O dever socrático e a maldade bolsonariana, por Fábio de Oliveira Ribeiro

As vidas dos cidadãos brasileiros são inestimáveis e não podem ser sacrificadas no altar do Deus Mercado.

O dever socrático e a maldade bolsonariana, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Hoje pela manhã, ao limpar minha estante, topei com um volume há muito tempo não manuseava: Diálogos, Platão. Enquanto o folheava lembrei-me então das palavras obscenas de Jair Bolsonaro.

“Infelizmente algumas mortes terão. Paciência, acontece, e vamos tocar o barco. As consequências, depois dessas medidas equivocadas, vão ser muito mais danosas do que o próprio vírus.”

A Constituição Cidadã garante o direito a vida dos cidadãos sem qualquer distinção (art. 5º, caput) e obriga o Estado a garantir a saúde de todos “mediante políticas sociais e econômicas que visem a redução do risco de doença” (art. 196). Em razão de ser mortal, a pandemia do COVID-19 coloca em evidência esses deveres do Estado, obrigando os agentes públicos (sejam eles eleitos ou concursados) a cumprir e fazer cumprir referidos princípios.

As vidas dos cidadãos brasileiros são inestimáveis e não podem ser sacrificadas no altar do Deus Mercado. Ao dizer que pretende dar prioridade à economia ao contrário de fazer tudo que for possível e impossível para preservar as vidas dos cidadãos, o presidente brasileiro se colocou em desacordo com os princípios constitucionais mencionados. Em tese ele cometeu crime de responsabilidade (art. 85, inciso III, da CF/88). Mas não é disso que pretende falar.

No princípio do diálogo, Critão, ou o Dever, o interlocutor de Sócrates o encontra na prisão e demonstra espanto.

“Sócrates – Acabas de chegar ou faz tempo?
Critão – Faz já algum tempo.
Sócrates – Então porque não me acordaste logo e te sentaste aí calado?
Critão – É que por Zeus, sócrates, em teu lugar, eu não gostaria de passar muito tempo acordado numa aflição assim; estou mesmo admirando, há empo, a placidez do teu sono. Não te acordei, de propósito; para que pudesses gozar quanto mais dessa tranquilidade. Já muitas vezes antes, em toda a nossa vida, te considerei feliz pelo teu gênio, porém muito mais agora, na presente desgraça, pela facilidade e brandura com que a suportas.
Sócrates – Realmente, Critão, eu destoaria, se, na minha idade, me agastasse por ter de morrer em breve.
Critão – Outros também, Sócrates passam por provações assim na mesma idade; no entanto, os anos não os dispensam de se agastarem com a sorte que lhes toca.
Sócrates – Assim é. Mas, afinal, par que vieste tão cedo?” (Diálogos, Platão – Critão, ou o Dever, Editora Cultrix, São Paulo, 1963, p. 119/120)

Um dos personagens de Platão demostra tranquilidade diante da morte. Mas esse sentimento não pode ser considerado semelhante àquele expressado por Jair Bolsonaro. Sócrates foi condenado a morte e aguarda o cumprimento da sentença. O presidente brasileiro tem o dever constitucional de fazer tudo que for possível e impossível para salvar as vidas dos cidadãos, mas ele se recusa a cumprir essa obrigação. Sócrates aceita a própria morte, Bolsonaro não poderia aceitar as mortes dos cidadãos cujas vidas ele tem o dever de proteger.

Para entender melhor a diferença entre a perspectiva de Sócrates e a de Bolsonaro devemos citar outro fragmento do Diálogo:

“Sócrates – Logo, jamais se deve proceder contra a justiça.
Critão – Jamais, por certo.
Sócrates – Nem mesmo retribuir a injustiça com a injustiça, como pensa a multidão, pois o procedimento injusto é sempre inadmissível.
Critão – Parece que não.
Sócrates – E daí? Devemos praticar maldades ou não, Critão?
Critão – Não devemos, sem dúvida Sócrates.
Sócrates – Adiante. Retribuir o mal que nos fazem é justo, como diz a multidão, ou injusto?
Critão – Absolutamente injusto.
Sócrates – Sim, porque entre fazer mal a uma pessoa e cometer uma injustiça não há diferença nenhuma.
Critão – Dizes a verdade.” (Diálogos, Platão – Critão, ou o Dever, Editora Cultrix, São Paulo, 1963, p. 127)

