uma carência afetiva e dos quinze minutos eternos de fama robustecidos pela falsíssima proximidade trazida pela encenação patética das redes sociais – que já se confirmaram o engodo comunicacional da última década.

A insalubridade se confirma pelo insaciável palavrório somado à plena inefetividade pragmática, às alianças espúrias e a mais pura deturpação de qualquer noção basilar de espírito acadêmico, universitário, questionador, da produção, acumulação, crítica e circulação do conhecimento. Graduandos igualmente acríticos, ambiciosos e não combativos encadeiam os elos. Basta-se analisar a falta de espírito democrático entre os pares, na formação de bancas, na distribuição de recursos. Não fosse ridículo, seria constrangedor, a despeito de verdadeiramente ser antijurídico.

O que se perde no caminho é a crítica respeitável, o conhecimento formado, formativo e formador, a criatividade transdisciplinar, qualquer elemento daquilo que se poderia chamar de “função social da Universidade”. Perdem-se pessoas. Perdem-se talentos. Perdem-se sonhos e vocações. O que se perde são os clássicos jamais conhecidos, as produções jamais visitadas, os conceitos jamais circulados, as complexidades jamais exploradas, os mecanismos jamais construídos, a diferenciação jamais aberta e explorada.

Neste caminho das vaidades perde-se trabalho, recurso e oportunidade. Cornija do purgatório e círculo do inferno dantesco, a Microuniversidade é (mais um) fortalecimento de pequenos grupos restritíssimos que usam o cabedal público para seus jogos de críquete; a estreia de suas campanhas em detrimento de uma comunidade que, a rigor, continua engraxando seus sapatos e limpando seus detritos.

Quem ganha com a Microuniversidade – além dos integrantes da orquestra do ovo –, em mais uma ironia fatal, são os proliferadores e os crentes dos discursos do retrocesso de direitos, da subtração de direitos, da cassação de direitos, da supressão e da aniquilação de identidades, da inviabilização, obstrução e redução de possibilidades de vidas boas potenciais e legítimas em um cenário de multiplicidade valorada.

Políticas de castração, obsessão e opressão saem fortalecidas quando a Microuniversidade – degeneração do que poderia e deveria ser o polo mais intenso do pensamento, da reflexão, da crítica e da criação em uma sociedade – se reduz a mais um recôndito autoprotético de interesses privatísticos grupais, uma espécie de espaço intelectualizoide de outras teologias da prosperidade.

Não foi à toa que tantas monstruosidades e perversões democráticas saíram das entranhas destas Microuniversidades “alma mater” da aestética jurídica, instituindo práticas autoimunitárias que consomem qualquer pretensão institucional de consolidação democrática atualmente.

A Microuniversidade – e seus aguerridos devotos e instrumentistas – não vai mudar tão cedo. Pelo contrário. A Microuniversidade não apenas se fortalece, em seu ocaso, desesperadamente, como seus grupos se reiteram e se corroboram: da gema ao ovo. Um ovo do qual você estará fora, mas cujo aroma de gás sulfídrico sente.

Eliseu Raphael Venturi é doutorando e mestre em direitos humanos e democracia pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal no Paraná. Membro do Comitê de Ética na Pesquisa com Seres Humanos da UFPR. Advogado.

 

Redação

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador