O corpo nu da educação e os rumos da sujeição dos sujeitos, por Eliseu Raphael Venturi

Quem é o sujeito que a educação pretende assujeitar e como se pretende fazê-lo? É um encarceramento ou uma preparação para a liberdade?

Andy Warhol, Dollar Sign, 1981. (1)
O corpo nu da educação e os rumos da sujeição dos sujeitos
por Eliseu Raphael Venturi

“O quadro vive através do homem que o contempla” (PICASSO).

Um certo homem econômico, direcionado ao mundo do trabalho precário, descolado de sua consciência de classe (bem como de raça e de gênero), de sua realidade concreta, cotidiana e vivida, de seus direitos fundamentais (civis, políticos, sociais, econômicos, culturais, ambientais, da paz e da democracia), verticalizado no consumo do presente, e que todo dia pela manhã se olha em um espelho sem sua imagem fixando um ponto no horizonte que é tão móvel, distanciando-se mais e mais, e tão instável, quanto o seu caminhar.

Um certo homem do conhecimento, da crítica e da articulação, que relaciona modelos econômicos, políticos e jurídicos criticamente, pensa as demandas de seu tempo e faz escolhas individuais, mas também solidárias, e que se reconhece em sua nudez e em suas roupas e máscaras, e que não caminha em direção a pontos fixos simplesmente porque desconfia das rigidezes e, ainda assim, consegue pensar e agir segundo referenciais éticos, ainda que sem um temor de sanções metafísicas ou grandes premiações post mortem.

Um pouco de cada um em cada outro, que nem sequer são pontos de um espectro. Mais importante, talvez, do que “para onde estamos indo?” talvez seja, afinal, “o que estamos fazendo?”.

Qual é o homem da educação, ou: quem é o sujeito que a educação pretende assujeitar e como se pretende fazê-lo? Este ponto preciso de assujeitamento é um encarceramento ou uma preparação para a liberdade?

Qual subjetividade se almeja alcançar e sobre a qual intervir pelo processo de ensino e aprendizagem, determinado por conteúdos e metodologias? O que as preferências e escolhas políticas (maiores ou menores) demonstram como “produto humano” final esperado?

O quanto aquilo que se entende por “educação” revela daquilo que se quer obter a partir da “educação”?

Muitos podem ser os fins visados pela ciência, pela filosofia, pela técnica e, sobretudo, pela prática educacionais, do mesmo modo que muitos são os meios envolvidos nestas intencionalidades. Muitas são, portanto, as conclusões que se podem tirar dos ataques (e das defesas) a certas formas de conceber a Escola, a Educação, a Didática, e de todo o universo cultural que pode vir a integrar estas mediações como conteúdo de foco, reconhecimento, respeito, valoração positiva ou negativa, no coração dos conteúdos das disciplinas em específico.

Estas mediações, instrumentais e normalizadoras, servem a fins, a usos, a intenções, a práticas, a políticas, a condutas desejadas e indesejadas; com sua história, instituem também um corpo de conhecimento, portanto, de linguagem, de compreensão, de criação e crítica de valores e de ações, estados da arte de desenvolvimento de abordagens.

Como se posicionam, as compreensões, então, diante desse legado?

Afinal, por que queremos ou não queremos uma educação normalizadora ou por que queremos ou não queremos uma educação emancipadora? Por que articulamos modelos puros ou cedemos a diferentes tensionamentos híbridos? Por que nos animamos ou não com uma formação para a consciência de si, dos outros semelhantes, dos outros diferentes, das estruturas que sujeitam as vontades e liberdades, ou por que nos animamos ou não diante de uma formação do sujeito da produção, da disciplina e do controle? Qual distância a família pode alcançar para a formação de uma vida cívica, e qual a relação da vida cívica com padrões morais?

Convivência é ou não, afinal, um dos fins da educação? Só iguais podem conviver? Iguais em quê?

Muitos são os níveis de sensação e sentimento de ameaça que a educação pode propiciar: democrática ou autoritária, um direcionamento ou outro da educação pode ser uma ameaça às normas que se quer preservar. O que estas normas asseguram? Realmente asseguram o que pretendem?

Por que formar para além do sujeito da produção, da disciplina e do controle, representa uma ameaça tão profunda? Por que a construção da pessoa, como uma existência, como uma forma de vida, como um corpo que deseja, representa um risco social tão grande? Por que o sujeito – já não mais assujeitado – que pensa e que se pensa, que pode pensar e pode se pensar – continua um risco tão intenso?

Hoje o sujeito de direitos é uma ameaça às hegemonias oligárquicas; é um desafiador do sentido, um leitor aprofundado da palavra, alguém que não se deixa levar pelos grandes estandartes que camuflam as políticas de agravamento das exclusões, desesperadas para fazer prosperar modelos em vias de esgotamento humano, econômico e ambiental.

Os ataques sistemáticos às Artes (seja às visuais em um museu, ao cinema, ao fomento etc.) e ao ensino das artes demonstram exemplarmente, em um ponto da rede, como a formação artística é coagida em sua liberdade e diversidade fundantes. O corpo da arte é o corpo aberto à criação, ao devir, ao novo, ao impensado, ao inusitado, ao questionador, àquilo que decreta a morte do obsoleto, àquilo que reinstaura o esquecido, àquilo que rememora o poder de ressignificação do mundo. A língua da gramática é outro idioma nas vias da Literatura, assim como o desenho técnico já é outro na pena do artista; por que o trânsito é tão assustador?

Se o que está em jogo com a pessoa da educação é o indivíduo, o cidadão, o agente social político, a partícula da estrutura que pode derrubar a edificação, há um sentido forte naquilo que se quer silenciar, obliterar, subjugar, excluir, senão alocar de modos muito específicos e estratégicos.

A liberdade que se quer medir é justamente a força contida na gestão da vida, e aquele cuja vida se quer esquadrinhar e significar é o indício próprio do que precisa se afirmar e romper, por si e muitas vezes para si.

A Escola do tão permanente temor – que não é a Escola excludente ou a Escola do bullying – se fosse operante em seu máximo potencial, ainda seria um pequeníssimo universo diante das demandas de educação e formação em um mundo de complexas identidades, pós-identidades, necessidades sociais e demandas de vida: as pluralidades e as singularidades; o infinito referencial cultural desconhecido a ser recuperado.

Esta Escola e Educação que vão desde os estágios iniciais do desenvolvimento intelectual até à pós pós-graduação, e que seguem gravadas em nossas subjetividades forjadas em seus enclausuramentos pela vida toda. O que estamos fazendo destas antropotécnicas?

Muitas são as dimensões perdidas no processo e muito grande e constante é a permanência da Escola na continuidade de aparatos ideológicos. Às vezes crítica, outras vezes sucumbida ao dogmatismo contraditório de suas próprias pretensões críticas que instituíram novas hegemonias, no mais das vezes sobrevivente entre os desincentivos generalizados e desinvestimentos constantes, há, contudo, um traço distintivo gerado na historicidade da Educação que lhe permitiu muitas vezes engendrar os germes de sua própria revisão.

É este traço, do trabalho intelectual primeiro, que se encontra sob ameaça e ódio constantes.

Se, nos termos constitucionais (art. 205), ainda formos capazes de pensar a educação como “direito de todos e dever do Estado e da família, [que] será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”, parece imprescindível que não nos esqueçamos do que pode significar o “pleno desenvolvimento da pessoa” e o “exercício para a cidadania”.

Um desenvolvimento da personalidade (2) que é um direito, depende da formação livre da personalidade, da proteção da liberdade de ação, dos projetos de vida, das vocações, assim como da proteção da integridade (física, moral, psíquica) das pessoas. Quantos cortes e recortes se podem ver nas edições sucessivas destes direitos à educação e à personalidade? Um mar de talhos.

Em todo navio de corpos, em toda barca da tolice, em todo enclausuramento obscuro, as madeiras que cedem à vida das formas sempre surpreendem com fissuras, por menores que sejam, para as quais se podem olhar.

Talvez a missão última da Educação – uma educação indesejada, se é que a algo há missões últimas – seja justamente tatear estas saídas, olhar os outros mundos possíveis, sentir atmosferas e iluminações distintas. Já parece uma missão grandiosa e complicada quando tudo o que se quer é cortar um mapa que ainda não se desenhou.

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Eliseu Raphael Venturi é doutorando e mestre em direitos humanos e democracia pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal no Paraná. Licenciado em Artes Visuais pela Faculdade de Artes do Paraná. Membro do Comitê de Ética na Pesquisa com Seres Humanos da UFPR. Advogado.

***

(1) Disponível em: <https://guyhepner.com/artist/andy-warhol-art-prints-paintings/dollar-sign-by-andy-warhol/ >. Acesso em: 07 abr. 2019.

(2) A referência aos elementos expostos e analisados por Sara Raquel da Silva Correia, em sua dissertação “A integridade física e a recolha de vestígios biológicos” (Universidade do Porto, julho de 2013) é relevante para se pensar na complexidade jurídica – pouco explorada ainda – do “direito ao livre desenvolvimento da personalidade”. Disponível em: <https://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/70570/2/24830.pdf>. Acesso em: 07 abril 2019.

Redação

1 Comentário

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  1. MAGISTRAL TEXTO!
    Não me sinto mais “uma Pequena Princesa” só,no planeta chamado Brasil!!
    É maravilhoso constatar que a Educação salva ,mesmo!!
    MAS… A Educação “educare”!Não a que quer “solapare” as consciências e/ou personalidades!!
    Irmãos: ainda e mais que nunca precisamos de PROFESSORES PEDAGOGOS! Aqueles que devem caminhar ao lado de seus alunos!!
    BRAVO!!

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