Sócrates considera a Justiça um valor absoluto. Ele se apresenta tranquilo diante da morte porque não pretende revidar a injustiça que sofreu cometendo outra. Estar de acordo com esse princípio e ser coerente com os valores que sempre defendeu são, para Sócrates, algo muito melhor do que se vingar de uma condenação injusta. Retribuir uma injustiça com outra injustiça, como faz a multidão, seria inadmissível.

Quando se espanta com a tranquilidade de Sócrates e menciona como os outros reagiriam se estivessem numa situação análoga Critão dá a entender que valoriza a opinião contrária, qual seja, a de que é admissível fazer como a multidão e retribuir o mal com uma injustiça. Essa opinião, entretanto, ele claramente abandonou ao concordar com o que Sócrates disse. Ao perceber que o seu interlocutor pode estar encontrando em contradição, Sócrates alerta-o:

“… Cautela, porém, Critão, ao admitires esses princípios, não o faças em contradição com o teu pensamento, pois sei que essa opinião é e será de alguns poucos. Entre os que adotam e os que a repelem não existe um ânimo comum; fatalmente se quererão mal uns aos outros, ao verem os propósitos uns dos outros. Portanto, considera também tu se comungas a minha opinião, se concordas comigo e se nossa deliberação partirá do princípio de que jamais é acertado cometer injustiça, retribuí-la, vingar pelo mal que fazemos o mal que nos fazem, ou se diverges e não co-paticipas do princípio.” (Diálogos, Platão – Critão, ou o Dever, Editora Cultrix, São Paulo, 1963, p. 127/128)

Desde que tomou posse, Jair Bolsonaro tem sido diariamente alertado de que não pode, sem sofrer as consequências inevitáveis (anulação de seus atos, afastamento e perda do cargo em razão de um Impeachment, responsabilização criminal por atentar contra as vidas dos cidadãos ou colocá-las em risco, etc). Ele claramente ignorou todos os alertas.

Criticado pelos veículos de comunicação em razão de sua postura desde o início da pandemia, Bolsonaro passou a hostilizar mais acintosamente os jornalistas. Temeroso de perder sustentação política, ele violou a quarentena e foi se encontrar com o povo colocando a saúde das pessoas com quem entrou em contato. Isolado politicamente, o mito tenta censurar a imprensa e se esforça para impor seu ponto de vista desacreditando da ciência e, pior, adulterando as palavras do responsável pela Organização Mundial de Saúde. Contrariado pelo Parlamento, o presidente brasileiro se recusa a sancionar a Lei que determina o pagamento da quantia que foi outorgada pelos legisladores aos desempregados, subempregados e autônomos atingidos economicamente pela pandemia.

Bolsonaro quer se vingar da população brasileira abandonando-a à própria sorte para morrer contaminada pelo COVID-19 ou de fome em razão dos efeitos que a pandemia produziu na economia. Para se colocar em acordo consigo mesmo, ele viola acintosamente a Constituição Cidadã e demonstra o mais absoluta desprezo pela vida das outras pessoas. Portanto, não é muito difícil concluir que a maldade contumaz bolsonariana é uma antítese perfeita do dever socrático.

O ódio que Bolsonaro sente pela filosofia é, sem dúvida alguma, semelhante ao sentimento que levou a multidão a condenar Sócrates. Aguardando a morte, o personagem de Plantão dorme tranquilo. Os atenienses não precisavam temer qualquer reação. Aquele condenado cumpriria seu dever para consigo mesmo. Sócrates estava disposto a respeitar sua própria opinião sobre a Justiça. Ele não tentaria fugir, nem cometeria qualquer crime para vingar a injustiça que sofreu.

A multidão brasileira colocada em risco e condenada inconstitucionalmente a morte, entretanto, dificilmente reagirá da mesma forma que o filósofo grego. Em algum momento Bolsonaro será vítima do ódio que despertou num povo que ele considera imprestável, desprezível e descartável.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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